Discutir futebol e citar Pelé como referência é como falar de história e tocar no nome de Hitler – só que em polos diametralmente opostos. Assim, como o ditador representa o fundo do povo civilizatório em qualquer bate-papo de boteco, o Rei representa a Lei de Goldwin ao contrário, como ápice exemplar do que é a arte de jogar bola.

Como atleta, Pelé não tinha defeito – só efeito. Era pura habilidade, alta velocidade, total equilíbrio corporal, toda precisão e plena potência. Para tanto, usava o corpo inteiro, da cabeça aos pés. E todo ele de modo próximo à perfeição.

Quando Pelé encerrava sua carreira, surgia no Rio, puxando toda uma geração vitoriosa do Flamengo, um camisa 10 chamado Zico. Na verdade, Arthur Antunes Coimbra era um garoto mirrado, por isso passou a ser conhecido, primeiro em família, pelo diminutivo “Arthurzico”, um sufixo comum às origens portuguesas. Chegou ao rubro-negro, em 1967, com 14 anos, depois de algum tempo se destacando no futebol de salão – esporte que ainda não se chamava futsal àquela época. Seu aspecto franzino chamava a atenção negativamente e servia como anteparo a reconhecer a habilidade incomum que tinha com a bola nos pés.

Daquele ano até se firmar no time principal, em 1973, Zico passou por um trabalho intensivo de fortalecimento muscular, inclusive com uso de anabolizantes injetáveis. Foi chamado de “jogador de laboratório” e em 1969 por pouco não foi parar no Fluminense – mas o de Feira de Santana (BA), que o rejeitou justamente por ter um corpo pouco desenvolvido.

Zico treinado pelo Flamengo em 1971 | Foto: Arquivo Nacional

Zico foi o maestro de uma turma vestida de vermelho e preto que tinha ainda os laterais Leandro e Júnior, o zagueiro Mozer, os meias Andrade e Adílio e o polivalente Tita, para citar apenas os nomes que chegaram à seleção brasileira. Em 1979, num amistoso contra o Ajax, quando pela primeira vez me lembro de ver o Brasil jogando, ainda em uma TV preto e branco, Zico foi o nome mais escutado em meus ouvidos de criança impressionada com aquele jogo. A goleada de 5 a 0 me fez achar que a seleção era um time de super-heróis liderados pelo maior deles – o pequeno grande Galinho de Quintino.

A Copa do Mundo de 1982 foi a prova definitiva de que nem sempre o melhor vence. Como acontecera com a Hungria de Puskás em 1954 e a Holanda de Cruyff em 1974, o Brasil de Zico não levou a taça, mas entrou para a história pelo futebol jogado.

Quatro anos depois, ele lutou com todas as forças para se recuperar de uma lesão no joelho provocada por uma agressão de Márcio Nunes, zagueiro do Bangu, num jogo do Campeonato Carioca. O esforço foi premiado com uma convocação pelo mesmo Telê Santana de 1982. Zico entrou pela primeira vez em campo, saindo do banco, no jogo contra a Irlanda do Norte, o último da fase classificatória. Foi assim também com a Polônia, pelas oitavas-de-final, e no fatídico duelo contra a França. Zico entra aos 26 do segundo tempo e só precisou de cinco minutos depois para, com um passe que cortou a zaga francesa como uma faca quente na manteiga, deixar Branco na cara do gol. O goleiro Bats só teve a opção de fazer o pênalti… que Zico cobrou e errou.

O Brasil perderia a vaga na decisão por pênaltis, depois do empate por 1 a 1 no tempo normal e na prorrogação. O Galinho acertou sua cobrança – Sócrates e Júlio César foram os que erraram entre os brasileiros (o craque francês Michel Platini também falhou). Mas, quando se volta àquela Copa, o momento-chave sempre lembrado amargamente é o erro de Zico. Um erro que não teria acontecido se não fosse a jogada magistral que só poderia ali ser realizada por ele mesmo.

Entre uma e outra Copa, Zico havia passado rapidamente, mas deixando seu brilho pela modesta Udinese, no então fortíssimo Campeonato Italiano. Depois de conquistar mais alguns títulos pelo clube carioca, outra empreitada desafiadora: o futebol japonês, contratado pelo Kashima Antlers. Pode-se dividir o esporte por lá em a.Z e d.Z. Uma passagem que não acabou ainda – Zico ainda mantém vínculo com o clube, como uma espécie de dirigente de honra.

Fora de campo, o agora setentão Arthur manteve sempre um perfil discreto, embora não recluso. Ao contrário de outros nomes do esporte, como seu contemporâneo Sócrates, nunca foi de militar politicamente – embora tenha aparecido em vídeo de apoiadores famosos de Aécio Neves (PSDB) para a Presidência, em 2014.

Mas por que Zico seria o mais completo dos brasileiros pós-Pelé, entre tantos craques galácticos e premiados com a Taça Fifa? Porque a qualidade do futebol de um atleta não se mede por troféus, mas por mérito individual. E Zico foi quem mais se aproximou de notas máximas em todos os fundamentos. Era líder em campo, driblava bem e dava combate, também; chutava bem com a perna direita e com a esquerda; era ótimo na bola parada (um mestre das cobranças perto da área), tinha ótima presença de área e tem em sua lista de mais de 800 gols inúmeros feitos de cabeça; arrancava como poucos e fazia assistências (passe final) como ninguém.

Tome-se todos os grandes craques brasileiros pela média e cada um “gap” como seu calcanhar de Aquiles: Rivellino não chutava com a direita e corria longe das cobranças de pênaltis (embora fosse um exímio cobrador de faltas); Ronaldo, o Fenômeno, era sofrível no cabeceio. Ronaldinho Gaúcho e Romário não faziam questão de marcar ou dar combate; Rivaldo por vezes “sumia” em campo; Neymar nunca teve inteligência emocional para se firmar na confiança do torcedor.

Em tempo, para ligar os pontos ao início do texto: em uma entrevista ao programa Canal Pilhado, em 2020, quando completava 80 anos, Pelé citou um brasileiro entre os maiores jogadores da história: ao lado do português Eusébio, do holandês Cruyff e do alemão Beckenbauer, o Rei colocou o nome de Zico.