A obra intitulada “Nelson Freire – O Segredo do Piano” tem provocado polêmicas no meio musical brasileiro desde seu lançamento. A obra, que busca explorar a vida íntima e os últimos anos do renomado pianista brasileiro, tem gerado desconforto entre os colegas e amigos próximos de Freire, especialmente devido à abordagem sobre sua morte.

A narrativa destaca a personalidade tímida e reservada de Nelson Freire, um gênio do piano que preferia evitar os holofotes. A biografia revela aspectos da vida pessoal do pianista, desde sua infância precoce no mundo da música até seus últimos momentos, marcados por acidentes que o impediram de tocar no mesmo nível que o consagrou musicalmente.

Nelson Freire criança | Foto: Instituto Moreira Salles / Acervo de Família

A abordagem do menino prodígio, da mudança da família de Boa Esperança em Minas Gerais para o Rio de Janeiro:

 (…) “ a família Freire se muda para o Rio. O prodígio de cinco anos e meio é carregado em triunfo pela multidão até a saída de Boa Esperança, como Chopin despedindo-se de Varsóvia”

 O livro revela também a relação com as novas professoras depois de vários equívocos na educação musical do pequeno Nelson. Quando os pais o levam à casa da renomada professora Lúcia Branco:

(…) “ ela fica perplexa. O garoto é incrivelmente talentoso. Ele respira música por todos os poros”.

Nelson passa a ser orientado por duas grandes educadoras, a gaúcha Nise Obino e a paulista Lúcia Branco. Uma complementa a outra.

“ (…) “ Lúcia Branco aceita ser sua professora e Nise será a assistente dela. Nelson vê Lúcia todas as quinta-feira e Nise, duas vezes por semana. (…) “ Depois de três meses desse regime diário, o menino está pronto

para dar um recital completo”.

Pouco depois de conhecer as professoras Lucia e Nise, o pequeno Nelson escreve uma carta ao pai:

“Eu sou um menino de oito anos de idade

Eu me chamo Nelson José Pinto Freire.

Eu nasci no dia 18 de outubro de 1944.

Eu sou um menino que passo a vida alegre.

Eu brinco muito com meus amigos.

Eu também brinco e brigo com meus amigos.

Eu mostro-lhe o meu desejo.

Música, música.

Eu lhe falo que termino com uma palavra.

Eu acho ela simples.

Fim

Eu passo a vida na música, música, música”.

Com Nise Obino, Nelson, teve uma relação de amor. Ele era movido pelo amor pelas pessoas e pela música.

“A relação com Nise é intensa, apaixonada, quase assustadora. Eles não podem viver um sem o outro.”

Nelson Freire; Luiz Eça; Lúcia Branco; Jacques Klein, Nise Obino e Moreira Lima (1956) | Foto: institutopianobrasileiro

Mais de trinta anos após o encontro de Nelson e Nise, quando moraram juntos nos arredores de Paris, Nise escreve uma carta a Nelson:

“ Descobri hoje que te amei desde o primeiro dia. Quisera naquele tempo que só quando fazia música o mundo era bom. Tocar, palco, palmas, o resto era bem resto. Certo dia te conheci, pinguinho de gente, meio irreal, nem criança, nem bichinho nem pessoa, De pé, na frente de um enorme piano, e correndo as mãozinhas tão pequenas que nem os dedos apareciam com a velocidade dos movimentos. Era tão cômico, era tão comovente e era tão diferente… Era qualquer coisa fora deste mundo, não dava para classificar de feio ou bonito. Neste momento, vendo bem tudo aquilo, eu vejo que te amei porque pensei para mim mesma: que bom, ele já tem o seu mundo, também para ele o resto será o resto”.

Aos 12 anos, Nelson Freire foi finalista no I Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro (1957).

“O júri só tem olhos para a adorável criança. Guiomar Novaes diz que ele é ‘ um pequeno Rubinstein’. Lili Kraus o acha ‘bonitinho’. Marguerite Long lhe oferece uma bolsa de estudos em Paris”.

