No reino da mercadoria, o astro do “Mersilona” fatura milhões e rende milhões pro mercado. Pelé e Joe DiMaggio ganhavam bem menos. Os soviéticos eram “amadores”

Halley Margon

De Barcelona

Quando em março do presente ano o coronavírus mais que previsivelmente ultrapassou as fronteiras da China e, sob o olhar mais que impassível da OMS, atingiu a Europa e logo o resto do planeta, os grandes jornais espanhóis abriram no topo da primeira página uma atualização que era feita de hora em hora dos principais acontecimentos a respeito da evolução da pandemia. É o que está fazendo agora “La Vanguardia”, o principal diário da Catalunha, para informar seus leitores sobre o desenrolar do affair Lionel Messi desde que o burofax do craque notificou o Barcelona que estava deixando o clube. Apesar da rivalidade histórica do Barça com o Real Madri, o jornal “El País”, que eventualmente poderia ferir o melindre dos madrilenos, não fica para trás e dia após dia também dá primeira página para o imbróglio envolvendo o dramática anúncio da despedida — que, pelo que informam as últimas notícias, deverá ser adiada para junho do ano que vem.

Lionel Messi: o craque argentino é a mercadoria mais valorizada do futebol mundial e objeto de desejo do Manchester City do técnico Pepe Guardiola | Foto: Reprodução

Aparentemente, a mídia do resto do mundo de maneira geral tem dado destaque ao assunto. E será mais que uma platitude dizer que a ninguém mais escandaliza ou sequer chama a atenção os valores envolvidos no negócio. A multa, só a multa exigida pela diretoria do clube, caso consiga garantir nos tribunais a ilegalidade da suposta ruptura do contrato (o que parece estar longe ainda de acontecer), é de 700 milhões de euros (uns 4,5 bilhões de reais). Se no final das contas, tiver mesmo que ser paga não resta dúvida de que haverá alguém com caixa suficiente para bancar, não apenas a multa, mas também qualquer outra quantia destinada ao cofrinho do jogador. Consumando-se ou não agora a transferência como quer o jogador, o que interessa é destacar a escala de valores sobre a qual giram as transações envolvendo o trabalho desses sujeitos especialmente dotados, sem nenhuma dúvida, do mundo dos esportes.

É claro que aqui não é espaço para se fazer um estudo sobre a razão pela qual se chegou a cifras tão absurdas. De qualquer forma não sou eu o capacitado para realizar esse trabalho — certamente há por aí um montão de ótimos especialistas nesse encantado e meio mágico universo dos números econômicos e da circulação de mercadorias, quem sabe alguém não se dispõe a escarafunchar o assunto mais a fundo.

Mas o que, sim, se pode fazer aqui é voltar um pouco, apenas um pouco na história, para ilustrar a rápida evolução dessas remunerações.

O segundo marido de Marilyn Monroe
A atriz Marilyn Monroe com Joe DiMaggio, o astro do beisebol norte-americano | Foto: Reprodução

Em 1949, aos 34 anos de idade, Joe DiMaggio (1914-1999), o maior astro do beisebol americano, também conhecido por ter se tornado o segundo marido de Marilyn Monroe (o casamento durou nove meses), assinou um contrato com o New York Yankees no valor de 100 mil dólares (o que, corrigidos para 2020, correspondem a aproximadamente 1.088.000 dólares).

Pouco mais de uma década depois, em 1963, a “Ebony”, uma muito popular revista dedicada “a abordar questões, personalidades e interesses afro-americanos”, publicou uma longa matéria sobre Pelé, afirmando ser “o atleta mais bem pago da Terra”.

Segundo a “Ebony” de então, “nenhum dos astros dos esportes americanos chega perto dos 150 mil dólares do salário anual de Pelé”. Essa informação foi publicada pelo jornal “O Globo”, cinquenta anos depois. Os 150 mil dólares de 1963 corresponderiam hoje a 1.270.000 dólares.

Pelé contra os russos (e o Aranha Negra)
Pelé, o craque do Santos e da Seleção Brasileira, ganhava 150 mil dólares por ano | Foto: Reprodução

Apenas cinco anos antes da matéria publicada pela “Ebony”, Pelé estreou na copa de 1958, e o Brasil enfrentou e derrotou a seleção da União Soviética (2 x 0), cujo goleiro, Liev Yashin (1929-1990), é considerado por muitos como o maior do século 20.

