A primavera na ‘música de concerto’
01 outubro 2024 às 17h01
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A primavera sempre foi uma estação reverenciada por compositores ao longo dos séculos. O renascimento da natureza, a explosão de cores e vida, e a promessa de renovação espiritual são elementos que, inevitavelmente, encontraram expressão nas obras de alguns dos mestres da música de concerto. Assim, quando a primavera chega, nos vemos rodeados por composições que capturam esse espírito vibrante e efêmero.
Entre as peças mais icônicas que celebram a estação está o Concerto para Violino RV 269 “Primavera” de As Quatro Estações de Antonio Vivaldi. Esta obra, que por si só personifica a primavera para muitos, faz parte de uma coleção de concertos escritos no início do século XVIII. Vivaldi se inspirou no campo italiano, onde a natureza ganha protagonismo através de melodias que evocam o canto dos pássaros, o murmúrio dos riachos e a vivacidade dos campos floridos. Ao ouvir o primeiro movimento, somos transportados para o despertar de um novo ciclo, quando a terra, antes adormecida, começa a florescer. Vivaldi foi um mestre em traduzir cenas da natureza para a linguagem da música, e a “Primavera” é um exemplo perfeito dessa habilidade.
No período clássico, encontramos outra peça marcante: Primavera – As Estações de Joseph Haydn, estreada em Viena em 1801. Diferente da abordagem de Vivaldi, Haydn compôs uma obra mais narrativa, onde os trabalhos agrícolas e a simplicidade da vida rural se misturam com o esplendor da estação. Em Primavera, Haydn apresenta não apenas a renovação da natureza, mas também celebra a harmonia entre a humanidade e o ambiente, numa visão pastoral cheia de esperança e otimismo.
O espírito da primavera também permeia a obra de Franz Schubert, especialmente em sua canção Im Frühling (D882), onde a primavera é evocada com uma doçura contemplativa, refletindo sentimentos mais íntimos de nostalgia e melancolia. Aqui, Schubert nos lembra de que a primavera não é apenas um evento externo, mas também uma estação que pode despertar memórias e emoções profundamente pessoais.
Avançando para o auge do romantismo, Robert Schumann compôs sua Sinfonia nº 1, muitas vezes chamada de Primavera. Escrita em 1841, à obra expressa o entusiasmo juvenil de Schumann diante da mudança das estações. O primeiro movimento, inspirado por um poema de Adolph Böttger, é uma verdadeira saudação à primavera, começando com uma fanfarra luminosa que simboliza o renascimento da natureza e da vida.
À medida que adentramos o século XX, Claude Debussy trouxe sua própria interpretação impressionista da primavera com Rondes de Printemps. Debussy, sempre obcecado pela atmosfera e pelos sons da natureza, traduz a estação com cores tímbricas ricas e dançantes. Diferente das evocações mais literais de compositores anteriores, Debussy pinta a primavera com traços mais abstratos, convidando-nos a sentir o frescor do ar primaveril sem necessariamente contar uma história.
No entanto, é com Igor Stravinsky que a primavera toma uma forma mais dramática e revolucionária. A Sagração da Primavera, balé estreado em 1913, provocou uma das maiores controvérsias da história da música. Stravinsky não retrata a primavera idílica e tranquila. Em vez disso, ele nos apresenta uma visão primitiva e pagã, onde a terra acorda com uma força brutal, exigindo sacrifício. A complexidade rítmica e a dissonância quase selvagem da obra criam uma imagem da primavera como um momento de intenso poder e transformação – longe da serenidade pastoral de Vivaldi ou Haydn. A música de Stravinsky é uma celebração violenta e visceral do ciclo da vida e da morte, da renovação que, paradoxalmente, surge do sacrifício.
Nos Estados Unidos, Aaron Copland ofereceu uma visão mais serena e americana da primavera com seu balé Appalachian Spring. Comissionada por Martha Graham, a obra estreou em 1944 e é uma verdadeira ode à simplicidade e à pureza da vida rural. Copland, com sua linguagem harmônica clara e acessível, evoca a quietude e a beleza das montanhas Apalaches na primavera, num retrato musical que ressoa com esperança e renovação.
No Brasil, o compositor Henrique de Curitiba compôs, em 1994, Já vem chegando a Primavera, uma canção para coro com texto do próprio compositor. Publicada pela Santa Bárbara Music Publishing, Califórnia, em 2002, a obra é muito apreciada por coros no Brasil e no exterior. Já vem chegando a Primavera anuncia magistralmente a estação que ora se inicia.
Cada uma dessas obras nos oferece uma perspectiva única da primavera – seja a sua suavidade pastoral, sua melancolia introspectiva ou sua força primitiva. Elas nos lembram de que, assim como a natureza, a música também passa por ciclos de renovação e transformação. A primavera, com suas cores e sons inconfundíveis, continua a inspirar, renovando não só a terra, mas também nossas almas.
Ouviremos de Claude Debussy “L’après-midi d’un faune” (A tarde de um fauno), um poema de Mallarmé, um marco na história do Simbolismo na literatura francesa. A obra literária inspirou a composição do Prelúdio à tarde de um fauno de Debussy, de 1894, considerado a primeira obra de música moderna. Coreografada por Nijinsky, foi incorporada ao repertório dos balés russos de Diaghilev.
Assim Debussy escreveu sobre o Prelúdio à Tarde de um Fauno:
“O Prelúdio é uma sucessão de cenas que descrevem os desejos e os sonhos do fauno… Ele toca sua flauta de Pan. Depois, cansado de perseguir as ninfas e as náiades, ele sucumbe a um sono pesado, no qual pode afinal realizar seus sonhos de posse, na Natureza universal.”
Observe nessa obra o surgir de diferentes atmosferas. É uma das obras mais conhecidas de Debussy, cujo sucesso foi imediato e que constitui um dos melhores exemplos da música chamada impressionista. Segundo Maurice Ravel: “um milagre único em toda a música”.
No vídeo abaixo, ouviremos a L’après-midi d’un faune com a Orquestra Sinfônica de Boston sob a regência do Maestro Leonard Bernstein”.