O palavrão é a voz das ruas. Mas cuidado: usá-lo pode ser crime
10 abril 2020 às 14h25
COMPARTILHAR
Dicionário registra três mil palavrões e cita escritores goianos. O prefácio é de Gilberto Freyre e a apresentação é do juiz de Direito Eliézer Rosa
No filme “Acusados”, de Jonathan Kaplan, a personagem principal, muito bem caracterizada pela atriz Jodie Foster, fala palavrão em dose tripla. Mas os autores das legendas evitaram e suavizaram sua linguagem de rua. A palavra “merda”, tão amada pelos brasileiros, às vezes não é traduzida. “Foda-se”, então, nem pensar. A gíria, uma coisa “da hora”, passa; o palavrão, pelo contrário, é eterno.
Há várias línguas portuguesas — embora a estrutura seja apenas uma, quem sabe. Talvez exista mesmo uma língua nacional — o brasileiro. Mais ainda: há uma “língua das ruas” (de todas as classes sociais), quase dialetal, e uma digamos “língua acadêmica” — a daqueles que escrevem. Uma, “viva”, é aquela que o povo — todo mundo — fala. A outra é semimorta? Não. Mas não é usada no dia a dia, no contato direto, entre as pessoas.
A fala é aberta, coloquial. A escrita é fechada, formal, às vezes chata, nem sempre compreensível a todos os mortais. Coisa para Antônio Houaiss, o dicionarista e tradutor de “Ulisses”, de James Joyce. Todo mundo entende aquilo que o brasileiro, de qualquer origem social, fala. Mas parte não saca o que uma pessoa, mesmo não-intelectualizada, escreve. A escrita é pedante, até ditatorial, por vezes contra a comunicação.
As cartas comerciais, por exemplo, são ou eram concluídas com “sem mais para o momento”. Ora, quem diz isso? Ninguém. Mas as secretárias e secretários, coitados, são obrigados a escrever assim. Por quê? Porque os velhos manuais dizem que isso é educação, é formalidade. Talvez não seja. A linguagem empolada quebra a comunicação, cansa. A fala é democrática, pluralista. Isso talvez explique o sucesso da televisão — que inclusive incorporou a gíria muito melhor que os jornais. Os manuais de redação sugerem uma uniformidade que formaliza a comunicação. Dizer “o cara” pode, mas escrever “o cara” não pode.
A linguagem dos jornais às vezes parece linguagem de professores e juristas do século 18 ou 19. Quem não passa mal ao ler “em última instância”, “no bojo de”, “via de regra” e outros pedregulhos? Ah, sim, os jornais, com seus manuais, estão sugerindo que não se escreva deste modo.
A propósito (notou a muletinha?), Paulo Francis conta, em suas divertidas memórias, “O Afeto Que se Encerra” (Civilização Brasileira), que certa vez escreveu “via de regra” num artigo e levou uma porrada verbal do decaníssimo Carlos Castello Branco.
Escreve Francis: “Editavam o ‘Diário Carioca’, alternadamente, Evandro Carlos de Andrade e Carlos Castello Branco. Deste aprendi uma das raras lições proveitosas de jornalismo. Um dia, depois de ler meu artigo, antes de baixá-lo (à oficina de composição), devolveu-me o dito, por contínuo. Isso não acontecera antes. Fiquei espantado. Onde eu tinha escrito ‘via de regra’, Castelinho puxou um traço, à margem, adicionando: ‘é ‘b…’. É a primeira vez que escrevo ‘via de regra’ desde 1957”.
O livro de Francis foi publicado em 1981. É gostoso de ler, melhor do que seus romances. Você fica sabendo coisas fúteis mas muito engraçadas. Por exemplo: quem apelidou os Bloch (“Manchete”) de irmãos Karamabloch foi Otto Lara Resende, o brilhante jornalista-escritor.
Há, assim, uma distância colossal entre o que se fala e o que se escreve no Brasil (quiçá no mundo). O palavrão é o exemplo mais cabal da contradição entre a fala e a escrita. Por que tantos têm medo do palavrão? Medo, vírgula. Quase todo brasileiro diz palavrão. Mas pouquíssimos escrevem palavrões. Questão de “educação” e “etiqueta”. Mas duvido que, ao tropeçar, uma pessoa diga: “Ai meu pezinho!” Diz, isto sim, “Que desgraça!” ou “Porra!” Mas o que é mesmo o palavrão?
Palavra obscena ou grosseira. Escritor Mário da Silva Brito
afirma que “o palavão pode ser um insulto ou um elogio”
Palavrão, para alguns, é o secretário nacional da Cultura, Antônio Houaiss, membro da Academia Brasileira de Letras. Há quem reclame que, quando ele fala, os tímpanos sofrem. É preciso decifrar a fala, porque parece português arcaico.