Finalista do I Concurso de Piano do Rio de Janeiro (1957). Da esquerda para a direita: Nelson Freire (com 12 anos na época, tocou o 1º mov. do Imperador de Beethoven na final); Giuseppe Postiglione (italiano, 2º lugar); Alexander Jenner (austríaco, 1º lugar); Sergei Dorensky (russo, 2º lugar); Claude Albert Coppens (belga, “Prêmio Villa-Lobos”); Fernando Lopes (brasileiro “melhor intérprete das mazurcas”); e Mikhail Voskresensky (russo). Acervo de Nelson Freire | Foto: institutopianobrasileiro

Após importante conquista, Freire recebeu do então presidente Juscelino Kubitschek uma bolsa de estudos que o levou a Viena, onde estudou sob a orientação de Bruno Seidlhofer.

“ A relação com Seidlhofer é sempre um pouco encrespada. Para entrar na mente de Nelson, primeiro é preciso ganhar seu coração”.

Nelson Freire e Martha Argerich | Foto: Reprodução

Foi em Viena que Nelson conheceu Martha Argerich.

“ Depois da mãe, da irmã Nelma, de Nise, agora ele tem Martha. Desde a mais tenra idade, Nelson sabe que a melhor maneira de ser amado é se sentar ao piano. Não o piano pelo piano, mas o piano pelo amor”.

Um dos pontos centrais de controvérsia sobre o livro reside na descrição dos eventos que antecederam a morte de Freire. Bellamy relata detalhes das relações amorosas de Nelson, descreve o acidente fatal de seus pais, suas perdas, seus conflitos sempre em meio ao seu amor incondicional pela música, os desafios físicos enfrentados pelo pianista, incluindo acidentes que resultaram em lesões graves. A narrativa culmina na noite de 31 de outubro para 1º de novembro de 2021, quando Nelson, sob circunstâncias obscuras, deixou sua casa e mergulhou na escuridão.

Apesar das críticas e das revelações algumas vezes invasivas, o livro é elogiado por destacar momentos importantes da carreira de Nelson Freire. A biografia oferece um vislumbre da personalidade do pianista e de sua relação única com a música, evidenciando sua dedicação e paixão pelo piano, bem como relata o seu envolvimento emocional com tantos amigos no decorrer de sua vida.

Quem teve o privilégio de ouvir Nelson Freire, ao vivo, sabe que o piano dele era mágico e único. Ouvir Nelson representa um sentimento misto de emoção e prazer.

“A música tem esse poder de transmissão universal, talvez por ser etérea, não se pode segurar a música, ela precisa ser ouvida”.

Nelson Freire

Embora a publicação de Bellamy contenha elementos fascinantes sobre a vida e carreira de Nelson Freire, a obra é criticada por sua ênfase excessiva em detalhes íntimos, especialmente relacionados aos últimos anos e à morte do pianista, em detrimento de uma exploração mais profunda de seu legado artístico.

No entanto, vale a pena a leitura, pois mergulhar na vida de Nelson Freire faz com que estejamos mais perto de sua sensibilidade musical, e isso é sublime!

Ouviremos o Concerto de Nelson Freire, realizado em Brasília, em janeiro de 2019, pelo Instituto Piano Brasileiro no Auditório Fundação Habitacional do Exército. No programa: W. A. Mozart – Sonata No.11 (K.331); F. Chopin – Mazurca Op.17 No.4 em lá menor, Mazurca Op.33 No.4 em si menor, Barcarola Op.60; S. Rachmaninoff – Prelúdio Op.32 No.10 em si menor, Prelúdio Op.32 No.12 em sol# menor; H Villa-Lobos – A lenda do Caboclo; Albéniz e Déodat de Séverac – Navarra; Albéniz-Godowsky – Tango; Grieg – Dia de casamento em Troldhaugen.

Observe e desfrute da magia de ouvir o piano de Nelson Freire em um recital completo, incluído as voltas ao palco.