Pedro Nava: “Depois de escrito, o que já foi ressuscitado estará, então, definitivamente morto”
23 abril 2023 às 00h00
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É mais cômodo comprar livros nos sites das livrarias — Travessa, Livraria da Vila, Martins Fontes, Leitura, Estante Virtual (reúne milhares de livros de sebos de todo o país) etc —, sobretudo quando já se sabe os títulos. Mas nada substitui o ato de flanar, de maneira despreocupada, pelas livrarias. Quando vou a uma delas, grandes ou pequenas, de obras novas ou usadas, olho as estantes e as mesas. Manuseio vários exemplares e leio a apresentação ou parte do primeiro capítulo, observo o índice de nomes, confiro o tradutor, verifico a qualidade do papel (não aprecio um novo papel que vem sendo utilizado pelas editoras).
De repente, numa olhada algo displicente, descobre-se um livro interessável, mas que não ganhou destaque nos jornais e revistas, e nem mesmo nos sites das livrarias e das editoras. Em janeiro deste ano, numa visita à Livraria Leitura, em Goiânia, coloquei os olhos sobre a capa de “Os Mineiros — Modernistas, Sucessores & Avulsos” (Gryphus, 218 páginas), do jornalista e escritor Wilson Figueiredo.
Depois de olhá-lo, com escassa atenção, deixei-o em paz e segui adiante, rumo aos livros de história e filosofia. Buscava “Filosofia Felina — Os Gatos e o Sentido da Vida” (Record, 140 páginas, tradução de Alberto Flaksman), de John Gray. Ao não encontrar a obra do filósofo britânico, voltei à bancada de promoções onde se encontrava o livro de Wilson Figueiredo, que, durante anos, brilhou nas páginas do “Jornal do Brasil”.
Afonso Arinos, intelectual a ser redescoberto
Peguei “Os Mineiros”, mas não com muito interesse. Porém, mal comecei a folhear, o livro conquistou minha atenção. Wilson Figueiredo versa sobre Carlos Drummond de Andrade, Afonso Arinos, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Helio Pellegrino, Autran Dourado, Carlos Castello Branco, José Maria Alkmim, Marcos Antônio Tavares Coelho, entre outros.
Ainda na livraria, sem ter comprado o livro, me sentei num banco e li os dois textos sobre Afonso Arinos de Melo Franco (1905-1990). São excelentes e recomendo vivamente. Pensei: Afonso Arinos merece ser mais bem conhecido. Não fosse liberal, concluí, seria mais lido e discutido. Liberais costumam ser postos à parte, porque, de maneira enganosa, tendem a confundi-los com reacionários. Pelo visto, ao menos no Brasil, sugerir que alguém é “neoliberal” equivale a dizer que tem um pacto com Lúcifer. Cair na língua da esquerda é o mesmo que adquirir passagem, sem volta, para o Inferno.
Confesso: comprei a obra por causa de Afonso Arinos, um intelectual (e político) admirável.
Wilson Figueiredo entrevistou Altivo Drummond de Andrade, em 1952, na “Folha de Minas”. O resultado é excelente. Altivo influenciou o irmão que se tornou o maior poeta do Brasil.
Drummond de Andrade, como jornalista (trabalhou em vários jornais), tinha “fama de escrever rápido e bem”. Ocupava-se, inclusive, da seção de culinária. “Tendo estudado química, um dia, o poeta tentado pelo diabo deu a receita de um bolo de sua invenção. Conta-se que a dona de casa que resolveu levá-lo ao forno passou pelo susto de um estampido inesperado e sem maiores consequências”, relata Wilson Figueiredo.
Em bela entrevista, Autran Dourado assinala: “Os críticos são necessários e indispensáveis ao leitor, ao escritor quase nunca. Aliás o escritor não deve escrever pensando na crítica, ele só escreve para si mesmo e para estranhos”.
O baú inesgotável do memorialista Pedro Nava
Comenta-se, a seguir, unicamente “Do Fundo do Baú: as memórias de Pedro Nava”, entrevista concedida, em fevereiro de 1979, a Luiz Paulo Horta e Wilson Figueiredo e publicada pelo “Jornal do Brasil”.
