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O golpe civil-militar de 1964 deve ser tratado, não como “movimento” (não há uma pesquisa rigorosa que o denomine assim) e “revolução” (releia o trecho entre parênteses). Porque, tendo sido um putsch, tem de ser descrito com tal palavra. O mote justo, diria Flaubert.

A quartelada, com apoio de vivandeiras — como Magalhães Pinto e Carlos Lacerda —, não planejava “garantir” a democracia, ante o receio de um golpe comunista (uma das maiores ficções da história do período). O objetivo do putsch era a adoção de uma ditadura — tanto que alguns golpistas, como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, se desiludiram com o regime discricionário, passaram (notadamente o governador da Guanabara) a vergastá-lo e, por isso, foram cassados.

Em 1964, apesar do palavreado de grupos radicais da direita, não havia ameaça de golpe comunista e muitos de implantação de uma República sindicalista. Dada a Guerra Fria, com Estados Unidos, capitalista, e União Soviética, comunista, se pegando em escala mundial, a verborragia comunista da direita patropi acabou convencendo milhares de brasileiros que o presidente João “Jango” Goulart, apenas um estancieiro nacionalista — nada comunista, tampouco socialista —, estava deixando o país à mercê dos reds.

Como reagir a uma ditadura, que permitia apenas o simulacro de um espaço democrático? Quando o MDB “excedia”, com uma crítica mais contundente à ditadura, seus membros, ditos radicais ou autênticos, eram cassados. Há uma tendência a tratar o Manda Brasa como partido da oposição “consentida”. Na verdade, o partido fazia a crítica possível, como se estivesse participando do jogo democrático — que, a rigor, não existia. Ainda assim, o “Modebra” fustigou o sistema autoritário, às vezes de maneira corajosa.

Será possível que a existência de partidos civis, a Arena, governista, e o MDB, oposicionista, contribuiu para moderar a ditadura, ao menos em certos períodos dela? No que se diz há uma hipótese, não uma tese. Como tal, precisa ser testada por pesquisas empíricas.

Como lidar com a oposição armada — a guerrilha urbana (ALN, VPR, Var-Palmares, PCBR, MR-8) e a guerrilha rural (PC do B, entre 1972 e 1974)?

Qual era o projeto político das esquerdas que foram à luta armada? Desbancar a ditadura e, por certo, instalar um regime socialista no Brasil. Seria a substituição de uma ditadura por outra? É o que parece, ainda que nem todos os grupos pensassem do mesmo modo. Mas, claro, todos eram de matiz marxista.

Entretanto, por ser ilegítima, a ditadura — adversária da democracia — legitimou a guerrilha armada. Os militares e as vivandeiras não retiraram João Goulart da Presidência da República pelo voto, e sim pelas armas. E a esquerda tentou retirar os ditadores do poder pelas armas. Chumbo trocado, portanto. Os projetos dos dois lados eram autoritários? Eram, mesmo com suas diferenças, semelhantes.

“Aquela brasa encoberta queimando”

A história do golpe e da ditadura civil-militar — uma longa e tenebrosa noite de 21 anos —, apesar das dezenas de livros, ainda está sendo contada. Os arquivos militares, que por certo existem, ainda não foram abertos, e certamente não foram queimados. Aqui e ali, aparecem alguns documentos ou depoimentos, como o do delegado Cláudio Guerra no livro “Memórias de Uma Guerra Suja” (Topbooks, 292 páginas), de Marcelo Netto e Rogério Medeiros.

Há livros de ex-guerrilheiros, como Renato Tapajós, Fernando Gabeira, Alfredo Sirkis, Ottoni Fernandes. Livros de ex-guerrilheiras há poucos, talvez dois ou três. De uma mulher que era filiada ao Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), saiu o doloroso e pungente “Amor, Luta e Luto no Tempo da Ditadura” (Ateliê Editorial, 218 páginas), da ex-guerrilheira e professora Maria do Socorro Diógenes.

O livro de Maria do Socorro conta a história de sua participação na luta armada ao lado de vários companheiros, sobretudo da paixão de sua vida — Ramires Maranhão do Valle, assassinado por agentes da repressão quanto tinha 22 anos (o livro registra também 23 anos). Os dois eram integrantes do PCBR, uma dissidência do PCB, o Partidão. Eram companheiros de Mário Alves, Apolonio de Carvalho e Jacob Gorender (autor do excelente livro “Combate nas Trevas”).

