O filósofo britânico John Gray apresenta a Al-Qaeda como moderna e filha do Ocidente

10 janeiro 2015 às 14h58

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Um dos mais importantes filósofos da atualidade, John Gray afirma que a Al-Qaeda nada tem a ver com a Idade Média e que usa muito bem os recursos dos tempos modernos
A morte de Osama bin Laden, em maio de 2011, provocou reações desencontradas. Muitos avaliaram como positiva, pois trata-se do homem que dirigiu a operação que matou milhares de pessoas no atentado ao World Trade Center, nos Estados Unidos, e em outros atentados em algumas partes do mundo. Os norte-americanos comemoraram efusivamente — a festa da vingança —, como se o fim do terrorista saudita tivesse provocado, além da reabilitação eleitoral do presidente Barack Obama, o renascimento da nação ianque. Obama, que parecia um frágil líder político importado, provou-se “americano”, sincronizado com o belicismo do país mais rico da história. Entretanto, muitos (fora dos EUA), talvez a maioria, por mais que não tenham simpatia pelo líder da Al-Qaeda, demonstraram mais “raiva” dos Estados Unidos. Parece evidente que há um forte sentimento antiamericano na maioria dos países. Como a mídia em geral escarafuncha os fatos, tornando-se repetitiva, o que é possível dizer a mais? Quase nada. Com a ajuda de um livro de 174 páginas, “Al-Qaeda e o Que Significa Ser Moderno” (Record, tradução de Maria Beatriz de Medina), do filósofo britânico John Gray, vamos tentar entender algumas coisas raramente discutidas pelos jornais e tevês. Ressalva: a obra é de 2003. Factualmente, está defasada dez anos. Intelectualmente, comporta análises brilhantes, nada démodés (a análise de como o positivismo contaminou o marxismo, que não será exposta a seguir, é sensacional).
Ao atacarem cidadãos americanos, em Nova York e Washington, as duas cidades mais emblemáticas dos Estados Unidos, os guerreiros suicidas da Al-Qaeda “destruíram o mito dominador do Ocidente”, avalia John Gray. O filósofo afirma que a organização terrorista, que nada tem a ver com qualquer fenômeno medieval, “é um subproduto da globalização. (…) Sua característica mais distintiva — planejar uma forma privatizada de violência organizada no mundo inteiro — seria impossível no passado. (…) Os precursores mais próximos da Al-Qaeda são os anarquistas revolucionários da Europa do final do século 19”.
A análise de John Gray a seguir certamente incomoda os intérpretes tradicionais: “Como o comunismo e o nazismo, o islamismo radical é moderno. Embora alegue ser antiocidental, é configurado tanto pela ideologia do Ocidente quanto pelas tradições islâmicas. Como os marxistas e os neoliberais, os islamitas radicais veem a história como o prelúdio de um mundo novo. Todos estão convencidos de que podem refazer a condição humana. Se há um mito exclusivamente moderno, é esse”.
John Gray segura o calcanhar-de-aquiles do crítico tradicional, à americana, do islamismo radical: “No mundo novo vislumbrado pela Al-Qaeda, poder e conflito desapareceram. Isso é uma criação da imaginação revolucionária, não uma receita de sociedade moderna viável”. Aos analistas que veem o islamismo como uma espécie de célula fascista, o filósofo repara: “O islamismo radical é parecido com o fascismo principalmente por ser inequivocamente moderno”.
O anarquista russo Mikhail Bakunin, que dizia que “a paixão pela destruição também é um paixão criativa”, é um dos precursores da Al-Qaeda, ainda que indiretamente. “Se Osama bin Laden teve um precursor foi Serguei Nechaiev, o terrorista russo do século 19”, expõe John Gray.
O escritor anglo-polonês Joseph Conrad escreveu uma obra-prima sobre o terrorismo, “O Agente Secreto”, naturalmente um romance. Um personagem do livro, um russo, diz que, se quiser ser eficaz, o terrorismo “precisa ser um ataque às crenças mais valorizadas da sociedade: ‘O fetiche sacrossanto de hoje é a ciência’. (…) Na época de Conrad, a ciência sacrossanta era a física. Hoje é a economia. A Al-Qaeda destruiu um edifício dedicado ao comércio. A estratégia é: refazer o mundo com atos espetaculares de terror”.
Ao contrapor a Al-Qaeda, com seu islamismo radical, aos Estados Unidos, com seu fundamentalismo religioso e político, John Gray postula: “Cada vez mais a peculiar religiosidade dos Estados Unidos vem se tornando extremamente pronunciada. É, de longe, o movimento fundamentalista mais poderoso de qualquer país avançado. (…) Os EUA têm um regime menos secular que a Turquia”. Não é, claro, uma opinião ortodoxa. Porque, com seu amplo domínio da ciência, os Estados Unidos aparentam ser o país mais secular do planeta. O filósofo, escrevendo em 2003, não tinha como prever a derrota eleitoral do fundamentalismo do grupo de George W. Bush. Obama é, sem dúvida, mais secular do que Bush. De resto, John Gray afirma que o fundamentalismo da Al-Qaeda não permite entender que, por detrás do consumismo americano, há uma ortodoxia religiosa, não raro próxima do fanatismo. Estados Unidos e Al-Qaeda são modernos e religiosos.
