Toureiro morto em Nova York procura ghost-writer para escrever sua biografia

31 maio 2020 às 00h03

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Quem é Sergio Ramos? Um jogador de futebol do Real Madri. O que é essencial e o que é acessório? O que o americano Steve Bannon tem a ver com Auschwitz?
Halley Margon
Especial para o Jornal Opção, de Barcelona
Cada um dos chamados serviços de streaming (são incontáveis) apresenta seu cardápio de mercadorias e como uma fábrica ávida para se auto afirmar age para ampliá-lo dia a dia, hora a hora, se possível antecipando desejos e sonhos ou tratando de inventá-los. Urge criar e lançar guloseimas, seja como for, raspar o fundo do tacho. Parir heróis, ídolos e celebridades, por exemplo. Fabricá-los aos borbotões. Sempre para os mesmos gostos, apetites ou desejos. Reformatando o que puder ser reformatado na maior velocidade possível. Girar a roda da fortuna. Fermentar minúsculas figuras. Serão rasas e de baixo custo. Sabe-se que durarão muito pouco antes que caiam no esquecimento e sejam substituídas. Não importa, pois terão cumprido seu papel, vendendo-se rapidamente e mantendo ativas as expectativas daqueles a quem se destinam. E eis que, da noite para o dia, as prateleiras são renovadas, plenas, entre tantas outras ofertas, de biografias com o frescor dos rebentos, películas revigorantes contando a história de figuras tão singulares como… Sérgio Ramos. (Pausa. Calma. Retroceda.)

Não, você nunca assistiu a nenhum jogo da NBA, sequer sabe que NBA é a liga de basquete profissional americana, mas não terá a menor dúvida em identificar o nome de Michael Jordan se alguém o mencionar. Nunca viu uma partida de futebol na vida (sim, pode que exista gente que nunca tenha visto uma partida de futebol), mas com certeza sabe quem foi Pelé ou Maradona. Acha uma chatice corrida de automóvel, mas dificilmente ignora legendas como Schumacher ou Senna. E assim por diante. Muito provavelmente, mesmo que não se interesse nem por basquete, nem por futebol, nem por Fórmula 1 (e muito menos pelo vastíssimo, bilionário e poderoso negócio que está por detrás do espetáculo), se interessará em saber dos feitos daqueles fenômenos cujos nomes consegue identificar, relacionando-os ao que fizeram na vida. Porque todos sabemos que se tratavam de seres humanos raros, portadores de talentos específicos excepcionais. E nós, os seres humanos, sempre tivemos uma certa (e justa) atração por esses nossos semelhantes aos quais nos referimos como gênios. Porque são ou foram.
De volta ao filme contando a vida de Sergio Ramos. Não, deixa pra lá. Faça uma breve busca pela Internet e vai descobrir de quem se trata. Se não quiser perder tempo, aqui vai: é um zagueiro (jogador de futebol que atua na defesa) que joga e sempre jogou no Real Madri da Espanha. E o tal documentário sobre a vida do dito cujo tem esse título mesmo, Sergio Ramos, bem modesto, como se bastasse, e o fulano fosse, digamos, um Maradona, ou Pelé, Michael Jordan ou um Muhammad Ali. Mas há, seguindo no bilionário mundo do futebol, títulos ainda mais extravagantes. Exemplo? Apache. Vale literalmente tudo para que os vendedores de bugigangas enfiem goela abaixo seus trecos às tribos do oeste selvagem e inculto. Apache, supostamente, deveria ser mais um retorno ao velho e bom faroeste — esse genial invento do cinema americano que década após década segue mostrando sua vitalidade. Mas, não. O brilhante publicitário ou assessor de imprensa (todo jogador de futebol profissional que se preze tem agora um assessor de imprensa ou de imagem ou o que seja, os mais bem pagos têm, além disso, assessores para roupas, para óculos, para encontrar bonequinhas de luxo que lhes sirvam de damas de companhia em reservadíssimos quartos de hotéis exclusivos em Paris) que batizou a película quis apenas atiçar a curiosidade do consumidor para mais um produto: um fenômeno do futebol mundial, um argentino chamado Carlos Tévez. O apelo adicional, e pretexto para o título, é o bairro miserável onde cresceu o jogador nos subúrbios de Buenos Aires (poderia, por suposto, ser qualquer outra extravagância, boa o suficiente para sugerir singularidades irrelevantes).

