Suicídio de Hugo de Carvalho Ramos, autor de Tropas e Boiadas, teria a ver com sua homossexualidade?
18 agosto 2024 às 00h00
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Não é fácil escrever biografias alentadas de indivíduos que morreram muito cedo, sobretudo se não tiveram vidas aventureiras e, por isso, vulgarizadas por si ou terceiros. Há, claro, quem tenha vivido 20 anos, como Raymond Radiguet, 37 anos, como Jean-Arthur Rimbaud, ambos franceses, e 24 anos, como o uruguaio Lautréamont (Isidore Lucien Ducasse), mas parece ter vivido 80 anos. Pode-se viver muito em curto espaço de tempo? É o que parece. Dois escritores morreram relativamente jovens e deixaram obras vastas — como o russo Anton Tchékhov e o britânico D. H. Lawrence. Ambos viveram 44 anos. O inglês talvez tenha tido uma vida mais venturosa, com suas várias viagens pela Europa, Estados Unidos e México e suas ideias abertas sobre sexo. O contista da terra de Púchkin (este bardo viveu 37 anos, morreu em decorrência de um duelo) parecia ter uma vida interior rica e era um observador atento das cousas que ocorriam no seu entorno. Os cinco (seis, a se contar Púchkin, o pai da literatura russa moderna) ganharam biografias — algumas exaustivas — e são estudados por universidades de vários países.
Não é impossível, mas é difícil reconstruir a vida de um prosador e poeta como Hugo de Carvalho Ramos, que morreu a poucos dias de completar 26 anos. Sua obra é curta — ele queimou vários textos. Há o clássico “Tropas e Boiadas”, poesias, artigos e a correspondência. Ilumina alguma coisa de sua vida, mas não inteiramente.
Hugo de Carvalho Ramos talvez tenha sido o escritor que, de alguma maneira, “inventou” seus sucessores — como Mário de Andrade (menos, quem sabe), José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Monteiro Lobato, Guimarães Rosa, Bernardo Élis e Carmo Bernardes. O regionalismo universalista, se se pode dizer assim, do escritor nascido na Cidade de Goiás, em 1895 (Machado de Assis era vivo e morreu 13 anos depois), reverberou mesmo em várias obras, nem sempre com o devido reconhecimento dos “influenciados”. Exagero nas questão das influências? Talvez.
O autor de “Tropas e Boiadas” tem sido estudado com rigor por, entre outros, Albertina Vicentini. Mais recentemente, por Ricardo Domeneck , Lázaro Ribeiro de Lima, Antón C. Quintela e Rogério Santana. A Ercolano Editora brinda os leitores com uma bela edição dos poucos textos que Hugo de Carvalho nos legou. As “Obras Reunidas” incluem o celebrado livro de contos (lembra-me a beleza de “Vida de Menina”, de Helena Morley), poesias, artigos e a correspondência. A edição é tão bonita (e cuidadosa) que há, se posso dizer assim, um prazer especial em tocá-la. Um prazer sensual, táctil. O projeto gráfico-editorial é supimpa — cousa de profissionais.
Conhecer um escritor é, de certo modo, conhecer sua obra, ainda mais quando se trata de um autor cuja vida, por ter sido curta e reservada, é “lacunar”. Assim como as cartas, ilumina, um tiquinho que seja, o vivido por Hugo de Carvalho Ramos.
Mestre em performances culturais, historiador e cineasta, Lázaro Ribeiro de Lima apresenta, no primeiro volume das “Obras Reunidas”, uma curta, cuidadosa e delicada biografia do escritor, sob o título de “Hugo: um apanhado biográfico”.
Lázaro Ribeiro de Lima nada esconde — menciona, por exemplo, a possível homossexualidade de Hugo de Carvalho Ramos —, mas não é dado ao sensacionalismo. A biografia revela e questiona, mas de maneira respeitosa. A verdade, a rigor, é sempre respeitosa — a mentira é que não é.
De cara, Lázaro Ribeiro de Lima assinala que o prosador goiano “influenciou futuros regionalistas, como o mineiro João Guimarães Rosa, e encantou outros escritores que o leram, como, entre tantos, Mário de Andrade, Lima Barreto e Monteiro Lobato, que reeditou, no ano de 1922, a única obra de Hugo de Carvalho Ramos: ‘Tropas e Boiadas’”.