O rigoroso dicionário “Aurélio” explica que palavrão é “palavra obscena ou grosseira”. Como toda síntese, a redução facilita a compreensão. Mas a explicação do mestre Aurélio Buarque de Holanda não diz muita coisa. Talvez o escritor Mário da Silva Brito (“Desaforismos”) tenha sido mais feliz: “O palavrão pode ser um insulto ou um elogio”.
O fato é que o palavrão sempre existiu. Cleópatra deve ter xingado muita gente — talvez com razão. Se existe machismo hoje, imagine na sua época.
Mas se o palavrão é universal e atemporal, o termo “palavrão”, revela Antônio Geraldo da Cunha, no “Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa” (Nova Fronteira), só surgiu em 1881. Todo mundo tinha medo da palavrinha que é a voz das ruas.
Foi para esconjurar o medo do palavrão que Mário Souto Maior (um cara que não tem houaite) escreveu o “Dicionário do Palavrão e Termos Afins” (Record). São mais de três mil termos. A Record informa que é “único em português”. Não é mais. Se você for lépido, achará um exemplar nas prateleiras das livrarias ou, mais provável, nos sebos. É uma preciosidade.
O trabalho de Souto Maior é um jab no preconceito e uma porrada (perdoe, please, o palavrão) na linguagem oficial. Recupera a linguagem das ruas e das alcovas. No dicionário você pode ler, sem cisma, na sala de estar ou no escritório, tudo aquilo que fala, mas não tem coragem de escrever ou de dizer em locais refinados. O livro “desimoraliza”, um pouco, o palavrão. Torna-o menos “inaceito” e “imorrível”.
Mas se você for curioso vai notar algumas coisas engraçadas no livro. Logo na capa, algo chama a atenção do leitor mais ou menos letrado. O prefácio é de Gilberto Freyre (1900-1987). Se você for bom observador nota que o nome do sociólogo pernambucano está grafado em letras quase do tamanho do nome do autor do dicionário. Por que isso? Marketing. Gilberto Freyre, autor do admirável clássico “Casa-Grande & Senzala” (pouco lido e muito criticado, com preconceitos), vende mais que a “marca” Souto Maior. Mas não é só isso. O que se quer forçar é a “aceitação” do palavrão como um fato da língua. O mais importante sociólogo patropi empresta credibilidade — tira a aura “imoral” do dicionário.
A contracapa ganha o endosso de Jorge Amado — um dos escritores mais lidos pelos brasileiros.
“O palavrão é um fato da língua ou, talvez melhor, da
linguagem cotidiana”, afirma o magistrado Eliézer Rosa
Abrindo o palavrório (neologismo para definir dicionário de palavrão), outra surpresa. A apresentação foi feita pelo juiz Eliézer Rosa. Uma bela e cuidadosa apresentação. O juiz Rosa tem medo de que o confundam com um defensor do palavrão e, por isso, diz logo: “Ambos, o autor e eu, não fazemos a apologia do palavrão. Nem ele nem eu gostamos da coisa. Mas o palavrão é um fato da língua ou, talvez melhor, da linguagem cotidiana”. Sem querer magoar o juiz, um apresentador do cacete, é preciso dizer que o palavrão é a linguagem do prazer e da dor. Sadomasoquismo? Talvez. O juiz, aliás, parece gostar da “coisa”, sim, mas não pode dizer. Sua negativa é uma ironia.
O prefácio de Gilberto Freyre é inteligente e sensível. Não é uma prefação laudatória. O sociólogo é um escritor que precisa ser recuperado. Parte da esquerda acadêmica, baixo clero sem batina, quis desmoralizá-lo. Não conseguiu. Felizmente. Desmoralizou a si mesma. Para falar palavrão, todos põem, antes, à Lênin caboclo, dois pés atrás. É o que faz o homem de Apipucos. Afirma: “Não se trata de obra salaciosa sob a aparência erudita”. Gilberto Freyre é erudito para explicar o simples. Quer dizer, apenas, que Souto Maior é um pesquisador sério e não escreveu o livro para satisfazer sua libido. Não é um sacana. Um tarado do texto. Agora você entendeu, não é?
Gilberto Freyre não nega o palavrão, mas critica aquele que o usa frequentemente para fins “comerciais”. Segundo ele, “o que fez o autor, elaborando um ‘Dicionário do Palavrão e Termos Afins’, foi reconhecer a existência desses termos na língua portuguesa; apresentá-los, ligá-los, do ponto de vista semântico completado pelo folclórico, ao que se pode denominar uma ecologia, em nosso idioma, dessa espécie de linguagem — sendo, talvez, essa linguagem, na mesma língua portuguesa, menos abundante (!) e menos rebarbativa do que noutras línguas”.
