Uma vida alternativa para Henry Borel se um assassino, Jairinho, não tivesse amputado sua história
11 abril 2021 às 00h01
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O menino poderia ter se tornado médico, casado com a epidemiologista Eduarda, plantado árvores, ter escrito um livro e ter sido pai de duas crianças
Kafka não explica tudo, tanto que seu romance “O Processo” revela, por assim dizer, o espanto do homem com os absurdos do mundo (como a burocracia excessiva) — alguns inescrutáveis. Talvez impenetráveis pela avaliação meramente moral, que, embora necessária, às vezes não compreende a essência do que é e não do que queiramos que seja. Os gregos antigos, com seus dramas fabulosos, riam do trágico, quiçá para sugerir sanidade (“Édipo” é, a rigor, uma história terrível; os monstros precisam da humanização da arte e, até, da ciência para ser mais bem compreendidos). Neste sentido, embora tenha nascido na Grande Rússia, Tchekhov — e, possivelmente, Kafka — é o último dos gregos. A história que se vai narrar a seguir só pode ser entendida à risca com a leitura das informações dos últimos parágrafos, dispostos à parte do texto “principal”.
Relata-se a história do médico Henry Borel, de 33 anos.
Henry nasceu no Rio de Janeiro. Na infância, brincava (amava games) e estudava. Na adolescência, começou a se interessar por futebol. Jogou bola, era um volante talentoso e admirador de Neymar, Gabigol e Michael. A velocidade do último, o neto do vento, o impressionava. Entretanto, decidiu que, entre ser jogador e torcedor, era melhor comparecer aos estádios para vibrar com o Flamengo — o Mengão, no qual jogou Zico, o Galinho de Quintino.
Nas horas de folga, Henry lia Monteiro Lobato, Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Lygia Bojunga e José Lins do Rego. Tímido, não gostava de admitir que, durante a leitura de “Meu Pé de Laranja Lima”, de José Mauro de Vasconcelos, lágrimas, nada furtivas, ensoparam o lençol de sua cama. Aqui e ali, guardadas as proporções, a história de Zezé e do Portuga é “O Pequeno Príncipe” dos trópicos.
Um dia, depois de brincar com seu cachorro, o schnauzer Argos, Henry concluiu que queria ser médico. Durante o almoço, pediu um pouco de silêncio e disse aos pais, Monique Medeiros, professora, e Leniel Borel, engenheiro: “Quero ser médico”. Ante o espanto dos genitores, acrescentou: “Quero ser pediatra. Meu sonho é cuidar — bem — de crianças”. Novo suspanto. Era um garoto de 17 anos falando do que planejava ser, e cuidando até de apresentar a especialização que aspirava.
Inscrito no Enem, Henry conquistou notas de rara excelência. Decidiu-se por estudar Medicina na Universidade Federal do Rio de Janeiro para ficar perto dos pais — a quem amava. Chegou a pensar em estudar geriatria para cuidar deles mais tarde.
Na Faculdade de Medicina, Henry fez amigos e passou a namorar Eduarda, filha da médica Mônica de França Marques — uma pneumologista que admirava, acima de tudo, a dra. Margareth Dalcolmo — e do psiquiatra Eduardo Toledo da Silveira. Tornou-se um grande leitor, influenciado pelo professor Jotapê Perini, que, por vezes, conversava com Henry sobre os matemáticos Émile Borel, francês, e Armand Borel, suíço.
Certa feita, nas férias, Henry e Eduarda — que planejava ser epidemiologista —, decidiram ler a poesia de Manuel Bandeira. Era uma dica de Mônica. Ficaram extasiados com os poemas refinados e meio brincalhões do bardo de Pernambuco. Se interessaram ainda mais ao saberem que o mestre havia se tratado de tuberculose na Suíça, de onde voltou poeta maior — ainda que se dissesse “menor” — e um tradutor de primeira linha. A seguir, depois de uma passagem pela Livraria Travessa, aquela charmosa do Lebron, decidiram ler o romance “A Montanha Mágica”, do alemão Thomas Mann, que, segundo o dr. Jotapê, era filho de uma brasileira, de nome Julia Mann (née Silva-Bruhns).