(Abro um parêntese: o crítico Gilberto Mendonça Teles disse, numa entrevista ao Jornal Opção, que a história do Saci foi publicada por Hugo de Carvalho Ramos e, mais tarde, apropriada, se é o mote justo, por Monteiro Lobato. De fato, o goiano registrou a história antes do paulista. O autor de “Tropas e Boiadas” talvez não tenha lido Monteiro Lobato, mas este bebeu e, quem sabe, se lambuzou na prosa do artesão literário do Cerrado. Mendonça Teles chega a sugerir plágio, mas talvez, para ser cordato, seja angústia da influência.)
O biógrafo assinala que “a obra de Hugo de Carvalho Ramos é composta de palavras, memórias e imagens de um sertão primitivo, pisado, sulcado por patas de animais, regado pelas chuvas e lágrimas de gente simples e sofrida que sobrevivia à dureza da vida em meio à pobreza e aos maus-tratos”.
Há um quê de Tchékhov na prosa, por sinal diferente, de Hugo de Carvalho Ramos? Talvez sim, sobretudo na aguçada percepção da realidade, de suas miudezas, que, naturalizadas pelo convívio diário, nem sempre se percebe.
Se disserem que o conto “Pelo caiapó velho”, no qual um jovem campesino se relaciona com uma morfética fantasmal, foi escrito por Edgar Allan Poe ou por José J. Veiga, seria possível acreditar. Há algo de sobrenatural (na crueza da realidade de uma alma morta-viva ou viva-morta), o de Poe, e uma espécie de realismo mágico, o de Veiga, na prosa do notável fabulista da Cidade de Goiás.
Sertão descoberto já na meninice
Filho do baiano Manuel Lopes de Carvalho Ramos, juiz de Direito na capital — na época, a Cidade de Goiás —, e da goiana Mariana de Loyola Ramos (o casamento “arranjado” não a fazia feliz, aparentemente), Hugo Juvenal Ramos (Hugo de Carvalho Ramos) “nasceu às 22 horas do dia 21 de maio de 1895, na Praça Primeiro de Junho (Praça do Chafariz)”. Há 129 anos.
Os pais de Hugo, ligados ao Gabinete Literário Goyano, eram leitores de obras literárias. O pai era poeta e admirador do “proeta” francês Victor Hugo. Por isso um dos filhos ganhou o nome de Victor e o outro de Hugo.
Precoce, Hugo de Carvalho Ramos começou a frequentar, de maneira assídua, o Gabinete Literário Goyano aos 6 anos. Aluno de Silvina Ermelinda Xavier, numa sala improvisada, teve como colegas o irmão Victor de Carvalho Ramos e Anna Lins dos Guimarães Peixoto (a poeta Cora Coralina).
Lázaro Ribeiro Lima relata que, “na maioria das vezes, Hugo preferia a leitura e a pesquisa sobre assuntos que o interessavam em vez dos estudos obrigatórios nas aulas e dos estudos das matérias para ingressar no Lyceu de Goyaz. Talvez o que mais encantasse Hugo fosse acompanhar o pai, que era juiz e percorria a cavalo toda comarca de Goiás”.
Mesmo menino, Hugo de Carvalho Ramos, assinala Lázaro Ribeiro Lima, “ficava atento a tudo e a todos, anotando o que conseguisse em um caderno que levava em seu embornal”. (Vale lembrar que Guimarães Rosa, ao tocar uma boiada pelo sertão de Minas, ao lado de vaqueiros experimentados, também levava uma caderneta para suas anotações a respeito da linguagem dos vaqueiros e da riqueza multifacetada da região. Mais tarde, o que viu e anotou apareceu, de maneira esplêndida e transfigurada, no romance “Grande Sertão: Veredas” e em alguns contos.)
Citando Victor de Carvalho Ramos, Lázaro Ramos de Lima relata que Hugo de Carvalho Ramos, o menino, era “encrenqueiro”. Brigava muito.
Aos 12 anos, aprovado no exame de admissão, Hugo de Carvalho Ramos começou a estudar no Lyceu de Goyaz. Doente, o pai teve de buscar tratamento no Rio de Janeiro e levou Victor de Carvalho Ramos. O futuro escritor ficou com a bisavó, Mãi-Chi (Francisca Ermelinda da Silva Marques).
Com a distância do pai, que amava, deu-se uma mudança drástica. O relato de Lázaro Ribeiro Lima: “De menino peralta e extrovertido”, Hugo de Carvalho Ramos “passou a ser um adolescente calado, introspectivo, isolando-se em meio a sua solidão filial”.
Ao sair da escola, Hugo de Carvalho Ramos se dirigia ao Gabinete Literário, onde ficava “lendo, anotando e rabiscando ideias”. Aos 14 anos, em 1909, escreveu “Diário de estudante”, “Dramalhões de faca” e “Bacamarte do sertão”. Mais tarde, escreveu a comédia “Os novos mosqueteiros”. Perfeccionista, queimou seus primeiros escritos.
