Proposta de tratamento precoce foi uma tragédia, diz Drauzio Varella

07 março 2021 às 00h01

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“Não ficaremos livres da doença. Mesmo com a vacina, ela vai continuar. Mesmo com vacina e uma gestão capaz, o vírus não desapareceria. Ele vai ficar endêmico”
Conheço o secretário de Governo do Estado, o advogado Ernesto Roller, há anos. É um indivíduo educado e atento àquilo que lhe fala o interlocutor. Foi deputado estadual e secretário de Segurança Pública. Sempre eficiente e atento. É direto, franco e de uma civilidade a toda prova. Recentemente, no Twitter escandalizou os puristas. Mas não porque publicou algo falso, e sim pela crueza de suas palavras verdadeiras. “Use máscara, mantenha distanciamento e vacine-se (quando for sua vez). Fora disso você é um energúmeno e vá para a puta que o pariu. Obrigado e desculpe a clareza”. Sim, parte do dito revela excesso, mas as verdades costumam mesmo ser inconvenientes.
Quem achar que Ernesto Roller exagerou não deve deixar de ler o depoimento “O que a pandemia me ensinou sobre os irresponsáveis do Brasil”, do médico Drauzio Varella, de 77 anos e 54 anos de profissão, publicado na sexta-feira, 6, na revista “Época” (é o tema da capa da edição impressa). Os principais “irresponsáveis” estão no governo federal, liderados pelo irresponsável-mor, o presidente Jair Messias Bolsonaro, de 65 anos. Mas parte dos brasileiros, que acredita na ladainha anticientífica do chefe do Executivo, também é incluída entre a legião de “irresponsáveis”. A mensagem do político goiano não destoa, no básico, da do médico possivelmente mais conhecido do Brasil.
Realista assumido, dada sua experiência, Drauzio Varella frisa, porém, que nunca imaginou que “fôssemos viver um enfrentamento selvagem, com festas, aglomerações e a disseminação do vírus por pessoas que parecem não se preocupar com a vida de seus próprios familiares. A palavra correta para descrever o comportamento de muitos brasileiros é a selvageria. E temo estar ofendendo os selvagens ao fazer uso dela”.
O oncologista e divulgador científico frisa que, “quando vemos bares lotados enquanto mais de 2 mil pessoas morrem por dia vítimas do coronavírus, não é violência? Em meio a uma pandemia, aquele que se expõe porque sabe que poderá ter melhores condições de tratamento acaba expondo outras pessoas que não têm a mesma sorte. Coloca em perigo também seus pais e avós. Como esperar, então, que uma pessoa capaz de colocar a própria família em risco tenha consciência do mal que causa à sociedade?”

O médico sublinha que “uma parte da população brasileira negligencia a morte. Nada parece comover essa gente. (…) E se as 260 mil vidas perdidas não sensibilizaram esse grupo, nada sensibiliza”.
Drauzio Varella critica “o desmonte do Ministério da Saúde, o negacionismo do governo e do presidente da República; a ruína do programa nacional de vacinação e as aglomerações. (…) Hoje, temos a autoridade maior do Estado que contesta a eficácia a vacina. (…) Nos encontramos reféns de uma cambada de irresponsáveis”.
O fato de Bolsonaro incitar o povo a não usar máscaras e duvidar dos perigos do vírus é grave, frisa Drauzio Varella. “O Brasil é o quinto país em contingente populacional e o segundo em mortes por Covid-19. (…) Se houvesse mais responsabilidade, haveria menos contágio e uma menor possibilidade de tomar medidas mais drásticas de isolamento”.
A pandemia é uma tragédia ainda maior porque se tornou, segundo Drauzio Varella, uma “questão política”. Quando viu Bolsonaro saindo sem máscara, e abraçando as pessoas, Drauzio Varella percebeu a força da barbárie. “Para mim, foi o momento mais revoltante de toda a pandemia. Pensei: ‘Esse homem vai trabalhar para disseminar o vírus’. E o tempo mostrou que essa impressão era verdadeira. Ele é o grande responsável. Não é o único, lógico. (…) Mas o principal responsável é ele, pelo cargo que ocupa como presidente e pelo alcance de seus atos, como quando coloca em xeque a eficácia do uso de máscaras no momento de maior agravamento da doença no Brasil.”
Tratamento precoce e a classe médica
O endosso de parte da classe médica ao suposto “tratamento precoce” para tentar “evitar” a Covid-19, “sem nenhuma evidência científica”, é, assinala Drauzio Varella, tão lamentável quanto inaceitável. As “universidades formam profissionais que não têm noção do que é o pensamento científico. É o pensamento científico que nos permite entender os dados e analisá-los”. O estudo francês sobre a cloroquina não deveria ser levado a sério, por falta de consistência, mas no Brasil, para alguns médicos, se tornou uma espécie de bíblia. “Não só gastamos dinheiro em estudos, como também empregamos recursos públicos na fabricação do medicamento. Esse discurso do ‘tratamento precoce’ conquistou uma parte da população e deu uma falsa sensação de segurança. Isso foi uma tragédia, infelizmente, com coautores médicos, que usam a pandemia para defender suas posições políticas.”
Drauzio Varella afirma que não conhece nenhum médico sério, com formação científica adequada, “que tenha sido a favor desses tratamentos inventados, como ivermectina, cloroquina. O que aconteceu é que a pandemia escancarou o movimento político que existe dentro da classe médica que apoiou o presidente da República em tudo”. Em seguida, o médico faz uma acusação séria: “O Conselho Federal de Medicina teve uma posição indesculpável nesse aspecto”.
Só a vacinação vai conter a grande quantidade de mortes. Por isso a sociedade precisa pressionar o governo federal — o país não é de Bolsonaro, o que ele tem é um mandato, por mais dois anos, que pode ou não ser renovável por mais quatro — para que compre vacinas e acelere a vacinação. Mas Drauzio Varella ressalva que “as mortes deverão aumentar seu ritmo, e eu não creio que ficaremos livres da doença. Mesmo com a vacina, ela vai continuar por aí. Mesmo que estivéssemos em condições ideais, com vacina e uma gestão capaz, o vírus não desapareceria. Ele vai ficar endêmico, como são endêmicas as gripes, os resfriados”.
O vírus vai continuar “forte”, com novos doentes, porque, anota Drauzio Varella, “parte da população é irresponsável e manterá a pandemia num certo nível, provavelmente menor do que o atual. Mas manterá. Nós vamos ter de aprender a conviver com o coronavírus”.
Mencionei apenas trechos do depoimento, que vale ser lido na íntegra, inclusive quando Drauzio Varella fala de si, de suas leituras (pretende ler “Anna Kariênina”, de Liev Tolstói, e “Os Irmãos Karamázov”, de Fiódor Dostoiévski), da falta que faz seu trabalho numa cadeia e lamenta a falta de contato real, direto, com as pessoas. Ele diz que é o contato com pessoas diferentes, inclusive socialmente, que valoriza e enriquece vida. “Adquire-se uma visão da complexidade [do] que é a existência humana”.
Enfim, eu não escreveria o que disse Ernesto Roller, por delicadeza, mas fiquei com certa vontade de falar a mesma coisa aos irresponsáveis que “espalham” a Covid-19 e acreditam nas maluquices de Bolsonaro.
Link para o depoimento de Drauzio Varella