Gênio da matemático, embora tenha sido decisivo para salvar a Inglaterra, foi condenado pela Justiça por ter mantido relações homossexuais e se matou com apenas 41 anos

Marian Rejewski: o matemático contribuiu para decifrar os segredos da máquina Enigma Alan Turing: o matemático inglês é a prova que o indivíduo faz e ajuda a mudar  a história de seu tempo. Condenado por ser homossexual, optou por se matar
Foto 1: Marian Rejewski: o matemático contribuiu para decifrar os segredos da máquina Enigma
Foto 2: Alan Turing: o matemático inglês é a prova que o indivíduo faz e ajuda a mudar a história de seu tempo. Condenado por ser homossexual, optou por se matar

O filme “O Jogo da Imitação”, dirigido por Morten Tyldum, conta, de maneira fiel, parte da história da vida do matemático britânico Alan Turing, tido como o inventor do computador. A atuação de Benedict Cumberbatch como Turing é admirável. Na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), convocado pelo governo do primeiro-ministro Winston Churchill, o cientista criou uma máquina que permitiu que se revelasse a criptografia alemã. Espécie de pré-computador, a engenhoca desvendou os recursos da máquina Enigma, que produzia uma criptografia de qualidade. É possível que, graças a este trabalho, a batalha tenha durado menos. Porém, em 1952, Turing se suicidou (gostava do filme “Branca de Neve e os Sete Anões” e certamente por isso pôs cianeto numa maçã e a comeu). Só tinha 41 anos. A lei da Inglaterra considerava ilegal o relacionamento sexual entre dois homens (ou duas mulheres) e o pesquisador de Cambridge foi detido. Para evitar a condenação à prisão, aceitou fazer um tratamento, uma castração química, que provocou efeitos colaterais: suas mãos tremiam e as mamas cresceram. É quase possível sugerir que o Estado o matou.

A biografia clássica sobre o cientista, que estudou em Cambridge e Princeton, é “Alan Turing: The Enigma”, de Andrew Hodges. As editoras brasileiras não se interessaram em traduzi-la. Um livro sintético mas de qualidade é “O Homem Que Sabia Demais — Alan Turing e a Invenção do Computador” (Novo Conceito, 317 páginas, tradução de Samuel Dirceu), de David Leavitt. Os livros mais importantes sobre a Segunda Guerra Mundial citam o Ultra, mas nem todos mencionam Turing. A melhor biografia do mais importante estadista inglês do século 20, “Churchill” (Nova Fronteira, 897 páginas, tradução de Heitor Aquino Ferreira), de Roy Jenkins, apesar de não citar o nome do estudioso, resgata a importância do Ultra, o sistema que fez a revelação dos segredos da Enigma.

Quatro livros mencionam Turing de modo mais explícito: “Europa na Guerra — 1939-1945” (Record, 599 páginas, tradução de Vitor Paolozzi), de Norman Davies, “Inteligência na Guerra — Conhecimento do Inimigo, de Napoleão à Al-Qaeda” (Com­panhia das Letras, 448 páginas, tradução de S. Duarte), de John Keegan, “A Tempestade da Guerra — Uma Nova História da Segunda Guerra Mundial” (Record, 811 páginas, tradução de Joubert de Oliveira Brízida), de Andrew Roberts, e “Inferno: O Mundo em Guerra — 1939-1945” (Intrínseca, 766 páginas, tradução de Berilo Vargas), de Max Hastings. “A Segunda Guerra Mundial” (Bertrand Brasil, 1095 páginas, tradução de Fernanda Oliveira), de Antony Beevor, não apresenta o nome de Turing, mas concede alta importância ao Ultra. Os cinco historiadores são ingleses.

