O brasileiro vai ter de aprender a lidar com as mulheres no futebol
23 julho 2023 às 00h00
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A narradora Renata Silveira está integrada ao time esportivo da Rede Globo na TV aberta desde a Copa do Mundo do Catar, em novembro de 2022. Desde então, além do maior torneio de futebol do planeta, passou a narrar alguns dos maiores jogos nos diversos campeonatos nacionais. É a primeira mulher a estar na função, na maior emissora do País.
Mas nem todo mundo está satisfeito com a conquista. A conquista veio com uma pitada amarga: quando atua em algum jogo, invariavelmente o Twitter e outras redes sociais se entopem de comentários contra ela. São muitos os comentários nada elogiosos: “nada contra ser mulher, é que ela narra mal”; “não suporto a voz”; “é muito fraca”; “não transmite emoção”.
Na sexta-feira, durante o jogo entre Estados Unidos e Vietnã, pela Copa do Mundo Feminina, um perfil postou no Twitter: “Namoral (sic), futebol feminino é horrível e com a Renata Silveira narrando fica 10x pior!”. Detalhe: ela estava de folga e fez questão de lembrar ao desavisado, completando: “Me esquece!”. Quem narrava o jogo era Natália Lara – que, diga-se, fez um ótimo trabalho, com boa descontração e muita informação.
Aliás, sobre a Copa do Mundo feminina, a abertura, entre a anfitriã Nova Zelândia e a boa seleção da Noruega, tinha tudo para ser uma grande festa para a CazéTV, o canal brasileiro de streaming no YouTube que fará a transmissão de todos os jogos, à semelhança do que ocorreu na versão masculina da competição.
Tinha, mas não foi. Para o youtuber Casimiro Miguel e seus colaboradores, o gosto foi amargo ao observar os comentários inacreditáveis que começaram a surgir no chat da transmissão. No caso, não havia narradora mulher, mas jogadoras mulheres. As críticas iam da movimentação das jogadoras até seus nomes. Algumas aproveitavam para mandar um “vão lavar uma louça!”.
O ocorrido fez a equipe desativar os comentários durante a transmissão. “Percebemos que algumas pessoas estavam aproveitando a oportunidade de visibilidade para destilar preconceitos inaceitáveis dentro dos valores da CazéTV e de qualquer sociedade”, escreveu a administração do canal, em nota.
Os dois casos mostram que, definitivamente, o brasileiro ainda não aprendeu a lidar com a presença feminina no futebol. Isso vale para narradoras, jogadoras, árbitras, repórteres, comentaristas e tudo o mais.
Pegue uma de arquibancada de estádio nos anos 80 e a compare com uma dos tempos atuais. A diferença de distribuição dos gêneros em qualquer enquadramento que se faça é gritante. A presença de mulheres para assistir futebol na torcida, até poucas décadas atrás era diminuta. Hoje, elas aparecem em boa quantidade em qualquer foto com pequenas multidões de torcedores. E é assim que tem de ser.
Pode-se gostar ou não da narração de Renata. O que não se pode é falar que ela é incompetente no que faz e que não merece estar na Globo. Primeiramente, porque, sendo a emissora uma instituição privada, ainda que concessão pública, ela contrata quem quiser. E, podendo contratar quem quiser – até por ser líder em audiência, o que facilita a atração de bons profissionais –, não faz sentido trazer alguém que não “mereça” a função.
Renata é uma narradora de muitas qualidades, embora tenha claro, pontos a melhorar – até por ser jovem ainda. Profissionais se formam e se transformam com o decorrer dos anos. O Galvão Bueno que começou a carreira não era a lenda que se tornou, por exemplo.
Para gente que viveu a vida inteira ouvindo futebol “cantado” por timbres masculinos, a voz de uma mulher vai soar mesmo um tanto diferente. Mas o estranhamento faz parte das conquistas e da adaptação à mudança. Da mesma forma, o futebol feminino é diferente do praticado pelos homens: a velocidade, a força, a amplitude etc., tudo tem sua particularidade.
Expandido o princípio de parágrafos acima: pode-se gostar ou não da presença das mulheres no futebol. Mas elas vieram para ficar e as emissoras que aceleram esse processo fazem muito bem.