A luta de Maria do Socorro e Ramires Maranhão começou no Nordeste, entre Pernambuco (terra ele) e Ceará (terra dela). Depois, militaram no Sul. O guerrilheiro foi morto no Rio de Janeiro em 27 de outubro de 1973, quando os grupos da luta armada já estavam em frangalhos.

“Ramires não teve tempo de saber, só teve tempo de morrer”, assinala, com sua dolorida escrita poética, Maria do Socorro. “Mais doído do que tudo é a perda das pessoas que amamos. Aquela brasa encoberta queimando, guardada no fundo do meu coração. Acho que continuará me queimando até o fim dos meus dias”, diz a mestre que deu aulas em Santo André, São Paulo.

Maria do Socorro era filha de camponeses do Ceará. Caso raro. Pois a maioria dos guerrilheiros era da classe média urbana — muitos deles eram estudantes quando decidiram pela luta armada.

Em 1968, Maria do Socorro entrou para o curso de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras do Estado (Fafice) e passou a morar na residência universitária. Na época, José Genoino Neto era presidente do Diretório Central dos Estudantes, membro da UNE e militante do Partido Comunista do Brasil. Era a estrela do movimento estudantil do Ceará.

Os estudantes criticavam a ditadura e o decreto 477, pelo qual reitores podiam expurgar universitários rebeldes, ou seja, avessos ao governo militar.

Inicialmente, Maria do Socorro se integrou às hostes trotskistas, que eram mais intelectualizadas e experientes. De cara, o grupo se posicionou contra a invasão soviética na Tchecoslováquia. Era uma “ação stalinista”, denunciaram.

O PCBR e a Ação Libertadora Nacional (ALN) estavam tentando se organizar no Ceará. Porém, num primeiro momento, Maria do Socorro não manteve qualquer ligação com os dois grupos. “As organizações mais fortes no Ceará eram o PC do B e a Ação Popular (AP).”

Com o AI-5, com a ditadura se tornando superditadura, os governos de Arthur da Costa e Silva e, depois, de Emilio Garrastazu Médici radicalizaram o combate aos guerrilheiros. Tornaram-se ainda mais letais.

Em 1969, devido ao “sumiço” dos companheiros, Maria do Socorro e o colega Valter Pinheiro não participaram da vida política. Estudaram, trabalharam e ouviram os cantores franceses Edith Piaff, Mirelle Mathieu, Gilbert Beccaud, Charles Aznavour e Françoise Hardi.

Em setembro de 1969, Maria do Socorro tomou conhecimento do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick pelo MR-8 (Dissidência da Guanabara) e pela ALN. Havia um pessoal de Fortaleza ligado a Carlos Marighella, principal líder da ALN. A morte do líder guerrilheiro, em 4 de novembro de 1969, “trouxe desolação”.

Valter Pinheiro colocou Maria do Socorro em contato com o pessoal do PCBR, no qual militou de 1970 a 1972. Na primeira reunião do partido, a estudante conheceu Odijas Carvalho (Neguinho), Rosane (Telma Alves Rodrigues) e Ramires Maranhão. “Achei Ramires lindo! Alto, magro, cabelos compridos, crespos, presos num rabo de cavalo. Depois descobri que o seu apelido era Cristo.” Era conhecido em Fortaleza como Mago ou Maguinho.

De acordo com Maria do Socorro, “o PCBR era constituído por um grupo de militantes vindos de Recife para desenvolver um trabalho em Fortaleza, todos na clandestinidade”. Ramires Maranhão havia sido escalado para cooptar tanto Maria do Socorro quanto Valter Pinheiro. De cara, ela disse: “Vou entrar”.

Fundado num sítio, na Serra da Mantiqueira, em abril de 1968, o PCBR “defendia a luta armada como principal instrumento para derrubar a ditadura civil-militar”, assinala Maria do Socorro. “O PCBR era contra o foquismo, pois defendia que esse modelo não era aplicável no Brasil, um país de extensão continental, com realidades regionais diferentes. (…) Seria fácil um cerco do exército no local do foco guerrilheiro sem que as outras regiões tomasse conhecimento, pois a imprensa e todos os meios de comunicação estavam silenciados.”