Andrew Roberts escreve: “… em 12 de fevereiro de 1940, o submarino alemão U-33 foi atacado ao lado da costa oeste da Escócia e os dois rotores extras utilizados pela Enigma naval acabaram capturados. Cinco semanas depois, um matemático de Cambridge, chamado Alan Turing — brilhante, excêntrico, homossexual — montou, na Escola Governamental de Códigos e Cifras, em Bletchley Park, [a] 60 km de Londres, um aparelho conhecido como máquina ‘bombe’, dispositivo eletromecânico capaz de fazer centenas de cálculos por minuto. Os outros heróis de Bletchley iriam incluir os matemáticos Stewart Milner-Barry e Alfred Dilwyn (“Dilly”) Knox”.

Norman Davies anota que, assim como os “alemães quebraram alguns dos códigos navais britânicos, os soviéticos quebraram alguns códigos alemães”. O historiador ressalva: “Mas a operação Ultra foi diferente por dois motivos. Ela quebrou o código Enigma do comando militar central da Alemanha. E o Enigma permaneceu quebrado de 1940 até o término da guerra. A capacidade britânica de ler as intenções do inimigo foi de valor inestimável”.

A história da quebra as cifras da Enigma não começou com os ingleses e com Turing. “Agentes poloneses se infiltraram na fábrica em que uma versão aprimorada da máquina estava sendo construída e descobriram os detalhes precisos de seu projeto. Três jovens matemáticos da Universidade de Varsóvia, liderados por Marian Rejewski, então desenvolveram um conjunto de fórmulas pelas quais o código podia ser lido”, registra Norman Davies. “O projeto Ultra (…) atraiu”, em 1939, “um extraordinário conjunto de excêntricos, cientistas, linguistas e matemáticos, com destaque para um gay solitário de Cambridge chamado Alan Turing.”

Com uma máquina Enigma nas mãos, os ingleses avançaram no estudo de suas vulnerabilidades. Com a “bomba de Turing”, uma calculadora eletromecânica, os britânicos passaram a ler “todas as transmissões da Enigma no espaço de três horas após o começo de cada dia. (…) E, em 1944, eles inventaram o primeiro computador eletrônico do mundo, o Colossus”. Norman Davies observa que, de “meados de 1940 até o fim de 1943, a posição da Grã-Bretanha foi terrível. Sem o Ultra, teria sido bem pior”. O historiador acrescenta: “Mas é preciso não nos esquecermos de que a Segunda Guerra Mundial não foi decidida pela luta da Alemanha com a Grã-Bretanha. É preciso concluir que o Ultra foi menos uma operação vencedora da guerra e mais um elemento vital na longa luta da Grã-Bretanha por sua sobrevivência. Com a possível exceção da Batalha de Kursk, não teve nenhum papel nos principais conflitos na Frente Oriental. Não há provas de que os criptógrafos soviéticos tenham quebrado o Enigma por si mesmos. O Exército Vermelho teve que se virar sem o Ultra”. O que Norman Davies está sugerindo é que há uma tendência a se subestimar a decisiva participação dos soviéticos na vitória dos Aliados. A guerra foi decidida sobretudo pelos políticos, como Churchill, Stálin e F. D. Roosevelt, e pelos militares.

Max Hastings diz que “o termo Ultra era uma designação coletiva aliada para uma grande variedade de chaves do Eixo, mais de duzentas em 1945, algumas das quais custaram a revelar seu segredos. (…) O manejo da inteligência Ultra pelos Aliados tornou-se sofisticadíssimo”. O historiador sublinha que os homens chaves para deslindar a Enigma foram Turing e Gordon Welchman. Ele segue na linha de Norman Davies: “Conhecer as cartas do inimigo não diminuía, por si, sua força nem garantia o sucesso nos confrontos entre exércitos e frotas. Contudo, as informações revelaram aos Aliados mais sobre o que o outro lado fazia e planejava do que fora concedido a qualquer combatente ao longo da história”.

