Roubo de celular legalizado pelo STF?
09 fevereiro 2020 às 00h00
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Pessoas não conferem nem o nome da página onde a informação é publicada, o que torna qualquer maluquice possível, até tornar legal roubo de celular
As informações falsas divulgadas em sites, blogs e redes sociais alimentam uma cadeia na era da pós-verdade das mais impressionantes. Talvez a maior motivação de todas seja alimentar uma necessidade de confirmar um discurso de crítica, ódio ou rejeição a algo ou alguém. Quando se trata a críticas a figuras consideradas públicas, a aptidão para inventar ou crer em coisas absurdamente infundadas supera o limite do razoável.
Eis que uma página chamada “Jornal 316 – O jornal da pátria amada”, da qual nunca tinha ouvido falar, publicou na quinta-feira, 6: “Urgente: Roubar celular poderá ser legalizado pelo STF“. A começar pelo apelo sensacionalista com o uso da palavra “urgente” no início do título, começava ali uma trama de ficção das mais grotescas da internet.
Só que, no momento em que a Agência Lupa teve contato com o conteúdo da postagem, 508 perfis no Facebook já tinham compartilhado a publicação. Estavam ali 518 comentários, 1.525 curtidas e 2.551 interações com o conteúdo na rede social.
Armadilhas digitais
O site, que continua com o link da falsa informação no ar, é cheio de armadilhas para quem entra nele. A começar pela quantidade incontável de publicidades que surgem, antes, depois e nas laterais do texto fantasioso que induz a críticas baratas ao Supremo Tribunal Federal (STF).
No local em que geralmente surge uma caixa com uma pergunta se a pessoa deseja receber notificações do site, surge uma pergunta em letras garrafais. “VOCÊ APOIA O MINISTRO SERGIO MORO?” Os dois botões das opções de resposta são “NÃO” e “SIM”, este destacado em azul.
É de se imaginar que quem entram em uma página chamada “Jornal 316 – O jornal da pátria amada” clique automaticamente em “SIM”, induzido ou não. O problema é que a pergunta pode esconder uma ligação automática às notificações do site disfarçadas de um simples questionamentos.
Detalhes importantes
Fora estes pontos que deveriam levantar a dúvida automática do leitor ao se deparar com o conteúdo extremamente sensacionalista, há outros problemas. Ao final do texto aparece uma assinatura.
O autor se chama Aylton Viana. Jornalista? “Acadêmico de Ciências Contábeis, articulista político, entusiasta da comunicação e marketing digital. Deus acima de tudo!” Com isso, é possível identificar que se trata de um apoiador do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Ao lado do currículo do autor do texto aparece uma foto com uma pessoa que tem a boca tampada com uma faixa preta. Aquela fotografia, que deve ser do tal Aylton Viana, mostra um homem vestido com uma camiseta amarela da CBF. Nas mãos, um papel branco com as letras “STF” escritas.
Cilada, Bino
Aqui já deu para perceber que trata-se de um eleitor do Bolsonaro que não gosta do Supremo e não é jornalista. Se você ainda insiste em acreditar no que está escrito no texto, porque concorda com o conteúdo ou porque gostaria que fosse verdade, cuidado.
Os comentários, um mais raivoso do que o outro, são motivados por um texto que começa com: “O entendimento do STF é de que um roubo de celular de até R$ 500 cai no princípio da insignificância. Na prática, é a legalização do furto“. Ao final surge um “Fonte: TV Cidade”, que foi inventado para tentar dar alguma credibilidade a um amontoado de desinformação e opinião enviesada disfarçado de notícia.
Resposta do STF
A agência Aos Fatos entrou em contato com a Corte. “Em nota enviada ao Aos Fatos nesta quinta-feira, 6, a assessoria do STF afirmou que ’em nenhum julgamento foi fixado valor para a aplicação do princípio da insignificância relacionado a furto de celulares ou de qualquer outro objeto’.
Ainda assim, se você quer mesmo acreditar no conteúdo do texto, saiba que o autor não consegue diferenciar furto de roubo.
E continua
“O STF tem dado jurisprudência para a versão de que o furto de um celular com valor de até R$ 500 cai no princípio da insignificância”, diz o texto do site. De repente, surge no conteúdo algo que seria parecido com a origem da informação. “Em reportagem da Record” aparece sem citar qual matéria seria, veiculada em qual data, um vídeo ou imagem.
Toda a tentativa de construir uma notícia – ou o que seria uma na cabeça do autor – chega ao ponto que a pessoa que escreveu o texto se segurou para digitar no teclado: “O entendimento do STF aduz uma diferença fundamental entre esquerda e direita”.
E segue com a informação que faltava para escancarar a invenção como uma forma de ataque a Supremo. “Agradeça aos 8/11 juízes do STF indicados por Lula e Dilma.” Só que você não percebeu que, enquanto vibrava com o conteúdo sensacionalista do texto, a página lucrava com seu clique.
Aprisionamento em bolhas
Ao final, um convite para se afundar na bolha das informações falsas, como aquela que você acabou de ler. “Pátria amada Brasil até morrer! Grupo Público. 50.197 membros. Participar do grupo.” É aí que aparece o que pode até parecer um convite à liberdade de expressão.
“Temos total liberdade de apoiarmos a direita encabeçada por Jair Bolsonaro e depois Sergio Moro. junte-se a nós.” Repare: você pode escolher fazer parte de um grupo de Facebook, onde ninguém de fora vê o que é compartilhado e publicado, e é livre para defender uma só ideia.
Mas se, depois de tudo isso, você ainda acha que é verdade e que eu estou a fazer o que a “extrema imprensa” – como vocês são criativos nas paranoias – sempre arquiteta, faltava a cereja do bolo. Só que a informação “urgente” que você adorou ler já foi desmentida em 2017 pelo G1.
O problema é que, como toda mentira, vai e volta. E sempre tem alguém doido para acreditar que o STF vai legalizar o roubo de celular.