Saci “expropriado” por Monteiro Lobato
Na casa de Mãi-Chi, Hugo de Carvalho Ramos “passava as madrugadas à luz de velas, lendo e escrevendo. (…) Hugo recordava suas andanças com o pai, momentos que serviram de inspiração para suas narrativas”.
“Foi no sobradinho [casa da bisavó] que começou a escrever os primeiros ensaios e contos que tiveram sucesso na imprensa goiana, inicialmente assinando como ‘H. R.’ e, logo depois, como ‘João Bicudo’. Entre esses contos estavam ‘O Saci’, ‘Pelo Caiapó Velho…’ e outros que no futuro seriam reunidos em seu único livro: ‘Tropas e Boiadas’”, anota Lázaro Ribeiro de Lima. (“O Saci”, remember Gilberto Mendonça Teles, teria sido, mais tarde, “plagiado” por Monteiro Lobato. A palavra mais precisa é “apropriado” — ou expropriado —, porque, quando se fala em Saci, lembra-se do autor de “Urupês”, mas não do criador goiano.)
Na Cidade de Goiás, na medida em que amadurecia como indivíduo e criador literário, Hugo de Carvalho Ramos ensimesmava. “O jovem Hugo começou a nutrir uma nostalgia e, ao mesmo tempo, uma tristeza que transmitia para seus escritos. Quase não saía, era metódico e, muitas vezes, impaciente com jovens de sua idade”, registra o biógrafo (que, torçamos, deveria escrever uma biografia alentada do escritor, porque combina, muito bem, razão e sensibilidade).
Hugo de Carvalho Ramos assistia filmes no Cine Goyano, na Cidade de Goiás. Quais filmes?
Em 1911, aos 16 anos, foi aprovado, em primeiro lugar, num concurso da Secretaria de Finanças. “Mal assumiu e já recebeu a triste notícia do falecimento de seu pai, Manuel Lopes de Carvalho Ramos, no Rio de Janeiro, no dia 9 de setembro de 1911”.
Estando em Goiás — o transporte era lento e dificultoso —, o escritor não foi ao Rio para o enterro do pai, ao qual era muito ligado. Manuel Lopes “o despertou para a literatura e lhe apresentou o sertão goiano e os sertanejos quando ainda era uma criança”.
A morte de Manuel Lopes abalou o escritor, que, cada vez mais solitário, passou “a ser considerado por muitos psicótico, maluco, estranho”. Ele era magro, pálido e magro. De uma tristeza infinita.
No Rio de Janeiro, onde passou a morar, escrevia o tempo todo e quase não saía de casa, exceto “com algum amigo para espairecer”. Apreciava ir à Quinta da Boa Vista. Talvez para, ficando próximo de árvores centenárias, “se sentir mais próximo das matas e do seu sertão”.
Hugo de Carvalho Ramos “participou de diversos concursos literários e escrevia para jornais do Rio de Janeiro”. Dedicado ao cronista João do Rio, o conto “A bruxa dos Marinhos” saiu na primeira página do jornal “Gazeta de Notícias”. Ao agradecer a deferência, João do Rio convidou-o a visitá-lo na redação. Mas o encontro não ocorreu.
De acordo com Lázaro Ribeiro de Lima, no Rio, Hugo de Carvalho “passou a ter crises de psicose, ou alguma doença que hoje talvez possa ser definida como esquizofrenia, depressão ou ansiedade”. Na época, falava-se em início de loucura. “Ele passava horas fumando na janela, observando o movimento da rua, o bonde, os transeuntes, sentindo que cada vez pertencia menos àquele lugar.”
Durante as crises, queimava vários de seus textos (infelizmente, nenhum Max Brod apareceu para contê-lo). Hugo de Carvalho Ramos ficava sem dormir, durante dias, e perambulava pelo quarto, à noite. Victor de Carvalho Ramos contou que o irmão “caminhava de um lado para outro recitando versos de vários poetas em voz baixa, o que fez a família procurar ajuda médica” (o texto entre aspas é de Lázaro Ribeiro de Lima).
Aos 20 anos, em 1915, Hugo de Carvalho Ramos começou a estudar na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. A saúde melhorou, ele voltou a escrever e publicou na revista universitária “Época”.