O mineiro Pedro Nava (1903-1984) é considerado como o Proust brasileiro. Há diferenças entre os dois? É certo que sim. Proust é mais ficcionista. É, por certo, mais imaginativo. Pedro Nava é menos ficcionista. Mas o memorialista não é um historiador, dos mais objetivos. Pelo contrário: a recuperação que faz do passado resulta de uma imaginação criadora, de lembranças redesenhadas. A transcrição do passado — dos fatos — nunca é precisa. O memorialista sabe disto melhor, quem sabe, do que o historiador. O passado não “volta” pela precisão, e sim pela recriação. Neste sentido, o memorialismo, ao recuperar o passado, é também literatura.
Os entrevistadores recolhem frases valiosas de Pedro Nava: “Porque escrever memórias é um ajuste de contas do eu com o eu, e é ilícito a si mesmo”, “Depois de escrito, o que já foi ressuscitado estará, então, definitivamente morto”.
Proust é praticamente um deus para Pedro Nava. Mas “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, representou uma iluminação para o autor de “Baú dos Ossos”. “Foi para ele ‘o que é a Bíblia para os protestantes”. “Eu gosto de reler ‘Os Sertões’ de vez em quando, até hoje, porque caio naquele ambiente, naquele clima, é muito bom aquilo.”
Wilson Figueiredo pontua, no início da entrevista: “O Autran Dourado, depois que leu o ‘Beira-Mar’, me disse que Belo Horizonte devia lhe fazer uma estátua, porque você a reabilitou”. Pedro Nava responde: “Mas Belo Horizonte era mesmo boa. A Raquel de Queiroz é que disse que Belo Horizonte era criação puramente minha e do Drummond, que não existe nada daquilo, que nós é que estamos inventando para fazer água na boca de todo mundo”.
As memórias de Pedro Nava começaram com a feitura de um diário, em Juiz de Fora. Ele havia acabado de se formar em Medicina e se sentia solitário.
Certa feita, o avô estava jogando papéis e fotografias no lixo, e Pedro Nava disse que, se “ele não quisesse mais, eu guardava aqueles documentos e retratos. Sem esse arquivo eu não teria podido completar a história da minha família materna e seria impossível o ‘Baú de Ossos’” (primeiro volume das memórias do escritor, publicado em 1972 pela Editora Sabiá, de Fernando Sabino e Rubem Braga).
Ao buscar informações, Pedro Nava se comportava como um repórter, dos mais pacientes, procurando arrancar informações de sua mãe e de suas tias. “O ‘Baú de Ossos’ é todo história de família. Aquilo que eu arranquei de uma tia materna, de minha mãe, de suas duas tias paternas”.
Ao se propor a contar suas histórias, Pedro Nava fazia um plano. “Isto é muito difícil de ser acompanhado, muitas vezes eu saio fora do script. (…) Tecnicamente, ou materialmente, minhas notas são as mais mal tomadas possíveis. Tudo que me ocorre, ou se você disser uma coisa curiosa, uma palavra que eu não conheça, vou anotando.”
“Durante os dois primeiros livros eu acabava de escrever, amassava e jogava fora, depois rasgava o boneco, e o esqueleto daquela história. O Drummond é que aconselhou: ‘Você não faça isso, de jeito nenhum. Isso é um material muito interessante para estudo da criatividade. Não jogue fora nem os trechos que você abandonou. Guarde para comparar depois”, conta Pedro Nava.
Axelho e o estilo orquestral de Proust
Como todo escritor, Pedro Nava gosta de palavras pouco usuais, como “axelho”. Wilson Figueiredo diz que não achou nos dicionários. Pedro Nava explica: “É o que nós chamamos medicamente: cabelo, axelho”. É o cabelo da axila.
Além de Proust, o santo de devoção, o português Eça de Queiroz era outro escritor admirado por Pedro Nava, que o lia escondido. Porque era um autor “maldito”. “Era considerado de mau tom ler o Eça de Queiroz no tempo de modernismo, mas eu tinha muita fidelidade por ele. Gratidão. Foi o primeiro escritor mais sério que li.”
A leitura de Charles Dickens era mais para praticar o inglês.
Pedro Nava começou a ler Machado de Assis, a sério, com 50 anos de idade. Por isso não foi influenciado pela prosa poderosa do autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O escritor “é todo cheio de insinuações e de equívocos, de emboscadas para o leitor. É uma escritura de aparência simples, mas das mais elaboradas que já vi”.