O romance de formação conta a história do amadurecimento, existencial e intelectual, do jovem Hans Castorp. Tudo acontece num sanatório suíço para tuberculosos, onde, apesar da doença e das mortes, há uma vivência ativa, inclusive com discussões filosóficas que deixariam tanto Schopenhauer quanto Nietzsche mesmerizados. Terminada a leitura, Henry e Eduarda deram-se as mãos e concluíram que deveriam se casar assim que se formassem. Decidiram que teriam dois filhos — com os nomes prováveis de Klaus e Kátia.
Na faculdade, Henry se interessou por política. Depois de examinar as ideias de esquerda e de direita, decidiu pelo centro, pois descobriu-se moderado. Preocupado com a natureza, uniu-se a um grupo que decidira “salvar” o mundo plantando árvores.
Henry aprendeu que, no processo de arborização, precisava ficar atento a uma questão: devia plantar árvores adequadas ao local, inclusive para contribuir na preservação da fauna, sobretudo pássaros, que acorriam ao local em busca de alimentos.
Depois de plantar várias árvores, Henry disse a Leniel que pretendia se casar com Eduarda, ter dois filhos e escrever um livro. Sabendo que o filho era metódico e determinado, o engenheiro desejou-lhe sorte. Eduarda havia conquistado o coração dos pais de Henry.
Formado e especializado, Henry pediu ao pai ajuda para passar um ano na França. Queria, antes de pegar no batente, estudar em Paris e, ao mesmo tempo, vagar pela Europa, flanando pelas ruas, embebendo-se da cultura da velha civilização. Conversou com Eduarda e tomaram uma decisão: iriam juntos para a Europa, mas casados.
Na França, depois de frequentar o Café de Flore e Les Deux Magots — e fumar uma maconhinha, em Amsterdã; logo ele, um careta de marca maior (Eduarda experimentou um chocolate de maconha e não aprovou, sua praia era outra: um bom vinho) —, Henry e Eduarda decidiram visitar o Instituto Pasteur. Queriam saber onde se especializara Oswaldo Cruz, o médico e cientista patropi que decidiu vacinar os brasileiros, no início do século 20, contra algumas epidemias. Apaixonado pelo que viu, inclusive pela história do cientista suíço Alexandre Yersin, que combateu a peste e o cólera, com as armas da ciência — as vacinas —, chegou a pensar em trocar a atividade de médico pela de pesquisador. Eduarda sentiu-se em casa no Instituto Pasteur.
Mas Eduarda, que estava grávida, disse a Henry: “Vamos voltar para o Brasil, para trabalhar um pouco, ter nosso primeiro filho — Klaus — e depois a gente volta”. Mesmo contrafeito, Henry sabia que estava ouvindo a voz da razão. Voltaram para o Rio, mas acabaram se mudando para São Paulo.
Henry se tornou um pediatra requisitado, sobretudo pela competência e doçura com que tratava as crianças. Os pais logo se encantavam com aquele médico cuidadoso, paciente e respeitoso. Eduarda se tornou uma pesquisadora renomada do Instituto Butantan, criado pelo presidente Rodrigues Alves, que morreu de Gripe Espanhola logo depois de ser eleito pela segunda vez. Quando surgiu o super novo coronavírus — a Covid-20 —, contribuiu tanto no seu estudo quanto nas sugestões para se fazer a vacina. Os chineses ficaram impressionados com a expertise dos cientistas do Butantan e decidiram repassar 1 bilhão de dólares, a fundo perdido, para o instituto.
A felicidade de Henry e Eduarda redobrou-se com o nascimento de Kátia, uma bela menina, que, de cara, alegrou ainda mais a vida do menino Klaus, de 4 anos.
Um dia, à noite, deitado ao lado de Eduarda, Henry disse: “Plantei árvores, me casei com o amor de minha vida, tenho dois filhos lindos, sou médico por vocação. Sabe o que me falta?” Sempre brincalhona, Eduarda perguntou: “Uma amante?” Henry respondeu: “Nada disso. Preciso escrever um livro”.
Eduarda quis saber o assunto e se o livro já tinha título. Henry explicou: “O livro é sobre minha vida e o título já está escolhido: ‘Por que me mataram aos 4 anos de idade?’”. Eduarda espantou-se: “O quê?!” “Sim, não me deixaram ter uma história, uma vida. Não pude me casar e ter filhos. Não tive tempo de ler Manuel Bandeira e Thomas Mann, plantar árvores e viajar para Paris”.