Mais adiante, Gilberto Freyre assegura que “o palavrão é elemento útil para a caracterização do ethos de uma sociedade ou das constantes de uma cultura ou da identificação de um termo social. Das constantes e das origens dessa cultura. Dos pendores desse tempo social”.
Qualificando o dicionário de admirável, Gilberto Freyre afirma: “Curioso encontrarem-se palavras de uso ou abuso obsceno no Brasil, como boceta, que em Portugal tem apenas o sentido de descrição de desejo nada ligado a sexo. O inverso acontece com a palavra tomates; em português de Portugal, na sua conotação sexual, o mesmo que testículos. Ou, no Brasil, ovos, e em inglês nuts”. O brasileiro não fala boceta, e sim buceta, com “u” mesmo. O sociólogo nota, com justeza, que faltou um estudo mais aprofundado do palavrão na literatura brasileira.
No “Comentário à 4ª edição”, Souto Maior registra que o dicionário reúne os palavrões e sinônimos de prostituta, de homossexual, dos órgãos sexuais e de locuções populares relacionadas com o assunto, tanto no Brasil como em Portugal, na Ilha da Madeira e em Moçambique. No mesmo “Comentário”, Souto Maior menciona o Adovaldo Fernandes Sampaio, escritor goiano (ou radicado em Goiás), como uma de suas fontes. Fernandes sabe tudo da Língua Portuguesa e de outras.
O leitor goiano terá uma boa surpresa ao ler o palavrório de Souto Maior. Além de Adovaldo Fernandes, cita Marieta Teles Machado, Regina Lacerda (recentemente falecida) e um livro editado em Itumbiara, de autoria de Carlos Mello Buarque (“A Estória Alegre de Três Deliciosas Mulheres”. Editora Paranaíba, 1968).
O mais interessante é a lembrança do jornalista Carlos Alberto Menezes (que todo mundo lia e de quem todo mundo tinha medo, porque ele brincava com o maior tormento humano, o sexo). “Botar as aranhas para brigar” — Tribadismo. “Que mal há que as meninas se divirtam, façam um sabãozinho, botem as aranhas para brigar?” Souto Maior retirou a pérola do jornal “Folha de Goiaz” (o exemplar é de 19 de agosto de 1983. E o jornal está grafado “Folha de Goiás”). De um livro de Marieta Teles, menciona a palavra bibiu — pênis. “…Desceram-lhe as calças para ver se ele tinha bibiu” (“Narrativas do Cotidiano”).
“O palavrão escrito pode ser considerado crime; o dito
na rua pode ser considerado contravenção”, diz juiz
Você pode comprar o dicionário e sair por aí dizendo os palavrões mais cabeludos da paróquia. Mas cuidado! O juiz Eliézer Rosa alerta: “O palavrão pode ser enquadrado no Código Penal e na Lei das Contravenções Penais. O palavrão escrito pode ser considerado crime; o dito na rua pode ser considerado contravenção. Tudo depende das circunstâncias de cada hipótese”.
Espero que alguém não se sinta ferido e resolva processar o autor destas mal traçadas linhas. Pietro Maria Bardi, irritado, escreveu no Masp a palavra “merda”. Quase foi preso. Mas, para você, o que é palavrão? Os versos de Sarney? A fala enviesada de Antônio Houaiss? O indecente bigode de PC Farias? O topete do presidente Itamar Interino Franco?
Um errinho do dicionarista: o povão não chama os homossexuais de “veados”, mas de “viados”. Com “i”.
O palavrão é a palavra que deu certo nas ruas e errado no gueto que é a linguagem escrita.
O palavrão é considerado necessário, até mesmo para
evitar o infarto do miocárdio e descarregar as tensões
Souto Maior fez uma ampla pesquisa para escrever o “Dicionário do Palavrão”. Chegou a distribuir quatro mil formulários para todas as classes sociais. Eis algumas conclusões:
* Apenas 56 pessoas, entre 3.200 consultadas, não aprovaram a ideia de dicionarizar o palavrão.
* O homem, o jovem e o pobre falam mais palavrão do que a mulher, o velho e o rico.
* O romancista Jorge Amado foi considerado o escritor que mais usa o palavrão.
* O palavrão foi considerado necessário, até mesmo para evitar o infarto do miocárdio e descarregar o homem de tensões emocionais, funcionando como uma válvula de escape, um desabafo.
* Mãe, por ser a pessoa mais querida de todos nós, é a pessoa mais xingada, o mesmo acontecendo com o marido enganado.
* O palavrão mais usado entre nós é merda, que é também o mais utilizado pelos franceses.
* A língua portuguesa, tão rica como é, perdeu para a alemã (9.000) e a francesa (9.000) em quantidade de palavrões, pois só consegui verbetear pouco mais de três mil palavrões e termos afins.
Texto publicado no Jornal Opção na edição de 20 a 26 de dezembro de 1992