Maria do Socorro sublinha que “constava na linha política do PCBR que a guerrilha não poderia ser dissociada dos movimentos de massa, das lutas e reivindicações populares. Para o PCBR, o Brasil já possuía uma classe operária bem-desenvolvida, com organizações sindicais A guerrilha rural não poderia ser lançada sem a adesão da classe operária e suas organizações”.

Mesmo tendo aderido ao PCBR, Maria do Socorro e Valter Pinheiro eram contrários às ações armadas, a vida nos aparelhos. Depois, perceberam que, por uma questão de sobrevivência, não podiam ser descartadas.

2 “amores”: Ramires e a luta contra a ditadura

O livro de Maria do Socorro conta a história de dois amores — o dela por Ramiro Maranhão e vice-versa e dos dois pela luta contra a ditadura.

Maria do Socorro achava Ramiro Maranhão “muito bonito, um gato”. Num “encontro de lazer” — “o Ceará possui o mais belo luar do mundo” —, às margens da Lagoa de Messejana, a então guerrilheira chamou o amigo para dançar. Ao som de “Feeling”, com os Bee Gees, se beijaram. Começaram a namorar. “O tempo que passei ao lado de Ramires, em Fortaleza, foi o mais significativo e feliz da minha vida.” Messejana significa, em tupi-guarani, “abandonada”. “Parece que foi um presságio.”

Em meados de 1970, seguindo determinação do PCBR, Maria do Socorro e Ramiro Maranhão montaram um aparelho, “como marido e mulher”. O partido decidira fazer “uma ação de expropriação financeira” (um assalto), então precisava guardar o dinheiro. “Tranquei a matrícula na faculdade, larguei o emprego e fui morar no aparelho, ao lado do meu amor. O mais difícil foi deixar o curso de francês na Aliança Francesa. (…) Na casinha pequenina do Montese, eu e Ramires nos amamos verdadeiramente e fomos muito felizes.  Porém, o tempo não quis. De repente, nos tirou tudo, para nunca mais voltar.”

No aparelho, no bairro Montese, viviam Maria do Socorro, Ramires Maranhão e Paulo Magalhães, o Moleque. Este era praticamente uma criança. “Nós vamos fazer revolução com criança?”, inquiriu a guerrilheira.

Na casa-aparelho, além de discutir política, Ramires Maranhão “tocava violão, gostava de cantar as músicas de Chico Buarque e dos Beatles”. Outro guerrilheiro, Lúcio, cantava tão bem “Help” que acabou ganhando o apelido de Help.

Em 1970, sob a superditadura de Emilio Médici, com torturas, mortes e desaparecimento, deu-se o naufrágio da esquerda em armas. “O PCBR sofreu grandes perdas no início de 1970, quando ocorreu a prisão de todo o Comitê Central: Mário Alves, Jacob Gorender, Apolonio de Carvalho, culminando com o assassinato de Mario Alves” (foi empalado).

Ainda assim, na Bahia, em Pernambuco e no Ceará, células do PCBR se mantiveram ativas. Em Maranguape, os guerrilheiros assaltaram — “expropriaram”, na linguagem deles — a agência do Banco do Brasil. Depois, roubaram o carro-pagador do Banco London. A repressão ficou a ver navios.

Quando Moleque foi preso, Ramires informou que era preciso “abandonar a casa imediatamente”. Os integrantes do PCBR tiveram de sair do Ceará. Estavam queimados.

Para escapar da repressão, Maria do Socorro e Ramires Maranhão caíram na clandestinidade (que “é cair no abismo do nada”). O PCBR enviou Odijas Carvalho de Souza (Neguinho), Maria Yvone Loureiro, Maria do Socorro e Lília da Silva Guedes para Recife. Ramires Maranhão e Lúcio Help foram destacados para o Rio de Janeiro. A vida num aparelho é insossa. “Não há nada para fazer.”

Um encontro de apaixonados em Maceió

Solitária, Maria do Socorro abriu o jogo com os companheiros de jornada guerrilheira. Dada a distância, o relacionamento com Ramires Maranhão não estava bem. Mesmo correndo risco, Marcelo Mário de Melo, da direção do PCBR, providenciou um encontro entre o casal.

