2 volumes das Obras Reunidas de Hugo de Carvalho Ramos saem com Tropas e Boiadas, poemas, artigos e cartas
11 agosto 2024 às 00h00
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O escritor mineiro Guimarães Rosa é, por certo, filho de Euclides da Cunha, de Hugo de Carvalho Ramos, de Afonso Arinos e, entre outros, de José Lins do Rego. “Miguilim” é enteado de “Menino do Engenho” (um dos mais belos romances patropis sobre a infância), de Zé Lins.
Quando se fala de Guimarães Rosa é de bom tom compará-lo ao irlandês James Joyce, cujo “Ulisses” seria pai de “Grande Sertão: Veredas”, e do americano William Faulkner, autor de “O Som e a Fúria”. De fato, na linguagem, Joyce talvez seja mesmo o pai do homem de Cordisburgo e Faulkner talvez seja o tio. Assim como Goethe, o de “Fausto”, é uma espécie de avô.
Porém, nas cousas do sertão, a respeito da natureza, da linguagem econômica e, por vezes, enviesada dos homens e mulheres, dos costumes e valentias, Guimarães Rosa bebeu, de maneira transformada, em “Tropas e Boiadas”, a obra-prima de Hugo de Carvalho Ramos (1895-1921) — que viveu apenas 25 anos, entre os séculos 19 e 20.
Monteiro Lobato bebeu e comeu em Hugo de Carvalho Ramos. Tanto que a história do Saci, do escritor do Cerrado, se tornou uma história criada — na verdade, recriada — pelo autor da “série” Sítio do Picapau Amarelo.
Portanto, pode-se sugerir que Hugo de Carvalho Ramos é uma espécie de Rio São Francisco da grande literatura brasileira.
O que se deve fazer por um esplêndido contista como Hugo de Carvalho Ramos? Nada mais nada menos do que publicar toda a sua obra, para que possa ser avaliada no conjunto.
Mas o escritor, mesmo sem nenhum outro texto, sobreviveria devido a excelência de “Tropas e Boiadas” — cujo regionalismo antecipa o regionalismo do Nordeste e, dada a caracterização psicológica das personagens, talvez, aqui e ali, o supere.
O escritor não cabe unicamente no rótulo estreito de regionalista. Também não é um mero “retratista” — um repórter literário — da realidade do mundo rural. Pelo contrário, é um escritor poderoso, espécie de Rimbaud da prosa, e recria a realidade pela literatura. A realidade é um fato, a literatura outro — enriquecendo-se pelo, digamos, casamento… às vezes conturbado.
A Editora Ercolano é responsável pela publicação de dois volumes das “Obras Reunidas”, de Hugo de Carvalho.
O primeiro volume contempla o clássico “Tropas e Boiadas” — contos magníficos e incontornáveis — e poesias de Hugo de Carvalho Ramos. Texto da editora ressalta a presença do elemento religioso — quiçá mais místico — na poética do bardo goiano.
Numa prova da seriedade da edição, há um aparato crítico que pode colaborar para se apontar o lugar de Hugo de Carvalho Ramos na literatura brasileira (e, quem sabe, como uma espécie de “inventor” da literatura goiana — o nosso Púchkin).
O pesquisador Lázaro Ribeiro expõe a biografia do escritor, que, como Mário de Andrade — que sofreu sua influência —, não era “um” ou “dez”. Era trezentos e cincoenta (como escreveria o autor de “Macunaíma”).
Como o autor de “Pauliceia Desvairada”, Hugo de Carvalho era homossexual? É provável. A sexualidade humana, masculina e feminina, é mais complexa do que as regras e prisões sociais indicam e postulam.
Ricardo Domeneck examina a poesia de Hugo de Carvalho Ramos. Uma das mais importantes estudiosas da obra do prosador-poeta — proeta —, Albertina Vicentini (autora de um livro decisivo sobre o autor) analisa, de acordo com a editora, “o contexto literário dos escritos com a atualidade”. Talvez para mostrar o quão Hugo de Carvalho Ramos está vivo, vivíssimo. A percepção aguçada de seu tempo — um tempo que muda, mas deixa sedimentos em outros tempos — é uma das características dos contos de “Tropas e Boiadas”.
O irmão de Hugo de Carvalho Ramos batizou seus escritos esparsos de “Plangências”. Em 1950, foram publicados pela Editora Panorama. Professor da Universidade Federal de Goiás, Antón Corbacho analisa tais textos.
Artigos de Hugo de Carvalho abordam, segundo a editora, “uma série de temas, como a produção agrícola, o futebol e a literatura”. Há também a correspondência, “que revela uma série de questões existenciais (não aceitação da própria orientação sexual?), demonstrando assim uma personalidade tão hiper-sensível e frágil quanto artística, unindo o que a tradição europeia e o mundo caipira têm de mais profundo”.
Rogério Santana, professor da UFG, “enfoca a obra de Hugo sob o viés da atualidade”. Não li seu ensaio, mas é provável que o mestre esteja mais preocupado em mostrar a atualidade de Hugo de Carvalho Ramos — a sua percepção aguçada da realidade. Uma realidade altamente contaminada pelo passado — que, como sugeriu Faulkner, nunca está morto, e nem mesmo é passado.
O Brasil mudou, está em processo de mudança, mas guarda muito dos tempos idos. (Note-se que a escravidão volta e meia reaparece num latifúndio brasileiro — mesmo numa vinícola altamente capitalista e “moderna”. O moderno no país nunca é inteiramente moderno, porque a barbárie e a “civilização” irmanam-se, com a primeira derrotando, por vezes, a segunda.)
Formado em Direito, Hugo de Carvalho de Ramos era um leitor contumaz, resultando de sua formação ampla e multidisciplinar uma literatura que nada tem de caipira, exceto o tema, que, no fundo, é universal (a literatura russa, de Tolstói a Tchékhov, fala da mesma coisa, com variações na forma do registro literário). Ao contrário, é sofisticada. Sua linguagem elaborada, a criação de personagens psicologicamente ricos — à semelhança dos de Clarice Lispector —, chamou a atenção de Monteiro Lobato e Guimarães Rosa. Com anzóis especiais pescaram o que há de melhor na prosa do escritor goiano — a linguagem perspicaz para retratar homens, mulheres e a natureza.
O release da editora assinala sobre o “modernismo” do autor de “Tropas e Boiadas”: “Hugo soube representar com talento extraordinário as questões mais profundas e obscuras da alma humana a ponto de desafiar classificações. Nesse sentido, a obra de Hugo de Carvalho Ramos ultrapassa certo limbo do chamado pré-modernismo. Os múltiplos focos narrativos e a riqueza de detalhes tornam os textos ora semelhante a pinturas escritas, ora a ensaios”. Aponta-se, com justiça, “o viés psicológico refinado” de sua prosa.
Tal como Kafka (que entregou manuscritos para Max Brod queimar, mas queimou ele próprio alguns deles), Hugo de Carvalho Ramos queimou “alguns de seus manuscritos”.
Sabe aquela joia que contém ouro e diamante e é tão bela que extasia? Pois é: estamos falando de “Tropas e Boiadas” — uma obra-prima que fala à razão do cérebro e à emoção do coração. Palmas para a Ercolano Editora e para Lázaro Ribeiro, Ricardo Domnenek, Albertina Vincentini, Antón Corbacho e Rogério Santana. Os cinco, ao lado de Hugo de Carvalho Ramos, são o que o país tem de melhor: a excelência da pesquisa séria, rigorosa e atenta à criação literária.