John Keegan é o que explora a ação da Inteligência na guerra com mais atenção. A máquina Enigma, criada pelo alemão Arthur Scherbius, em 1918, era utilizada para cifrar e decifrar. Só em 1928 “o Exército alemão começou a utilizá-la em todas as comunicações suscetíveis de interceptação, o que na prática significava as mensagens por rádio. (…) A Enigma era um dos primeiros exemplos de máquina on-line. (…) Era compacta e fácil de transportar. Por fora, assemelhava-se a uma máquina de escrever portátil da época, com um teclado organizado alfabeticamente na versão militar. (…) A principal virtude da Enigma era sua capacidade de multiplicar as cifrações possíveis por um fator tão amplo que desafiava a decifração por um agente externo em qualquer dimensão prática de tempo”.

A Enigma era tida como perfeita pelos alemães. Tanto que os nazistas não perceberam que seus códigos haviam sido quebrados e acreditavam que a espionagem dos Aliados, junto com traições de seus parceiros, era responsável pelo vazamento de informações.

Um pecadilho do belo filme “O Jogo da Imitação” é sugerir que tudo começou com Turing e seus parceiros. Fica-se com a impressão de que os ingleses partiram do nada. Como notaram Norman Davies (acima) e John Keegan, os primeiros a obter informações a partir da Enigma “foram os criptoanalistas do Exército polonês. (…) O aspecto mais extraordinário do esforço polonês, e decididamente heroico do ponto de vista intelectual, foi que ele de início se baseou num exercício de matemática pura”. Porém, como disse Peter Calvocoressi, do centro inglês de criptoanálise em Bletchley Park, “para quebrar uma [máquina] cifradora são necessárias duas coisas: teoria matemática e auxílio mecânico”.

John Keegan frisa que “os poloneses acabaram por projetar uma série de instrumentos mecânicos auxiliares. (…) Mas o esforço original que lhes permitiu compreender a lógica da Enigma foi uma obra de puro raciocínio matemático. Por ter sido realizado sem nenhum mecanismo moderno de computação, apenas com papel e lápis, deve ser considerado um dos mais notáveis exercícios matemáticos de toda a história”. Henryk Zygalski, Jerzy Rozycki e Marian Rejewski — “o mais criativo” — foram os matemáticos que iniciaram o entendimento da Enigma e a decifração dos códigos da Alemanha. Já em 1932. Franceses também colaboraram na quebra das cifras alemãs.

Com a introdução de dois novos discos na Enigma, os poloneses, apesar de fazer a intercepção das mensagens, não tinham mais condições de lê-las. Eles passaram aos britânicos “máquinas reconstruídas” e “o conceito de submeter as mensagens interceptadas a um tratamento por folhas de papel perfuradas”. Os ingleses trocaram a teoria matemática pelos dispositivos mecânicos na decifração da Enigma.

O matemático Gordon Welch­man, de Cambridge, é visto por John Keegan como essencial para a decifração dos códigos nazistas. Mas o historiador admite que, “intelectualmente”, Turing era “superior a Welchman”. “O engenho de Turing era eletromecânico”, de alta “velocidade e potência, mas Welchman sugeriu uma alteração no desenho que permitia a eliminação rápida de dispositivos da Enigma que, apesar de possíveis, não eram funcionais”. Sem Turing, os ingleses poderiam ter avançado, mas demorariam um pouco mais. É o brilho do indivíduo na vida, na história.

Os Aliados, incluindo os ingleses, não conseguiram decifrar todo o sistema de códigos dos nazistas. “Três chaves navais da Enigma, inclusive a importante chave designada por Bletchley com o codinome ‘Barracuda’, usada para sinais de alto nível durante operações da frota, jamais foram decodificados. A chave de alto nível denominada ‘Pink’, da Luftwaffe, somente foi descoberta após um ano de uso, e depois disso apenas muito raramente; a ‘Green’, chave usada pela administração doméstica do Exército alemão, foi quebrada só 13 vezes durante a guerra, e mesmo assim com o auxílio de algum prisioneiro de guerra (“tal era a segurança da Enigma quando utilizada apropriadamente”); a chave ‘Shark’, dos submarinos alemães do Atlântico, permaneceu inquebrável entre fevereiro e dezembro de 1942, período crucial da batalha do Atlântico, e a chave da Gestapo, usada entre 1939 e 1945, nunca foi decifrada”, diz John Keegan.