Mário Albuquerque, Marcelo Mário, Pedro Eugênio de Toledo e Maria do Socorro foram para Maceió, num Fusca. Eles tinham um ponto com Ramires Maranhão. Entretanto, o automóvel capotou e a guerrilheira quebrou a clavícula.

Mesmo machucada, Maria do Socorro se encontrou com Ramires Maranhão. “Conversamos muito, nos beijamos, nos amamos muito. O nosso amor se fortaleceu cada vez mais.” Depois, ela voltou para Recife e ele para o Rio.

Em 1971 foram presos Odijas Carvalho (morreu sob tortura) e Lília da Silva Guedes. Depois, foram presos Mário Albuquerque, Carlos Alberto Soares, Rosa Maria Barros dos Santos, Maria Yvone Loureiro e, mais tarde, Marcelo Mário de Melo.

Orientada pelo companheiro Cleodon e por padres progressistas da Ação Católica Operária (ACO), Maria do Socorro começou a trabalhar numa fábrica de tecidos — Cotonifício da Torre. O objetivo era conquistar operários para a luta contra a ditadura. “Nenhuma (das organizações de esquerda) tinha operários nas suas fileiras.” O contato dela na fábrica era Geraldo Ferreira Santos, Górki, “único operário ligado ao PCBR”.

O PCBR planejou o justiçamento do guerrilheiro José Moreira de Lemos Neto (Zeca, Magão). Apaixonado, saiu da guerrilha. Sob pressão do delegado Ordolito, incriminou “muitos companheiros” e disse que havia sido recrutado por Ramires Maranhão. Maria do Socorro e o sargento do Exército Batista, guerrilheiro do Rio, seguiram Zeca Magão com o objetivo de executá-lo.

Zeca Magão não foi executado. Mas a repressão prendeu Carlos Alberto Soares, o comandante Vitor, “o nosso general do braço armado do Nordeste”.

Maria do Socorro e Batista acabaram se envolvendo. Mas ela esclareceu que, como amava Ramires Maranhão, o namorico (puro sexo, sem amor) não podia seguir adiante. Porém, ao voltar ao Rio, o sargento contou a história a Ramires.

“Ramires ficou com ciúme e me mandou uma carta rompendo comigo. Fiquei muito brava, porém feliz, pois ciúme é prova de amor”, acredita Maria do Socorro. A guerrilheira mandou uma carta de amor se explicando, com um compacto da música “Apelo”, de Vinicius de Moraes e Baden Powell, na voz de Elizete Cardoso. A bela carta de Maria do Socorro está nas páginas 72, 73 e 74. “O meu amor é para a vida inteira, eu nunca vou deixar de lhe amar.”

Mulher decidida, de muita coragem, Maria do Socorro decidiu promover um encontro com Ramires Maranhão, no início de 1972, em Recife. Depois de morar na Rua da Saudade, em Recife, marcou um ponto com sua paixão na Praça da Preguiça, em Olinda.

Ao se encontrarem, o racional Ramires Maranhão disse: “Mulher, vamos embora daqui, que este lugar é queimado”. Entre sensível e bem-humorada, Maria do Socorro retrucou: “Se nos matarem, será uma morte gloriosa, um casal apaixonado se beijando numa linda praça, isto nunca existiu na história da esquerda”.

Ramires Maranhão contou que havia tido um breve namoro com uma jovem da massa. Maria do Socorro não se importou, mas ressalvou: “Vidas como as nossas estão fadadas a não terem um final feliz”.

“Foi a última vez que vi o seu sorriso e os seus grandes olhos inquietos”, anota Maria do Socorro.

Cabo Anselmo, o Paulista, como torturador?

Ao voltar para sua casa, Maria do Socorro percebeu que a porta havia sido arrombada. Os agentes gritaram: “Pare aí, sua puta!” Seu endereço havia sido passado por Helena Mota Quintela, a Guerrilheira.

No Doi-Codi, Maria do Socorro viu um torturador que era chamado de Batista. Segundo ela, era o ex-marinheiro Cabo Anselmo, que, depois de ser preso pelos agentes do delegado Sérgio Paranhos Fleury, em 1971, se tornou “cachorro” do sistema repressivo.