O Proust de “Em Busca do Tempo Perdido” era a leitura de cabeceira de Pedro Nava. “Eu gosto muito, acho-o muito bom, tenho meio de cor”.
O método, se método é, de Pedro Nava é mais ou menos o seguinte, nas releituras: abria os livros de Proust, em qualquer ponto, e “embarcava”. “Começo a ler e me lembro perfeitamente. Antes de haver Proust com índice eu tinha o meu índice de Proust. Cada volume de Proust tem um indicezinho, feito por mim, dos assuntos mais vagos.” Morte, por exemplo.
“O que gosto no estilo de Proust é que ele tem um aspecto orquestral — não é um escritor correto como o Anatole France; é um rio que carrega você. Eu leio o Proust e de repente não sei mais o sentido daquilo; mas não precisa de sentido, fui levado por torvelinho”, assinala Pedro Nava.
Quando começou a escrever “Baú de Ossos”, em 1968, Pedro Nava diz que o objetivo era exibir a história para seus irmãos, e para o próprio deleite. “Eu estava pondo umas coisas de família que eu sabia que ninguém mais sabia, mas depois o Fernando Sabino, o Otto Lara Resende, o Drummond…”. Pois, graças aos três escritores, o Brasil ganhou um escritor poderoso, um Proust tropical. Mas talvez não seja bem assim: a prosa de Pedro Nava sugere um alto grau de consciência. Portanto, o autor estava ciente do que estava escrevendo, de sua qualidade literária. Não se tratava de uma mera crônica provinciana de família. O que torna as histórias interessantes é como Pedro Nava as narra. A forma torna o conteúdo mais poderoso e universaliza o particular, a vida de famílias provinciais.
Escrever com lógica, arte e imaginação, de acordo com Pedro Nava, não é nada fácil. “Me dá muito trabalho pra escrever, porque eu desmancho, fico numa dúvida muito grande. (…) Eu escrevo, às vezes inutilizo, largo aquilo e torno a escrever, mas rescrever propriamente, muito raramente. (…) Quando eu reescrevo não jogo fora aquilo para tornar a escrever.”
“Qual é a margem de imaginação que há na memória?”, Wilson Figueiredo inquire Pedro Nava, que responde: “Eu tenho a impressão que você pode usar a imaginação como queira, porque não há nenhuma pureza na memória, você não tem uma memória pura, é incapaz, é impossível você lembrar um fato que se passou há 40 anos. Você carrega, para ir buscar esse fato, uma experiência sucessiva tão grande que ela já reatravessa essa experiência e não chega mais o mesmo… Ele é reelaborado constantemente, o mesmo fato é sempre reelaborado, de modo que você não pode ficar apenas na ideia de fazer uma crônica sobre um fato passado, você tem de meter nesses fatos suas experiências sucessivas; de modo que aí você cai forçosamente numa ficção, uma ficção com base verdadeira, mas você entra fora de foco muitas vezes, por causa dessa influência exógena ou sua mesmo, da sua experiência sucessiva”.
“Baú de Ossos” é, no dizer de Pedro Nava, uma montagem daquilo que ouviu de seus parentes. A recontagem, para tornar os fatos compreensíveis, cria uma outra história, com a forma refazendo o conteúdo, porém não resulta que a história seja falsa. Talvez seja apenas mais ampla e apreciável… como literatura da vida real.
“Botar ordem no passado é a coisa mais difícil”, frisa Wilson Figueiredo. “Isso encuca muito a gente. Puxar esses defuntos ressuscita um pouco e realmente perturba. Depois alivia. Você faz as pazes, se reconcilia”, diz Pedro Nava.
(Percebeu como a visita a uma livraria física pode ser enriquecedora? Por isso, em Goiânia, estou sempre visitando a Palavrear, a Leitura, eventualmente a Nobel, e os sebos do Centro, como o Opção Cultural e o Páginas Antigas. Em Brasília, frequento a Travessa, a pequena Circulares, o Sebinho, entre outras. Em São Paulo, a preferida era a Cultura, e não é mais. Agora são a Livraria Martins Fontes e a Livraria da Vila. Na Argentina, flano, com prazer, pelos sebos da Avenida Corrientes e pelas Livrarias Cuspide, Eterna Cadência, Ávila e, menos, El Ateneo. Esta, por sua beleza, é centro turístico. Você está olhando um livro e as pessoas pedem para se afastar porque precisam fazer fotografias.)
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