A curiosidade é que o futebol, como de resto os outros esportes na União Soviética, era uma atividade não remunerada. Então, embora desde as décadas de 1930-40 já existissem grandes clubes no país, como o Dínamo de Tíblis, onde jogava o meia atacante Boris Paichadze (1915-1990), a maior estrela da época, atraindo enormes torcidas que lotavam modernos estádios, ninguém recebia especificamente como jogador de futebol. Eram todos amadores.

Liev Yashin: o grande goleiro da União Soviética | Foto: Reprodução

A maneira que o Estado soviético encontrou para remunerar os ídolos dos clubes foi incorporando-os à KGB com postos elevados. Assim fizeram com Paichadze e seus companheiros do Dínamo de Tíblis.

A Yashin, que defendeu a seleção Soviética de 58 a 70, coube o posto de coronel. O espetacular goalkeeper que, apesar de majestoso, não conseguiu salvar sua seleção da genialidade de Pelé, Garrincha e companhia, era portanto também espião da temível KGB.

Boris Paichadze: astro da seleção da União Soviética | Foto: Reprodução
Voltando ao mundo virtual

Agora, de volta aos 700 milhões de euros (830.600.000 milhões de dólares) da multa, apenas da multa, que em tese o pequeno Lionel Messi teria que pagar para deixar o Barcelona se insistisse em fazer isso agora. Eu não sei fazer contas, calculem os senhores e me digam quantas vezes mais é isso que aqueles trocados que Pelé recebeu em 1963. Não se trata de comparar Pelé com Messi, Messi com Pelé ou com quem quer que seja. A mim me parece suficiente dizer que ambos são absolutamente fora de série, gênios na atividade que praticam, tanto quanto Michelangelo e Picasso, ou Artemísia Gentisleschi (1593-1653 — pintora italiana) e Martina Navratilova (para que nos acostumemos de uma vez por todas a nos lembrar sempre também das mulheres geniais).

Evidentemente, a excepcionalidade de um trabalho ou da capacidade de realizar determinado trabalho ou atividade contribui para valorizar excepcionalmente esse trabalho. Mas será apenas isso?

Quando DiMaggio assinou o contrato de 100 mil dólares com o Yankees, há 71 anos, a TV ensaiava nascer. Treze anos depois, quando Pelé assinou o tal contrato com o Santos que lhe garantiu, segundo a “Ebony”, 150 mil dólares por ano, a televisão já dava os primeiros passos.

Os Girassóis, de Vincent van Gogh

O que obviamente está associado à televisão é a publicidade e o mundo virtual que, para muita gente, acabou por se tornar mais relevante que a própria realidade — de forma muito semelhante àquela na qual onde o mundo do puro dinheiro flutua numa realidade quase que paralela à da economia real. Do casamento entre televisão e publicidade o esporte vai receber duas injeções na veia. A primeira é resultado das transmissões ao vivo dos eventos esportivos (segundo o site da Fifa, “as Olimpíadas de 1968 e a Copa do Mundo de 1970 no México foram as primeiras a serem vistas ao vivo em praticamente todos os países do mundo desenvolvido”), o que quase que imediatamente provoca um crescimento exponencial das verbas publicitárias. A segunda é quando tem início os canais por assinatura.

A partir daí, já não se trata mais de remunerar o trabalho de um gênio. Como, de modo semelhante, quando a tela “Os Girassóis”, de Van Gogh, foi vendida em março de 1987 por 39,85 milhões de dólares não se tratava mais de remunerar o trabalho do holandês, por mais precioso que fosse. Messi e “s Girassóis” foram transformados em marcas, imagem à disposição do mercado. Mercadorias e fetiche, ou vice-versa — como qualquer outra.

Messi (& seus parceiros do encantado mundo dos esportes) é um produto  tão apreciado pelos grandes comerciantes de marcas e imagens do mercado mundial de publicidade que agora mesmo aqui em Barcelona já há gente dizendo que sua inevitável (agora ou depois) transferência para o time dirigido por Pepe Guardiola, o Manchester City (ou seja para onde for), vai significar uma sangria para os cofres da cidade.