O relato de Maria do Socorro: “Eu estava [no Doi-Codi de Recife] com um capuz na cabeça e as mãos algemadas para trás. Vários agentes começaram a gritar, xingar, falar palavrões. Chamavam-me de puta, arrancaram toda minha roupa, jogaram-me no chão molhado e começaram a me chutar. Um dos agentes amarrava uns fios nos dedos dos meus pés, nos bicos dos seios, na vagina e nos lóbulos das orelhas. (…) Estrebuchei no chão. Fui arrebatada por uma coisa monstruosa, aterrorizante. Eram os malditos choques elétricos”. A guerrilheira era “acusada” de ser “chefe do movimento operário”. “Foi assim que me abriram. Nem existia movimento operário naquela época.”

Torturadíssima, alquebrada, ainda assim, Maria do Socorro não abriu os pontos com Fernando Augusto Fonseca (Comprido, Fernando Sandália) e Menino do Campo. Comprido “foi preso e assassinado no Doi-Codi de Recife, no final de dezembro de 1972. No Rio, os agentes mataram Getúlio de Oliveira Cabral. Valdir Sales Saboia, José Bartolomeu Rodrigues de Sousa, José Silton Pinheiro e Lourdes Maria Wanderley Pontes”.

“O trabalho de campo do PCBR caiu no final de dezembro e 1972. Caíram Luís Alves Neto, Anatália de Souza Alves de Mello, José Adeildo Ramos, Fernando Augusto Fonseca e Menino do Campo. Os torturadores assassinaram Anatália, em janeiro de 1973”, relata Maria do Socorro.

O torturador Miranda, o terror dos presos políticos em Pernambuco, perguntou para Maria do Socorro: “Você me conhece?” A guerrilheira disse “não”. “Eu sou o Miranda!” Ela redarguiu, desafiadora: “Não posso dizer que é um prazer”. O policial civil respondeu: “Essa Baixinha é cheia de respostas”. A militante do PCBR continuou a ser torturada, inclusive no pau de arara.

Com outras presas, Maria do Socorro foi enviada para a Colônia Penal Feminina, o Convento do Bom Pastor. As presas ouviam músicas de Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinicius de Moraes, Paulinho da Viola, Sérgio Ricardo, Milton Nascimento, Geraldo Vandré, Maria Bethânia, Gal Costa, Nara Leão e Elis Regina. Livros eram proibidos. Jorge Amado era visto como “comunista perigoso”.

Na prisão, Maria do Socorro escrevia cartas para Ramires Maranhão. As colegas queriam entender o motivo de escrever tantas missivas, pois sua paixão não teria como lê-las. Ela dizia: “Quando eu sair daqui, vou procurá-lo e entregarei o saco de cartas para mostrar que o meu amor nunca acabou”.

Os pais de Ramires Maranhão visitaram Maria do Socorro e informaram que Ramires Maranhão, alegando que “teria aberto os operários”, comunicou “que estava tudo acabado entre” eles. Não era bem assim. Mas seu amor era radical e intransigente. “Quem me traiu?”, perguntou-se a jovem. “O fato de Ramires ter sido assassinado e desaparecido, sem que eu tivesse a oportunidade de me defender diante dele, essa tortura nunca se afastou de mim.”

O tribunal militar absolveu Maria do Socorro em 13 de dezembro de 1972. “Por falta de provas.”

Liberada voltou para Jaguaribe, no Ceará, para morar com os pais. Acabou presa de novo. Mas não foi torturada.

Como morreu Ramires Maranhão do Valle

No Ceará, Maria do Socorro ficou sabendo que Ramires Maranhão havia morrido, ao lado de Ranúzia, Almir (Ceguinho) e Moitinho, todos pernambucanos e militantes do PCBR. “Durante toda minha vida sufoquei as lágrimas, engoli o choro. A minha tristeza virou uma brasa encoberta e se escondeu dentro do meu coração.”

Agora, vou saltar um longo trecho — o leitor não deve fazer o mesmo; se o fizer, perderá grandes histórias (sobre a Anistia, por exemplo, e retorno da democracia) — e contar como Ramires Maranhão morreu. Na verdade, Maria do Socorro diz que seu assassinato continua sendo “um enigma”.

