Um dos mais bonitos, emocionantes e também um dos meus vários livros preferidos, “Carta a D.”, de André Gorz, é uma excelente sugestão para o dia de hoje. Uma das mais memoráveis declarações de amor da literatura.

André Gorz foi um jornalista austríaco, reconhecido por seus trabalhos nas áreas de filosofia e sociologia.

Uma carta de amor dele a Dorine, a mulher com quem ele passou a vida e que há anos sofria de uma doença degenerativa e incurável. Nesta carta simples e bela, ele rememora a história de companheirismo, amor e militância intelectual que percorreram juntos.

Com o agravamento irremediável da doença de Dorine, os dois tiraram a vida juntos, e seus corpos foram encontrados lado a lado em 24 de setembro de 2007. Ela, por não suportar a vida com a doença; ele, por não poder pensar em uma existência sem ela, sua companheira por quase 60 anos.

“Partiram juntos porque não seria possível para ele viver um segundo sequer sem a presença dela.” Ecléa Bosi

Mais do que declarações de amor clichês, este livro é uma afirmação emocionante de companheirismo entre duas pessoas. Acredito que seja também, o modo que Gorz encontrou para registrar uma vida inteira de convivência e intelectual compartilhada.

Mas, sobretudo, uma espécie de redenção, de justificativa de Gorz a uma companheira que permitiu, facilitou e incentivou a sua vida dedicada a ser escritor.

Não só uma carta de amor, mas um pedido de desculpas. Um acerto de contas com as decisões, que por vezes, nos parecem acertadas em dados momentos.

Uma carta de amor que fale mais sobre o autor do que sobre sua “musa”? Talvez, mas como diz a incrível psicanalista Ana Suy (que também recomendo fortemente a leitura de “a gente mira no amor e acerta na solidão”), “não se ama sem fragilidade narcísica”, e talvez ele, bem mais do que ela, precisasse de uma redenção.

Assim, o livro começa com Gorz rememorando os momentos importantes de sua vida, inclusive, com demonstrações de desculpas à Dorine, que sempre o auxiliou na criação de seus textos, mas nunca recebeu os devidos créditos por isso.

Um texto delicado, cheio de nuances e sutilezas em suas declarações, me chama a atenção as noções de criação de identidade, já que ele, de origem judaica em um panorama pós-guerra, conseguiu a sensação de pertencimento com a contribuição fundamental de Dorine, como ele mesmo afirma.

“(…) eu não deixava de sentir que alguma coisa fundamental era comum a nós, um tipo de ferida original (…) – a experiência da insegurança. (…) Não importa: para ambos, ela significava que não tínhamos um lugar assegurado no mundo, e só teríamos aquele que fizéssemos para nós.”

É bonito ver como ele descreve a relação de parceria dos dois. Como escritor, o processo de escrita leva tempo e até mesmo um certo distanciamento do seu par, e é bonito ver como ele descreve o apoio emocional e, principalmente, intelectual que ela fornecia a ele.

Mas nem tudo são flores, como dizem por aí. Nesse livro, extremamente sincero, ele mostra também que amor é empenho. Que os momentos felizes também foram alternados com momentos de crise e dificuldades, como qualquer casal real.

Para longe de romantizar a decisão do casal ao suicídio, e esse nem é o foco do livro, visto que a publicação da carta foi um ano antes, é um livro bonito, comovente, que nos deixa com aquela sensação boa de que um amor companheiro é possível, apesar de.

“Carta a D.” tem vários trechos memoráveis, mas um que gosto especialmente, é como Gorz via a oficialização da relação deles como trâmites burocráticos desnecessários, já para Dorine, não era uma socialização da união, mas um significado pessoal de que estavam realmente juntos, um pacto para a vida inteira, que ele se esforçou para entender e realizar.

Uma comunhão intelectual que transcendia até mesmo a espiritual. Em outro trecho inesquecível, dessa vez sobre o ofício de escrever, e, para mim, amante das letras, de uma beleza singela, é esse aqui:

“Você dizia que tinha se unido a alguém que não podia viver sem escrever, e sabia que quem quer ser escritor precisa se isolar, tomar notas a qualquer hora do dia ou da noite, que seu trabalho com a linguagem continua mesmo depois de largar o lápis, e pode inesperadamente se apossar dele por completo, bem no meio de uma refeição ou de uma conversa. (…) Amar um escritor é amar que ele escreva, dizia você. ‘Então escreva!’”

O parágrafo final, ah!, esse sim, é de uma beleza que eu nem ouso transcrever aqui. Deixo para você, que me lê, o prazer de pegar esse livro, ali no comecinho, passar por cada passagem marcante, se emocionar, e finalmente chegar à página final, e desfrutar de um dos mais belos finais da literatura.