Essa foi minha segunda vez na Flip. Mas isso não quer dizer que a Feira Literária Internacional de Paraty não habita meus pensamentos há muitos anos. Como leitora (voraz, confesso sem modéstia) e como livreira (curiosa, atenta e sempre, da melhor forma que as editoras me permitem, como uma pequena livraria, tentando trazer os livros que acho que devem chegar nas mãos dos leitores deles), essa foi de longe uma das melhores programações. Pensada com um olhar cuidadoso e bonito, muito bonito, da curadora e livreira Ana Lima Cecílio.

Uma Flip feita por uma livreira, que conhece e vivencia uma livraria, que sabe os preâmbulos que essa livraria padece, carece e SOBREvive, possibilitou o caminhar pelas ruas, pelas mesas, encontrando e falando da Palavrear — esse negócio, também meu “ganha pão” e minha maior paixão —, a escritores de escuta e escrita carinhosa.

Me encantei com Luiz Simas, renovei meus votos de admiração com José Falero, me inspirei por Ilaria Gaspari e Marcela Dantés, criei mais argumentos com Danny Canny, fiquei esperançosa com Felipe Neto, reforcei minha predileção por Júlia Dantas, me emocionei com Atef Abu Saif, fiquei mais perigosa com Brigitte Vasallo e Geni Nuñez, mais profana com Gabriela Cabezón e Arelis Uribe e vi ainda mais beleza em Mohamed Mbougar Sarr e Jeferson Tenório.

Assim, fui para viver a Flip mesmo: assisti o máximo de mesas que consegui, e isso significou em flâneur pela cidade, indo de casa em casa, de auditório em auditório, como João do Rio jamais colocaria defeito.

A 22ª Flip, que tinha como homenageado o escritor e cronista João do Rio e sua característica de flâneur pela cidade. O tema é a rua, a cidade e a curadoria deixou o espaço urbano evidente. Genial a relação, curadoria que a Ana fez.

A Flip é quase uma utopia para descrever: milhares de pessoas, andando todos os dias pelas difíceis ruas de pedras, embaixo ora de chuva ora de sol, atrás de livros, palestras, autores ou de quem se disponha a falar de literatura. Parece verossímil em um país que dizem não ter leitores e alegam os valores de livros serem caros? Não, mas acontece. E aconteceu entre os dias 09 a 13 de outubro, em Paraty, Rio de Janeiro.

Onde mais poderia habitar, no mesmo espaço, Luiz Antônio Simas e Ilaria Gaspari? Danny Caine e Felipe Neto? Txai Surui e Atef Abu Saif? As improbabilidades dos encontros, que só acontece em eventos de apaixonados.

A mesa de abertura, com Luiz Antônio Simas, “as ruas têm alma – João do Rio, o convidado do sereno”, não poderia ter sido mais acertada por Ana. Luiz Simas foi um orador excelente. Apresentou João do Rio, suas contradições, um homem que não foi imune a seu tempo. Ao mesmo tempo que apresentava preconceitos, foi um defensor dos direitos das mulheres, defendendo nosso direito ao trabalho.

João do Rio também foi jornalista e confesso que ainda não o havia lido, assim, comecei por “Vida vertiginosa.” Nesse livro ele capturou bem a vida, a alma das ruas, a diversidade, os contrastes do Rio de Janeiro. Entranhou-se na cidade, assim como Luiz Simas. Então, poderia ter melhor apresentação? Ponto para Ana Lima.

Mesas com as ainda pouco conhecidas escritoras latinas americanas incríveis, que só uma livreira pensaria, como Jazmina Barrera, autora do excelente “Linea Negra” e Gabriela Cabezón Câmara, do igualmente bom, “As aventuras da China Iron”.

As relações que Ana estabeleceu nas escolhas das mesas, foi realmente de quem conhecia a fundo aqueles livros dos autores: o José Falero e a Bruna Mitrano, com suas escritas sobre a cidade e a ocupação – ou não – dela por determinadas classes socias.

Os dois são autores periféricos, longe da academia, de escolas de escrita criativa, e estão ali, ocupando um espaço que – quem diria? – é deles por excelência.