O que seriam dos demais assessores publicitários ou assessores de imprensa se não seguissem a receita? Então, observe-se essa pequena amostragem que coletei em alguns serviços de TV paga: “O Jovem Zlatan”, “As Origens de Hazard”, “O Sorriso do Magro” (sobre um tal de Juan Carlos Valerón), “Kroos” (esse, então, ainda mais genial que Sérgio Ramos) todos do mundo do futebol, e por aí vai.
O fim do (mundo) real
Nos diários que manteve durante a produção de “Fitzcarraldo”, o cineasta Werner Herzog relata uma reunião com potenciais produtores da 20th Century Fox para a realização do filme (aparentemente promovida por interferência de F. F. Coppola). “Ponto pacífico parece ser a ideia de um modelo de barco ser puxado sobre uma montanha em estúdio, ou até mesmo em um jardim botânico, que não pode ficar muito longe (de Los Angeles). Por que não San Diego, onde há estufas com bons trópicos? Eu perguntei o que são então os trópicos ruins, e disse que o pressuposto óbvio e indiscutível tinha de ser um vapor de verdade sobre uma montanha de verdade, não pelo realismo, e sim pela ideia de estilização de um grande evento operístico. A partir desse momento, as gentilezas entre nós assumiram uma fina camada de gelo.”
Já nas filmagens na Amazônia Herzog volta ao tema: “Queriam tirar de minha cabeça a história do navio sobre a montanha, proteger-me da minha própria insanidade, e a palavra foi apenas precariamente parafraseada: será que eu não poderia modificar o roteiro de forma que Fitzcarraldo não tivesse de puxar o navio por cima da montanha?”

E podemos recuar mais no tempo, quando, nos primórdios do cinema Erich von Stroheim teria mandado toda a equipe de filmagem de Ouro e Maldição para a locação no deserto, a uma temperatura de 48 graus, “onde as câmeras ficaram tão superaquecidas que tiveram que ser enroladas em toalhas geladas”. É claro que ao invés disso Von Stroheim poderia ter filmado num dos bem montados estúdios da Alemanha.
Agora, num tempo onde a virtualidade disputa a primazia do real com a própria realidade e no qual até mesmo a experiência (física) do amor é convidada a se transferir para a esfera da realidade virtual, a insistência aparentemente maníaca de Herzog (ou de Stroheim, cem anos atrás) parece ganhar mais sentido. Porque a realidade é que existe muito mais num filme que um rótulo embalado à disposição dos consumidores: há o trabalho que o antecedeu e o tornou realidade, o processo da sua realização. E isso importa. Porque um filme, assim como um edifício, ou um automóvel, não é um objeto encantado e muito menos o produto de um ato de magia ou um fetiche para ser adorado ou temido – embora deva assim parecer e assim ser vendido.
Bannon visita Auschwitz (e se encanta por Birkenau) — o fim da moral
Steve Bannon¹ descreve com entusiasmo sua visita ao complexo da morte instalado pelos nazistas no sul da Polônia.
“(Então o curador) disse: ‘Auschwitz era a escola de cavalaria polonesa quando os alemães a requisitaram. Aquilo foi o campo de prova. Birkenau, ao contrário, se fez a partir do zero’. Desenho industrial alemão. Tudo está em perfeito estado. Caminho por ali incrédulo, diz o ex-conselheiro de Trump, é engenharia de precisão até o enésimo grau… Um complexo industrial institucionalizado para assassinatos em massa.”

Não há nenhum tom de repulsa na voz do sujeito, simplesmente porque nele não há nenhuma repulsa àquele “complexo industrial… para assassinatos em massa”. Ao contrário, sua incredulidade é de puro encantamento por aquela “engenharia de precisão até o enésimo grau”. É disso que se trata: funciona (funcionou) e funciona à perfeição. O que o põe em estado de gozo. Se fabrica votos, relógios ou mortos, isso não importa. O importante é que fabrique e fabrique bem. Esse é um dos pilares do sistema Bannon de pensamento. Mas esse é também um dos pilares de todo o pensamento tecnocrata, a alma da ideologia que controla nossas vidas. O segundo pilar é que é sua marca registrada: revirar o chão do inferno à procura dos piores detritos da alma humana para criar, arregimentar e alimentar bandos políticos capazes de dar uma nova cara à extrema direita. Será amplo o repertório dos resíduos capturados pela peneira do assessor americano, mas dentre os componentes mais apreciados certamente estão o ressentimento e o ódio pelo outro, em estado puro, o mais facilmente manipulável possível.
(Voltarei a ele porque é preciso falar do partido da ultradireita aqui na Espanha, que em pouco mais de um ano, aplicando direitinho o receituário Bannon, cresceu de zero para 52 deputados no Parlamento tornando-se a terceira força política do país. Controlada a crise da expansão do coronavírus e imediatamente os principais dirigentes do VOX saíram a convocar manifestações de protesto para catalisar cada gota de rancor, cada partícula de descontentamento gerada em parcelas da população durantes os mais de dois meses de confinamento decretados pelo governo – com o apoio de todos os partidos, VOX inclusive.)
Nota
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