A sexualidade de Hugo de Carvalho Ramos
O autor de “Tropas e Boiadas” era homossexual ou bissexual? Com a cautela dos pesquisadores rigorosos, Lázaro Ribeiro de Lima escreve: “Existem especulações sobre a sexualidade de Hugo. A filha de Ary [irmão do escritor], Maria Lúcia de Carvalho Ramos, em depoimento ao meu documentário-ficção ‘Reminiscência’, afirmou ter ouvido em casa comentários sobre acharem que Hugo era de fato homossexual e que jamais assumiria por medo do preconceito que sofreria ou mesmo por autorrejeição”. Vale lembrar que, nas décadas de 1910 e 1920, o Brasil era um país conservador (e talvez continue, apesar de leis refrearem, em certa medida, os excessos do conservantismo).
Numa carta de 22 de dezembro de 1911, Hugo de Carvalho Ramos escreveu: “Admiro tanto uma mulher formosa, como aprecio um bom charuto; mas, entre uma mulher formosa e um charuto, opto pelo segundo. Ah! Um louro charuto!… Confidente mudo e amigo que arde, consome-se e transforma-se em branca cinza para não trair as confidências alheias”. No fim da carta, que está na página 272 do segundo volume das “Obras Reunidas, o escritor acrescenta: “Porém quando a lua passa, os sonhos vão-se, o charuto acaba e despertamos… Oh! Inferno da vida humana! O de Dante, a ti comparado, é fantasmagoria de crianças”.
O que diria um psicanalista, freudiano ou não? Um poderia, menos radical, sugerir: um charuto é apenas um charuto. Mas um analista mais heterodoxo certamente apontaria, por certo, o homoerotismo — sutil e, ao mesmo tempo, evidente. É o relato de um sonho e a exposição de um desejo (reprimido, inclusive pela linguagem)? É o que parece.
Por não ter concluído algumas disciplinas, Hugo de Carvalho Ramos acabou por não se formar, o que “o deixou muito contrariado e desanimado, e que fez seu foco voltar de forma mais intensa à literatura”.
Como se cogitou uma nova edição de “Tropas e Boiadas”, Hugo de Carvalho Ramos escreveu novos contos, como “Alma das Aves”, “Caçando perdizes…” e “Peru de roda”.
Em 1920, Hugo de Carvalho visita o irmão Victor em Uberaba e, em Araxá, consegue um emprego de agente especial de recenseamento”. Numa carta para a irmã Ermelinda, que morava no Rio, o escritor admite que, além de se sentir triste, tem crises nervosas. Por isso retorna ao Rio.
Em 1921, muito triste, quase não fala com as pessoas. Depois de cuidados médicos, voltou a escrever. “Tinha o desejo de finalizar um novo livro no qual já vinha trabalhando há algum tempo. Segundo Victor, seria mais um ‘estudo social da vida interiorana’.”
Numa carta para Ermelinda, Hugo de Carvalho Ramos anota: “Será uma como apoteose da vida do sertão, não como Euclides da Cunha a escreveu, mas mais suave, com cambiantes de luz e sombras leves a lilás, à elegia, ao ditirambo, à epopeia e ao idílio. Mas isto é um sonho, um simples sonho meu e irrealizável: falta-me tudo, até a fé e a obstinação que são as grandes alavancas do mundo”. Seria um livro mais literário, como “Grande Sertão: Veredas”? Claro, não é possível saber. Mas, ao sugerir que seria diferente de “Os Sertões”, talvez estivesse sugerindo que seria literatura, digamos, pura, se isto existe. (O livro de Guimarães Rosa é de 1956, publicado 35 anos depois da morte do prosador goiano.)
Em crise, sublinha Lázaro Ribeiro de Lima, Hugo de Carvalho Ramos colocou fogo, mais uma vez, nos seus manuscritos.
“Nove dias antes de completar 26 anos, na manhã do dia 12 de maio de 1921”, o corpo de Hugo de Carvalho Ramos “foi encontrado dependurado na rede que levara de Goiás, onde passava as horas de descanso”, relata Lázaro Ribeiro de Lima. Era um menino de 25 anos, um pós-adolescente. Mas, acima de tudo, era um escritor feito, consumado, que reverberou em importantes obras literárias a seguir. Talvez tenha sido o inventor do “sertão” que Guimarães Rosa consagrou na sua obra-prima. Lembrando que Goiás é várias vezes citado no romance do mineiro de Cordisburgo.
(As fotografias que acompanham o texto são dos dois volumes de “Obras Reunidas”, de Hugo de Carvalho Ramos. Os autores são desconhecidos. Adquiri exemplares na Livraria Travessa, do Shopping Casa Park, em Brasília. O livro já pode ser pedido nos sites da Travessa, da Livraria da Vila e da Livraria Martins Fontes.)
[Email: [email protected]]
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