Encantada também em como Ilaria Gaspari escreveu um livro, “A vida secreta das emoções”, sua história através das emoções, transpondo o individual para se tornar coletivo, onde, de alguma forma, nos identificamos com cada uma delas, em uma espécie de ensaio de filosofia, autoajuda e auto ficção.

Interessante demais essa dupla das mesas: tanto Marcela quanto Ilaria escrevem livros a partir de notícias de jornal. Outro ponto para Ana: o paralelo entre duas escritoras que nada teriam entre si (uma italiana e outra mineira), muito menos com João do Rio, nascido em 1881, a não ser a cidade como fonte de inspiração. As ruas como matéria de escrita.

Fiquei surpresa com a ousada e inteligente estratégia da Ana Lima, genial curadora da Flip (teoria totalmente minha) ao convidar o youtuber Felipe Neto.

Com a mesa “como enfrentar o ódio” ele teve como companhia a jornalista Patrícia Campos Mello e a mediação inteligente, elegante da também jornalista Fabiana Moraes, que começou lendo os comentários negativos que teve, nas redes sociais, quando foi anunciado o nome do Felipe para a Flip.

Confesso que assim que vi, tive o mesmo pensamento. Mas logo eu percebi mais uma sagacidade de Ana. Com um clube de livros com mais de cem mil inscritos, (pago, diga-se de passagem), Felipe divulga a Amazon como link de compra.

Um rapaz que de direita passou a ser de esquerda combativo, chegando a ser sócio da ICL, o portal de notícias que pertence o Instituto Conhecimento Liberta, fundado por Eduardo Moreira, pode ser um excelente aliado na luta pela regulamentação dos preços dos livros.

A escolha de Ana foi extremamente assertiva: ganhou o apoio, a atenção e o compromisso de Felipe Neto e seus milhares de seguidores, para o apoio a Lei Cortez (resumidamente, é a regulamentação do preço de capa dos livros, ou seja, durante o primeiro ano, os lançamentos tem preços tabelados e praticados igualmente por todos).

A Flip mostrou o mundo pela literatura, ou seria a literatura pelo mundo?

Fico pensando em como voltar a rotina de uma livraria, os boletos sob a mesa, o aluguel a ser pago, editoras e seus acertos, depois de dias respirando literatura, falando sobre processos de escrita, à importância de se ler tal livro, conhecer tal autor, não perder o horário daquela programação de certa casa que vai discutir o mercado editorial.

Pois a Amazon irá continuar operando com seus preços obscenos, com sua entrega humanamente impossível de tão rápida. E o mercado livreiro (digo livreiro mesmo, porquê é a quem interessa essa conversa) continuará tentando SOBREviver.

Na mesa do norte americano Danny Caine, autor do “Como resistir a Amazon”, ele diz que tudo em uma livraria é político. E eu digo mais: tudo em uma livraria de rua é político.

Os relacionamentos no bairro, comunidade que se cria, as relações com as pessoas dali, tudo é político. E ainda nos apontou os perigos da Amazon, sendo o maior deles o fim das livrarias tais como conhecemos.

Mas saio dela uma otimista angustiada: vejo esperanças em um mercado que sangra aos poucos, esse das livrarias físicas, mas com as promessas de sempre renovadas e o coração, tempo e o amor sempre a postos para todo e qualquer diálogo que ajude.

E enquanto escrevo isso, no aeroporto, esperando meu voo de volta para minha cidade, minha casa, para a Palavrear, eu penso em quanto essa feira, festa, evento ou como significa para cada um, pode ter transformado toda a visão sobre o negócio livraria.

Sempre fico emocionada em eventos literários e como ser livreira me leva a lugares lindos, e a escrita é mesmo de uma apaixonada por livros. Então, desculpe a emoção.

Ana Lima postou um texto bonito, muito bonito, onde dizia que uma amiga falou que ela é a pessoa que mais ama livros que ela conhece. Já ouvi isso muitas e muitas vezes.

Achei bonito, muito bonito, essa “coincidência literária”, de textos escritos por mãos, olhos de leitoras, de livreiras apaixonadas.

Saio dessa Flip fervilhando de ideias: como justificar, com mais mil argumentos, a compra em uma livraria física, de preferência de rua, projetos novos e antigos para a Palavrear, mais textos para a coluna. Enfim, vida livreira respirando.