Jairinho e Monique se tornaram monstros
O psicanalista Contardo Calligaris — certamente, um filósofo —, inquirido sobre se queria ser feliz, respondeu que preferia ter uma vida interessante. Ele viveu 72 anos e morreu recentemente, de câncer. Prestes a sucumbir, disse: “Espero estar à altura”. Estava, claro.
Henry Borel foi assassinado aos 4 anos de idade pelo médico e vereador Jairo Souza Santos Júnior (foi expulso do Solidariedade e deve ter o mandato cassado), conhecido como Jairinho (embora formado em Medicina, nunca exerceu a profissão). Portanto, o menino não teve tempo para ter a vida imaginada acima. Jairinho — dr. Assassinão —, ao matá-lo, sob tortura, quebrando-o, amputou sua história. Ele não teve tempo de estudar, de se formar, de se casar, de plantar árvores e ter filhos.
Não se sabe quais os motivos de dr. Jairinho ter “prazer” em torturar crianças — até matar uma delas, Henry, um garoto que, embora morando com a mãe, era desamparado, pois Monique não zelava por ele. Preferia o conforto e o poder que lhe dava Jairinho, o vereador carioca, a proteger o filho de 4 anos.
Na infância, Jairinho, que se tornou um Assassinão, teria sido torturado, assistiu alguma tortura? Não se sabe. O fato é que, adulto, se tornou um homem sádico, de perversidade ímpar, que, ao deixar de ser médico, se transfigurou no monstro. O que dizer de Monique, a mãe e professora? Tudo indica que, embora cúmplice de Jairinho, por não ter impedido o crime — ela estava na casa durante o assassinato —, sua participação foi indireta, por omissão. Mas que ninguém fique surpreso se, numa possível reviravolta, a história for ampliada, com o apontamento da participação direta da mãe na morte de Henry (pactos identitários entre perversos costumam ter elos de aço). O crime dela é de uma gravidade quase inominável.
A tendência — insista-se, tendência — é que, com a prisão e às portas de uma condenação, Monique faça a opção de arranjar outro advogado, que não o do namorado ou marido, e apresente outra versão. Poderá ser até falsa, se sugerir que tentou impedir a tortura, mas certamente, ante a iminência de uma condenação por 30 anos, dirá que era “ameaçada” por Jairinho-Assassinão.
Ante qualquer versão, apresentada ou a ser apresentada — e os depoimentos tendem a mudar, ao menos em parte, apesar da orientação do advogado (cuja função, no caso, é tentar inocentar culpados) —, Monique e Jairinho-Assassinão perderam aquilo que, na falta de uma palavra mais específica à brutalidade do caso, se pode chamar de humanidade.
Excesso da mídia e o choro de Maria Beltrão
A cobertura da mídia é excessiva? Não deixa de ser. Mas podia ser diferente? Talvez não. Como ignorar a história de um médico que mata — e, ainda por cima, uma criança indefesa — e de uma professora que corrobora com a violência? Médicos, sabe-se, salvam vidas. Professores educam e civilizam. Mas Jairinho-Assassinão — o padrasto, o pai-substituto — e Monique Medeiros são mestres da maldade e merecem a exposição negativa.
No “Estúdio I”, da Globonews, a jornalista Maria Beltrão, ao narrar o drama de Henry — que “gritou” por socorro, mas não foi ouvido —, chorou. Um choro artificial? Não parece. Ela não é uma atriz. Ficou, na verdade, comovida. Porque não é um robô, é um ser humano que, ao relatar o que havia acontecido, condoeu-se do menino e da dor do pai dele, Leniel Borel. Seu choro é um lamento e uma condenação da barbárie familiar. O rei da frieza, natural ou estudada, é Jairinho-Assassinão.
A babá Thayná de Oliveira Ferreira ouviu Henry, o acolheu — numa das vezes em que foi agredido, sentou-o no colo, deu-lhe banho cuidadosamente, porque a cabeça doía — e denunciou Jairinho-Assassinão para Monique. Fez o que devia fazer. Possivelmente intimidada, não pôde fazer mais — ante a omissão da mãe do menino e a pressão de um homem poderoso, filho de político e coronel da Polícia Militar. Oxalá a Polícia Civil não indicie Thayná. Além de testemunha, é uma espécie de segunda vítima do casal.