Alfred Brendel: o pianista que acordava partituras com um beijo

01 julho 2025 às 10h04

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“Ser intérprete é viver entre extremos.” É com essa imagem que Alfred Brendel descreve a natureza contraditória do ofício musical: tocar para si e para o outro, dominar e esquecer-se, ser soberano e servo da música. A definição está no livro De A a Z de um pianista e revela com precisão a trajetória de um dos maiores nomes do piano no século XX.
Brendel faleceu no último dia 17 de junho, aos 94 anos, em Londres, onde viveu a maior parte da vida. Nascido em 1931, na então Tchecoslováquia, e criado na Áustria, ele construiu uma carreira singular: sem formação formal extensa, foi em grande parte autodidata, guiado por sua escuta atenta, seu espírito curioso e sua incansável busca por coerência estética. Um artista completo, além de pianista, foi escritor, poeta, pensador. E deixou mais do que gravações impecáveis: deixou ideias.

Suas interpretações de Beethoven, Schubert, Mozart e Liszt estão entre as mais respeitadas do repertório pianístico. Gravou três vezes o ciclo das 32 sonatas de Beethoven e foi o primeiro a registrar integralmente as obras para piano solo do compositor. Com Schubert, especialmente nas últimas sonatas, tocava como quem atravessa paisagens internas. Como ele próprio dizia:
“a música de Schubert acontece, sem obediência a uma lógica previsível — exige entrega, mais do que controle”.
Há quem o considerasse cerebral ou excessivamente analítico. Brendel, no entanto, rebatia essa ideia com elegância. Dizia que não pertencia a escolas pianísticas, e que cada obra exigia sua própria técnica, sua abordagem singular. Para ele, forma e expressão não eram opostos: eram gêmeos diferentes. Compreender a estrutura de uma peça era apenas o começo; difícil mesmo era adentrar sua psicologia.
Era assim que falava da interpretação: como um ato de escuta profunda, de leitura sensível, de compromisso com o compositor, e, mais ainda, com a verdade interna de cada obra. Ele sabia que a partitura não é a música, mas seu rascunho adormecido.
“O intérprete tem o privilégio de despertá-la — ou, com carinho, de trazê-la à vida com um beijo.”
Brendel aposentou-se dos palcos em 2008, devido a problemas físicos. Desde então, escreveu ainda mais. E seguiu presente, orientando jovens pianistas, participando de conferências, publicando ensaios e poemas. Um artista que não se contentou em tocar bem: queria entender e fazer entender o que tocava. Porque para ele, a música só se eleva quando encontra seu tempo interior, seu ponto exato de equilíbrio entre razão e emoção.

Alfred Brendel foi, acima de tudo, um grande pensador da arte de interpretar. Seu legado, imenso, ultrapassa as salas de concerto. E continua despertando a obra musical com consciência, precisão, profundidade e humanidade.
Ouviremos os Quatro Improvisos D. 899 de Franz Schubert, na interpretação de Alfred Brendel, Essa gravação é uma verdadeira aula de sensibilidade, estrutura e escuta interior.
Observe que Brendel não acelera nem dramatiza em excesso. Seu uso do tempo é orgânico, como se a música estivesse respirando. Os andamentos soam naturais, permitindo que as ideias musicais se desdobrem sem pressa, mas também sem estagnação. Fique atento, pois Brendel toca Schubert como quem lê um texto com atenção às vírgulas. Há clareza na voz principal, mas também atenção ao contraponto, aos acompanhamentos ondulantes e aos detalhes interiores.