O discreto repórter que desvendou a máfia do futebol brasileiro

14 maio 2023 às 00h00


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Muitas décadas antes do advento das chamadas “bets” – as casas de apostas eletrônicas que se espalharam pelo mundo e, nos últimos anos invadiram o Brasil –, surgiu a Loteria Esportiva. Era 1970 e logo virou mania nacional: 13 jogos mágicos, 13 “pontos” acertados e o destino mudaria da pobreza para a fortuna.
Foi o que aconteceu com Miron Vieira de Souza, o goiano de Ivolândia, no oeste do Estado e a 188 quilômetros de Goiânia, que em outubro de 1975 ganhou sozinho o prêmio da Loteca (o apelido carinhoso por que passava a ser conhecida a Loteria Esportiva) e comprou três fazendas em seu município. Miron morreu em 2020, com seus empreendimentos bem-sucedidos.
No mesmo ano em que a Loteria Esportiva, três meses antes – o primeiro sorteio oficial foi em junho –, surgia a revista Placar, o semanário esportivo idealizado pela Editora Abril e que se dedicava especialmente ao futebol. Era os tempos mais áureos da “paixão nacional” e a publicação trazia Pelé na capa com a manchete “Receita para ganhar a Copa”. O Brasil seria tricampeão, traria a Taça Jules Rimet – furtada e derretida em 1983 – e aquela se consagraria como a maior seleção de todos os tempos.
Desde o começo, no entanto, havia rumores de que jogos incluídos na cartela tinham resultados arranjados. Ninguém, no entanto, conseguia provar nada – é bom lembrar que, na época, sem telefone celular e suas tecnologias, como aplicativos de conversação, era bem mais difícil a produção de provas.
Um repórter da revista Placar resolveu topar o desafio de apurar o caso, extremamente complexo, porque havia denúncias de norte a sul do Brasil. Era Sérgio Martins, que já havia passado com algumas histórias de reportagem muito audaciosas pela Ultima Hora, de Samuel Wainer, onde ficou até o fechamento do jornal – entre elas, a de ter simulado demência para ser internado no Pinel, o famoso hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, de onde só saiu semanas depois, após a ida de Wainer, em pessoa, até a sala do diretor da unidade: ninguém lá acreditava que aquele maluco era repórter.
A Máfia da Loteria Esportiva chegou à Placar um ano antes da publicação da matéria, em outubro de 1982. Foi o fotógrafo da revista Ronaldo Kotscho que tinha ouvido sobre aliciamento de jogadores para entregar uma partida. Sérgio Martins rapidamente topou fazer a reportagem e então se viu no meio de emaranhado confuso. Fez um estudo trabalhoso, ligou alguns fatos e então viajou pelo Brasil com o fotógrafo. Conforme diz o jornalista Walterson Sardenberg Sobrinho em um saboroso texto sobre o colega, para seu Blog do Berg, Sérgio “esquadrinhou quadrilha a quadrilha – eram várias, atuando em conluio”.
Além das ameaças que sofreu ao ter de apurar o envolvimento de centenas de nomes, entre jogadores, treinadores, dirigentes, árbitros e até colegas – foi um radialista, Flávio Moreira, sua principal fonte –, Sérgio Martins foi “gelado” pela redação da revista, que o via como protegido do editor-chefe, Juca Kfouri, já que pouco comparecia ao expediente – ele viajava sempre e a reportagem era sigilosa, claro.
Quando enfim a matéria saiu, a repercussão foi incomparavelmente maior à que hoje se dá ao caso dos arranjos com jogadores nas apostas eletrônicas. A Loteca era uma instituição nacional, de alcance semanal naquele tempo só comparável hoje ao evento que se tem com a Mega da Virada, no mesmo ramo.
Em 22 de outubro de 1982, a Placar nº 648 teve capa e 12 páginas de denúncias. Foram envolvidas 125 pessoas no esquema, alguns muito famosos, incluindo dois campeões mundiais pela seleção: o lateral Marco Antônio, que foi reserva de Everaldo na Copa de 70, e o atacante Amarildo, substituto de Pelé na Copa de 62.
As edições seguintes da revista também foram repercutindo e aprofundando o escândalo nacional, enquanto o Jornal Nacional se ocupava do tema toda noite. Mas a temperatura foi baixando e a denúncia não deu em nada. A investigação durou três anos e o caso foi encerrado com somente 20 pessoas indiciadas. E todas escaparam de condenação. Sérgio Martins morreu aos 67 anos, em 12 de dezembro de 2013, deixando uma filha do primeiro casamento, um casal de sua segunda relação, além de uma neta. Juca Kfouri escreveu, à época: “Morreu como viveu, discretamente. E provavelmente arrependido por ter apurado e escrito a matéria que, em 1982, abalou o futebol brasileiro e acabou com a credibilidade da Loteria Esportiva. Sérgio Martins, avesso aos holofotes, amargurou-se com a impunidade dos mafiosos e com a pusilanimidade de tantos que procuraram desmentir o resultado de seu meticuloso trabalho para desvendar a face sórdida de nosso futebol.”