Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou: uma freira, um piano e uma vida entre espiritualidade e música

27 maio 2025 às 09h47

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Poucos artistas conseguiram traduzir, através da música, uma síntese tão profunda entre espiritualidade, tradição e modernidade quanto Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou (1923–2023). Pianista, compositora e freira etíope, Emahoy construiu uma trajetória singular, marcada por uma sonoridade inconfundível e uma vida que desafiou expectativas, deslocou fronteiras culturais e permanece como uma das mais fascinantes narrativas da música do século XX.
Nascida Yewubdar Guèbrou em uma família aristocrática de Adis Abeba, na Etiópia, Emahoy foi enviada ainda criança, com apenas seis anos, para estudar em um internato na Suíça. Lá, teve seu primeiro contato com o violino e, posteriormente, com o piano — instrumento que se tornaria seu meio mais expressivo.
De volta à Etiópia, sua infância foi interrompida pela brutal invasão italiana em 1935. Ela e sua família foram feitos prisioneiros de guerra e deportados para campos na Itália, onde viveram sob duras condições. Este episódio, que culminou na perda de três membros da família, deixou marcas profundas que, mais tarde, reverberariam na sua arte: uma música atravessada pela dor, mas também pela resiliência.

Com o fim da ocupação italiana, Emahoy retomou seus estudos musicais no Cairo, sob a orientação do violinista polonês Alexander Kontorowicz. Retornou à Etiópia acompanhada do mestre, que passou a dirigir a banda da Guarda Imperial. Ela mesma atuou como pianista da corte e, simultaneamente, como a primeira mulher a ocupar o cargo de secretária no Ministério das Relações Exteriores.
Com uma promissora carreira como pianista de concerto à vista, inclusive com uma proposta de estudos na Royal Academy of Music, em Londres, Emahoy surpreendeu a todos ao abdicar desse caminho para ingressar na vida religiosa. Aos vinte e poucos anos, tornou-se monja na Igreja Ortodoxa Etíope, assumindo o nome religioso Tsegué-Maryam, e viveu uma década em completo isolamento, em um mosteiro no topo de uma colina, andando descalça e dedicada exclusivamente à oração.

O legado musical de Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou é, antes de tudo, uma síntese criativa entre a herança clássica europeia e as tradições modais da música etíope. Sua escrita para piano, embora impregnada de técnicas aprendidas com os mestres europeus, está profundamente enraizada nas escalas pentatônicas (os chamados qenets), como tizita, bati e anchihoye, típicas da cultura musical da Etiópia.
Não à toa, a crítica frequentemente associou sua música a nomes como Erik Satie, Duke Ellington, Keith Jarrett, e até mesmo a Bach ou Chopin, comparações que indicam menos uma filiação direta e mais a universalidade e a originalidade de sua proposta estética.
Embora tenha gravado seu primeiro álbum ainda em 1967, na Alemanha, foi somente a partir de 2006, com o lançamento da coletânea Éthiopiques Vol. 21 — dedicada inteiramente às suas obras —, que Emahoy alcançou projeção internacional. Esse disco, parte de uma série dedicada à música etíope tradicional e popular, revelou ao mundo uma artista de sensibilidade ímpar e obra profundamente meditativa.
A pianista e cantora Norah Jones, ao comentar o álbum, afirmou:
“É uma das coisas mais belas que já ouvi: parte Duke Ellington, parte música sacra”.
A trajetória de Emahoy não se restringe à criação musical. Durante décadas, dedicou-se também a obras de caridade: os lucros de suas gravações eram sistematicamente doados para instituições que cuidavam de crianças órfãs e desabrigadas. Em 2007, foi criada a Fundação Musical Emahoy Tsege Mariam, com o objetivo de promover a educação musical para jovens na África e na diáspora.

Radicada, a partir da década de 1980, no mosteiro ortodoxo etíope em Jerusalém, Emahoy viveu de forma reclusa até sua morte, em março de 2023, aos 99 anos. Seu funeral, realizado na Igreja Kidane Mehret, foi marcado pela simplicidade e pela presença simbólica de seu piano, tocado em sua homenagem.
Em tempos de ruído excessivo e de produções musicais marcadas pela instantaneidade, a escuta das obras de Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou propõe uma pausa: um convite à contemplação, à espiritualidade e à percepção das sutilezas sonoras. Sua música é, ao mesmo tempo, uma expressão do singular e do universal, do local e do cosmopolita.
Mais do que uma artista etíope, Emahoy é uma figura planetária, cuja vida e obra nos ensinam sobre a potência da escuta interior e sobre o papel da música como ponte entre culturas, épocas e sensibilidades.
Uma excelente introdução ao universo musical de Emahoy Tsegué-Maryam Guèbrou é a peça “The Homeless Wanderer”, disponível no YouTube. Essa composição faz parte do álbum Éthiopiques Vol. 21: Ethiopia Song, lançado em 2006, que reúne gravações da década de 1960
Observe como Emahoy estabelece uma célula melódica simples, mas profundamente evocativa, que se repete e se desenvolve de forma lenta e contemplativa. Note como essa repetição cria uma atmosfera de introspecção, quase como uma oração ao piano. Fique atento nas pausas, nos silêncios e na maneira como ela volta a determinados motivos melódicos, como se hesitasse entre partir e ficar.