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O presidente seria “teflon”? O que se sabe é que o excesso de crítica, sem nuance, pode contribuir para reforçar sua musculatura

O Grito, de Edvard Munch

O estudante Carlos Henrique sugere que eu discuta a relação entre as críticas da imprensa e o aumento da popularidade do presidente Jair Bolsonaro. O que o leitor quer saber, efetivamente, é se a imprensa perdeu sua “força” e se o gestor federal é mesmo “teflon”.

O fato de a imprensa criticar Bolsonaro e o presidente se tornar mais bem avaliado pela população, ao contrário do que se pode pensar, é, em parte, positivo — sobretudo para a imprensa. Talvez retire de nós, jornalistas, um pouco da onipotência de que julgamos dispor.

Desde pelo menos Carlos Lacerda, tornou-se senso comum a ideia de que jornalistas podem e devem derrubar governantes, o que é um equívoco. Não é sua função. A missão da imprensa é informar bem. Mesmo quando opinar, contribuindo para formar, não é seu papel fazer cabeças ou destruir indivíduos — políticos, empresários e outros.

Lembro-me que, quando comecei a trabalhar em jornal, há 33 anos, ouvia na redação: “Jornalista bom é aquele que escreve artigos poderosos, capazes de acabar com a carreira de um político”. Não era minha cartilha, pois sempre duvidei do poder excessivo que atribuem à imprensa — o tal quarto poder. Informar de modo objetivo, da maneira mais ampla possível, é um serviço ao leitor. Escolher uma pessoa para malhá-la o tempo inteiro, sem abrir espaço para sua resposta, é um papel que, aos poucos, vai se tornar inglório, depois de certa empolgação inicial do público.

Imagem: reprodução

A GloboNews não é, evidentemente, um partido político e seu jornalismo, crítico e atento, é de primeira linha. As críticas ao governo Bolsonaro são, no geral, pertinentes. Mas a insistência, a repetição dos mesmos assuntos, pode acabar cansando os telespectadores. Por mais que a crítica seja verdadeira, o excesso de opiniões, no lugar de convencer as pessoas, pode levar a uma “naturalização”. A partir de certo momento, com a apresentação de mais do mesmo, os indivíduos podem começar a reagir assim: “Não tem jeito, não. O Bolsonaro é um gigante, pois a Globo bate o tempo todo e não acontece nada”. Não se deve parar de criticar, pois a crítica ilumina a vida e robustece a democracia, mas o excesso, o da repetição, às vezes gera mais dúvida do que esclarecimento. Na questão do desmatamento da Amazônia, a razão não está com Bolsonaro e alguns de seus ministros, mas, para parte dos leitores e telespectadores, fica a dúvida.

Com uma equipe de excelentes profissionais, tanto a Globo quanto a GloboNews precisam trabalhar mais com reportagens locais, enviando repórteres à Amazônia, para mostrar, presencialmente, o que acontece por lá — inclusive as boas iniciativas de preservação, se existirem. Fica-se com a impressão de que, na Amazônia, só há desmatamentos e incêndios, mas não seres humanos e outros. Entretanto, a região é habitada e precisa ser mostrada de maneira mais ampla. Quando precisam recorrer a uma especialista, no geral jornais e emissoras de televisão ouvem poucos especialistas da área. A Globo deveria enviar André Trigueiro para a Amazônia, deixando-o lá pelo menos por três meses. É provável que, ao voltar, será outro repórter, outro homem. Estão transformando o jornalista num articulista, um crítico severo — e, por sinal, correto —, mas podem acabar retirando dele o que tem de melhor, a capacidade de mostrar os fatos de maneira objetiva. A admirável Miriam Leitão, uma articulista de primeira linha, volta e meia sai do casulo e faz reportagens sensacionais — uma delas com indígenas. A jornalista gosta de ver as coisas de perto, de senti-las.

Pintura de Tommy Ingberg

A musculatura de Bolsonaro

Bolsonaro tem sido “apaziguado” pelos militares — que são realistas e não querem saber de golpe de Estado e ditadura (a fama de “ditadores” nunca fica para civis) — e pela realidade. Ao se aproximar do centrão, do realismo, o presidente deu provas de que começa a compreender o país real para o qual foi eleito. Ele não é moderado, e nunca o será. Mas está se apresentando como tal, o que está agradando a sociedade (e irritando alguns de seus soldados invernais da Guerra Fria, como Olavo de Carvalho).

Bolsonaro é um populista de matiz autoritário, uma espécie de Jânio Quadros que tem a confiança da caserna. Por ter passado quase 30 anos como deputado federal no Congresso Nacional entende, de maneira razoável, a lógica das pressões, a hora de avançar e a hora de recuar — no qual é auxiliado pelos militares, que são estrategistas, e por alguns políticos, os mais realistas. O presidente cria tensões, põe o país para discuti-las, e se apresenta de maneira enfática e empática com o povão. Durante a pandemia, com os 600 reais de auxílio aos pobres, caiu nas graças das massas. No Nordeste, segundo pesquisa do instituto Vox Populi, está “absorvendo” parte do eleitorado que votava no PT de Lula da Silva.

Jair Bolsonaro: e se a imprensa não estiver compreendendo o político? | Foto: Reprodução

Num primeiro momento, seu estilo machão — e até irresponsável — de enfrentar a pandemia desagradou, e com razão, milhões de pessoas. Mas milhões também avaliaram Bolsonaro como corajoso e preocupado com as empresas (que não são apenas de ricos) e com os empregos das pessoas. A assistência dos 600 reais sedimentou a ideia de que o presidente se preocupa — na prática — com os despossuídos. O fato de se manter firme em suas posições, enfrentando os poderes — inclusive a imprensa —, também parece agradar. Aliás, quando muda de posição, às vezes por conveniência, culpa os sparrings de sempre, os políticos, como se ele também não fosse político. Posta-se como “vítima” de forças não mais ocultas.