Adiante, John Gray retoma a proximidade da Al-Qaeda com o anarquismo europeu: “A ideia de uma vanguarda revolucionária dedicada trazer à luz um mundo sem dominadores nem dominados não tem precedentes no pensamento islâmico. É um empréstimo claro da ideologia radical europeia”. Não muito diferente do ideário do marxismo, que, como as religiões, prega o paraíso “vindouro”. (Noutro livro, o esplêndido “Missa Negra”, o filósofo aproxima o marxismo da religião — uma religião secular, mas com credo e fanáticos.) A raiz intelectual do islamismo radical está no Contra-Iluminismo europeu, anota John Gray. “É o fato de o islamismo radical rejeitar a razão que demonstra que é um movimento moderno. (…) A crença romântica de que o mundo pode ser reconfigurado por um ato de vontade tanto faz parte do mundo moderno quanto o ideal iluminista de uma civilização universal baseada na razão. Um surgiu como reação ao outro. Ambos são mitos”.
Neste texto, não comento o quarto capítulo do livro de John Gray, talvez um dos mais importantes, mas cito trechos que julgo mais fascinantes. “O Japão continua a ser a única verdadeira superpotência econômica. É o maior credor do mundo; suas famílias estão entre os maiores poupadores do planeta. Os EUA são o maior devedor do mundo; a poupança de suas famílias ainda é desprezível. Se a deflação chegar aos EUA, será ainda mais difícil controlá-la do que no Japão.” Note-se que o livro, publicado em 2003, não discute a recente crise americana.
Pode o livre-mercado ser implantado em todos os países e da mesma forma? John Gray sugere que não. “De marca-passo da globalização, os EUA optaram pela globalização num só país. (…) Foram os EUA que encerraram a experiência neoliberal. (…) O governo Bush entrará na história como o coveiro do livre-mercado global.” O filósofo não é marxista, nem liberal.
A Al-Qaeda é uma “multinacional globalizada”
O filósofo John Gray detecta que, no Oriente Médio e no Afeganistão, “não são apenas os Estados e seus agentes que travam a guerra. Entre os protagonistas são importantíssimas as organizações políticas, as milícias irregulares e as redes fundamentalistas não controladas por nenhum Estado. (…) Os pensadores políticos negligenciaram o colapso do Estado em boa parte do mundo”.
Com a falência do Estado, “as armas e os materiais bélicos passaram para as mãos das máfias criminosas. Se hoje há um aumento do risco de terroristas usarem armas de destruição em massa, isso é, em parte, consequência da política imposta pelos governos ocidentais à Rússia pós-comunista, que agravou a fraqueza de um Estado já debilitado”.
Àqueles que acharam estranho os Estados Unidos, ao se prepararem para matar Osama bin Laden, não terem avisado o governo do Paquistão, uma informação útil de John Gray: “O regime talibã que abrigou a Al-Qaeda no Afeganistão parece ter sido construído em boa parte com financiamento saudita por setores das agências de informações do Paquistão”.
Embora pareça meramente “atrasada”, a Al-Qaeda é uma “empresa” global. “O ataque às torres gêmeas demonstra que a Al-Qaeda entende que as guerras do século 21 são recontros espetaculares nos quais a disseminação de imagens pelos meios de comunicação é uma estratégia central. Seu uso da televisão via satélite para mobilizar o apoio dos países muçulmanos faz parte desta estratégia. (…) Também é moderna a sua organização. A Al-Qaeda lembra… as estruturas celulares dos cartéis das drogas e as redes planas das empresas virtuais. Sem sede fixa e com membros ativos em praticamente todas as partes do mundo, a Al-Qaeda é uma ‘multinacional global’”, expõe John Gray.
A Al-Qaeda, diz John Gray (citando Rohan Gunaratna), “é o primeiro praticante da guerra não convencional a ser realmente mundial em suas operações. A Al-Qaeda é a primeira organização terrorista multinacional capaz de funcionar da América Latina ao Japão com todos os outros continentes entre eles. (…) A Al-Qaeda não se guia pela jurisdição territorial. Em vez de resistir à globalização, suas forças estão sendo reunidas por grupos islâmicos contemporâneos, constantemente atrás de novas bases e novos alvos pelo mundo”.
John Gray diz algo preocupante para o Ocidente: “A Al-Qaeda é uma rede suficientemente flexível para sobreviver e funcionar bem no caso da morte ou da incapacidade de seu líder. (…) O que parece claro é que tem uma capacidade formidável de auto renovação. A Al-Qaeda é organizada segundo o modelo da família ampliada”. Bin Laden morreu, e a Al-Qaeda continua ativa.