Quatro pessoas estavam num Fusca vermelho, de placa AA 6970, na porta do Colégio Estadual Pedro Américo, no Rio. Agentes cercaram o Volkswagem e começaram a metralhá-lo. Uma mulher saiu do automóvel e foi assassinada. Um dos policiais jogou uma bomba dentro do carro, que pegou fogo. Os três guerrilheiros morreram carbonizados. “A bomba destruiu qualquer documentação, qualquer identificação.”

A ditadura admitiu que os militantes do PCBR Ranúzia Alves Rodrigues e Almir Custodio de Lima estavam entre os mortos. “Havia fortes indícios de que Ramires Maranhão do Valle e Vitorino Alves Moitinho encontravam-se dentro daquele carro”, narra Maria do Socorro.

Antônio Soares de Lima Filho, o Help, avisou ao pai de Ramires Maranhão, Francisco Clóvis Valle, que seu filho estava no veículo bombardeado. Mas a ditadura não admitiu o fato.

Um oficial das Forças Armadas contou a Francisco Valle “que, ao ler uma troca de informação entre o Exército e a Aeronáutica, havia um relato da morte de Ramires e a comunicação de que quatro pessoas morreram no carro incendiado”.

Em 1991, Romildo Maranhão do Valle, irmão de Ramiro Maranhão, e o grupo Tortura Nunca Mais obtiveram acesso à documentação do IML. “O grupo descobriu que os militantes políticos assassinados pela ditadura eram enterrados como indigentes, no cemitério Ricardo Albuquerque, zona norte do Rio de Janeiro.”

Feita a exumação dos ossos encontrados numa vala clandestina, os guerrilheiros assassinados, inclusive Ramiro Maranhão, puderam ser identificados.

Ao saber que o filho havia sido assassinado, Agrícola Maranhão do Vale, a sra. Doninha, teve um infarto fulminante, aos 60 anos.

Guerrilheiros identificados: Almir Custódio de Lima (PCBR), Ramires Maranhão do Valle (PCBR), Vitorino Alves Moitinho (PCBR), Ranúsia Alves Rodrigues (PCBR), Merival Araújo (ALN), Wilton Ferreira (Var-Palmares), Luiz Guilhardini (PC do B), José Raimundo da Costa (Var-Palmares), José Gomes Teixeira (MR-8), Getúlio Oliveira Cabral (PCBR), Bartolomeu Rodrigues de Souza (PCBR), José Silton Pinheiro (não cita a corrente política) e Lourdes Maria Wanderley Pontes (PCBR).

Como diz o título, o livro de Maria do Socorro é sobre “amor, luta e luto”. É também uma história de guerrilheiros menos conhecidos e glamurosos. E muito bem contada, com a inclusão de músicas e poemas. Um belo livro. Um drama da vida real. Você, leitor, quer saber se a grande Maria do Socorro teve outros amores? Bem, leia o livro e saberá. O fato é que a professora, aposentada como supervisora, e escritora nunca se esqueceu de Ramires Maranhão. O amor, ainda que curto, se tornou eterno.

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Erros não invalidam a qualidade do livro

Maria do Socorro diz que, “no ano de 1968, com as passeatas, as mobilizações, a luta contra a ditadura avançavam e ganhavam a simpatia da sociedade”. De fato, as passeatas reuniram multidões, revoltadas com um fato isolado, como a morte de um estudante, Edson Luiz, mas a luta contra a ditadura não parecia obter a simpatia da sociedade.

O livro informa (página 32), errado, que “o AI-5 tinha o dedo do general Golberi [Golbery] do Couto e Silva, eminência parda do regime”. O militar esteve no centro do palco de três governos — o de Castello Branco, o de Ernesto Geisel (muito) e o de João Figueiredo (caiu fora em 1981, depois do atentado do Riocentro). O “Feiticeiro” do regime, artífice da distensão e da Abertura, não teve influência, que se saiba, nos governos dos generais Arthur Costa e Silva e Emilio Garrastazu Médici. Ele era moderado e os dois presidentes eram da linha dura.

A ideia de que as “aberturas” — guerrilheiros que falaram sobre companheiros — “eram frutos da fraqueza ideológica” é outro equívoco de Maria do Socorro. Nem todas as pessoas, mesmo entre as mais decentes deste mundo, resistem à brutalidade da tortura. Há dores insuportáveis. Deve-se culpar os torturadores, denunciando-os, e não os torturados — que são vítimas.

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Obras relevantes pra entender o golpe e a ditadura militar