A relação de Bolsonaro com a imprensa — não só com a Globo, a GloboNews, “O Globo” e a “Folha de S. Paulo” — é a pior possível. O principal culpado é o presidente, que não aceita crítica e é agressivo com jornalistas, atacando-os de maneira escancarada e desrespeitosa. Chegou a falar que tinha vontade de esmurrar um profissional. O crescimento da popularidade, sinalizando que parte significativa dos brasileiros o apoia — 40% —, pode levá-lo a se tornar ainda mais arrogante? Talvez. O que será um equívoco. Seu capital político pode crescer ainda mais se se mostrar um pouco mais conciliador. Diz-se “um pouco” porque não há como mudar Bolsonaro. Seu sucesso advém da maneira como age, da ideia de que é incontrolável e imprevisível. De alguma maneira, é parecido (não igual) com Lula da Silva, do PT. Um James Bond da política (parece ter licença para desagradar). Uma espécie de “meio camaleão” que faz tudo para não ser visto como totalmente camaleão: adapta-se, mas força o “ambiente” a se adaptar à sua epiderme. Os militares o moderam, mas, aqui e ali, leva os militares a se radicalizarem. Os generais Augusto Heleno e Braga Neto são bolsonaristas em público, mas, privadamente, abrem o verbo com o presidente. Caem aqueles — mesmo se militares — que não seguem a lógica enviesada de Bolsonaro.

Pintura de Igor Morski

Há quem diga que Bolsonaro é “bronco”. Sua maneira de falar sugere isto. Mas é totalmente enganoso. O presidente é tão inteligente quanto Lula da Silva. São inteligências naturais, ou melhor, construídas pela vida — não pelos livros. Por isso, não há um conteúdo intelectual, refinado — como o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Políticos que “carregam” na pele a interpretação da “psicologia” de seu povo — de seu país — são perigosos para seus intérpretes, que às vezes não têm parâmetros adequados, científicos, para entendê-los e explicá-los. A própria vitória de Bolsonaro, em 2018, tem sido explicada, mas pouco compreendida. Por que, exatamente, ganhou? Faltam estudos detidos sobre a ascensão de uma direita não-iluminista, que casou vezos autoritários com vezos liberais — e subordinando os liberais, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, entre outros — e venceu a esquerda e praticamente aniquilou o centro político. Se não compreenderem Bolsonaro, como ele se tornou presidente, seus adversários vão contribuir, direta ou indiretamente, para que obtenha um segundo mandato. Mais do que “bater”, é preciso “entender” o que é, em termos políticos e até geracionais, este direitista que deixa perplexa até a direta (Olavo de Carvalho está assustado, porque não consegue, assim com a imprensa e a esquerda e o centro, entendê-lo).

A Globo e a GloboNews têm um diretor de Jornalismo, Ali Kamel, que, além de jornalista competente, é sociólogo por formação. Trata-se de um intelectual brilhante. Mas não está conseguindo “retirar” Bolsonaro do sangue da Globo. É como se o presidente estivesse “possuindo” o jornalismo da rede, que, portanto, estaria “possuída” pelo “espírito” de Bolsonaro. De alguma maneira, ainda que indiretamente, as emissoras da Globo são as que mais abrem espaço para Bolsonaro. É provável que esteja caindo numa armadilha: a rejeição em excesso de Bolsonaro pode estar levando a “alguma” aceitação, pois, como se sabe, criou-se, durante anos — com decisivo apoio das esquerdas —, um sentimento anti-Globo na sociedade brasileira. A lógica das ruas e, quiçá, dos gabinetes: quem rejeita a Globo não pode ser tão “ruim” assim. Talvez seja a lógica do ressentimento contra uma rede poderosa e longeva.

Ali Kamel, diretor de Jornalismo da TV Globo: e se o jornalismo da rede estiver sendo “absorvido”, ainda que indiretamente, por Jair Bolsonaro? | Foto: Reprodução

Ao colocar Bolsonaro no ar, o tempo inteiro, tentando desgastá-lo, a Rede Globo pode estar contribuindo para o aumento de sua popularidade. Teria de retirá-lo do ar? Claro que não. Mas precisa moderar seu jornalismo, torná-lo mais perceptivo e nuançado, porque pode estar sendo “devorada” pelo presidente.

Inteligência e humor devem ser irmãs no jornalismo. No momento, na Globo, sobra inteligência, mas faltam humor e contraponto. Os jornalistas, sobretudo da ótima GloboNews, estão carrancudos, mal-humorados. Os brasileiros — quiçá a maioria — não apreciam isto. Somos um povo, digamos, malemolente. Até a simpaticíssima Maria Beltrão, que nasceu para iluminar e coordenar — e fala muito bem, com forte empatia —, está ficando com o semblante “carregado”. No “Em Pauta”, no qual todos aparentemente são convocados para “bater” em Bolsonaro, Jorge Pontual, de visão mais cosmopolita, parece um peixe fora d’água. Será que o telespectador quer mesmo ouvir — o tempo todo — debates infindáveis e infrutíferos sobre a última “bestagem” de Bolsonaro? Talvez o “Em Pauta” e o “Estúdio I” devam diversificar a pauta. Antes que fiquem rotulados como “Em Pauta do Bolsonaro” e “Estúdio B” (de Bolsonaro).