República precisa conter incentivos aos donos de transportadoras e investir em ferrovias
22 novembro 2022 às 17h13
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Nilson Gomes
Quando os europeus (Portugal, Espanha, Holanda, França) chegaram a esta terra, plantaram cana, cortaram madeira e arrancaram minério. Cinco séculos depois, cá estamos a plantar cana, cortar madeira e arrancar minério.
Por mais de 300 anos, as diversas regiões eram vasos não comunicantes. Em 1807, Napoleão Bonaparte botou a corte portuguesa para fugir. Foi nessa posição que Napoleão perdeu a guerra e o lado de cá do Atlântico ganhou: Dom João VI fundou o Brasil como País. Inclusive, com estradas ligando as províncias.
Em abril do ano passado completaram-se 200 anos que João voltou para Lisboa. Além do pequeno príncipe Pedro I, deixou seu modelo viário.
Que permanece.
Foi preciso a malta do setor de transporte bloquear as rodovias no anterior e neste governo para que o próximo ganhasse uma certeza: é impossível não aprender com meio milênio de atraso.
Naqueles tempos tão velhos que são chamados de d’antanhos, os europeus queriam saber o que havia depois de tudo, no além-mar, como agora se desvendam os misteriosos destinos dos vilões da vez:
1) “Cadê o Queiroz?”,
2) perseguiu-se Lázaro Barbosa na divisa de Brasília com Goiás,
3) procura-se Jair Bolsonaro.
Hoje, interdita-se rodovia. Quando se sonhava em ter alguma, aportou João VI, avô de Pedro II, o grande estadista brasileiro, contados o império e a república. O único a chegar perto de Pedro II em competência e preparo (e a empatar em mulherada) foi Juscelino Kubitschek – e o último a ter a chance de reparar o erro de João Fujão, o monarca que passou para a História como guloso por coxa de frango graças ao equívoco propagado pelo ótimo filme “Carlota Joaquina”, dirigido por Carla Camurati.
Pós-Fujoão, JK comemorou o sesquicentenário do Brasil escolhendo o modal rodoviário, em vez dos trilhos, que existem há mais de 2.500 anos. Como a conhecemos, a linha férrea havia acabado de estrear (1804) na Inglaterra quando sua marinha escoltou (final de 1807) os nobres lusitanos até o Rio de Janeiro. A família real gastou 54 dias para aportar nas praias cariocas, mas vagões e locomotivas demorariam quase 50 anos.
Coube a Pedro II inaugurar a primeira ferrovia, a Estrada de Ferro Petrópolis, em 1854. Antecipando seus sucessores após a queda da monarquia, Pedro entregou a obra sem estar pronto. Só ficou concluída 32 anos depois, quando finalmente chegou a… Petrópolis. Mostrou ainda outro vício que se perpetua: a construção foi feita com recursos particulares (do Barão de Mauá) e uma autoridade pulou na frente na hora de entregar. Assim, a disputa entre os dois maiores homens públicos do Brasil, Pedro II e JK, termina com a vitória do imperador e a derrota do País. As informações são do geógrafo Júlio César Lázaro da Silva em “Breve História das Ferrovias”.
Lula da Silva e Jair Bolsonaro recomendaram um ao outro nos debates como candidatos a presidente em 2022 dar um Google e encontrar o objeto de desejo.
Depois dos mandatos de Lula (2003/2010), antes de Bolsonaro (2019/2022), no fim de maio de 2018, com Michel na Presidência da República, empresários do setor de transporte obrigaram seus empregados a bloquear rodovias. Queriam na marra reduzir o preço do diesel, já subsidiado. Infelizmente, o administrador que assumiu no lugar de Temer (Bolsonaro) nada tem de JK ou Pedro II e não aproveitou a lição deixada pelo caos da paralisação para iniciar alguma mudança, qualquer uma, no sistema viário nacional. Bolsonaro deu alguns espirros, como entregar a Ferrovia Norte-Sul à iniciativa privada (Rumo) e ameaçar abrir outras. Nada funcionou. Bolsonaro fez os 3% finais e entregou a transposição do Rio São Francisco iniciada por Pedro II em 1847. Fez nada por cento e entregou a Norte-Sul iniciada por José Sarney em 1987. As duas obras, como a linha de Petrópolis, foram inauguradas inconclusas.
O que já era velho com João VI e caducou com Pedro II, estrebucha com Bolsonaro.
Entre os três, o Brasil ganhou 1 milhão e 720 mil quilômetros de rodovias e 30 mil de ferrovias. Apenas 12% das rodovias são asfaltadas e poucos por cento das ferrovias prestam para alguma coisa. As de Goiás, por exemplo, têm pouquíssima serventia. A própria FNS continua inútil. A largura entre os vergalhões de ferro é chamada de bitola. São seis bitolas no Brasil. Como pode haver comunicação entre as ferrovias?
No Brasil, até o presidente está incomunicável.
Há muitas respostas à espera de Lula. Sua vitória nas urnas foi seguida de paralisação de caminhões ordenada pelos donos de transportadoras. A bagunça permanece, mas se arrefeceu graças à firmeza do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Alexandre de Moraes, também ministro do Supremo Tribunal Federal. Nesta semana, nova chantagem dos barões do transporte. Mais uma pergunta para Lula: até quando vai essa balbúrdia?
Caos é oportunidade de lucro para alguém. No caso, claro, alguns empresários do agronegócio e dos transportes. Enquanto esperam a soja ficar no ponto de colher, colocam maquinário e caminhões em frente a quartéis e no leito de rodovias. Prejudicam milhões de pessoas. Não passam sequer medicamentos. Nem coração a ser transplantado. Outra indagação ao presidente eleito: esse modelo está correto?
Lula não vai ler este artigo. Então, respondo eu: o sistema viário herdado de João VI se exauriu logo após JK deixar o poder. Vieram os ditadores militares, monstros celebrados por Bolsonaro, e mantiveram o modelo. O primeiro pós-regime de exceção, Sarney, ao menos tentou, porém os presidentes seguintes não conseguiram sequer terminar a Norte-Sul.
Outra tática falida é a da industrialização centralizada no eixo Sul/Sudeste. A referência aqui nem é a fazer aviões ou componentes para celular. Vassoura. Sai caminhão de vassoura do Sul, atravessa o País, despeja na Amazônia. Lula e sua equipe precisam rever os dois modelos. O império ajudou Mauá a fazer sua ferrovia. A república precisa conter os incentivos aos donos de transportadoras e investir em ferrovias. E distribuir financiamento, até a fundo perdido, para quem abrir fábricas no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Fábricas. Indústrias. Planta? Sim, mas de empresas manufatureiras, de transformação. Tiram minério e grão, jogam na carroceria, despejam em navios em Santos ou Paranaguá, Europa aí vai nosso suor. Geram poucos empregos e muito lucro para mineradoras e grandes agropecuaristas. É o fim da picada, nos diversos sentidos.
Commodities atrasam o Brasil desde Cabral — o novo Cabral está quase saindo da cadeia e ainda estamos a discutir sobre minério, madeira, lavoura e rodovias.
Nilson Gomes é advogado e jornalista.