Não é justo, para homenagear Iris, retirar a homenagem à história e à família de Altamiro Pacheco

24 janeiro 2022 às 15h02

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Iris Rezende terá as suas homenagens; esperemos que se façam sem acintes à história e à família de Altamiro. Uma troca não é coisa pequena ou é apenas na aparência
Marcelo Franco
É um espanto que tenhamos uma discussão sobre a mudança do nome do Aeroporto Santa Genoveva: querem-no renomear Aeroporto Iris Rezende, em homenagem ao ex-governador e ex-prefeito, falecido recentemente.
Cidades têm camadas históricas que se sobrepõem, e isso nos traz certa sensação de pertencimento. Somos carne, sistema nervoso, alma, personalidade e… história. Ou, mudando um pouco o sentido da famosa frase de Ortega y Gasset, “Eu sou eu e minha circunstância, e se não a salvo, não me salvo eu”.

A história é conhecida: Altamiro de Moura Pacheco, nome inscrito com tapete vermelho e banda de música na história goiana, doou o terreno para a construção do aeroporto com a condição de que sua mãe, Genoveva, fosse homenageada, e daí o nome, já velho de décadas, do local de onde partimos para o mundo e para onde retornamos apressados e em busca do prato de pequi que nos faltou em viagens. A questão da doação com a obrigação de homenagem é um problema jurídico que se resolve, creio; o problema real é sabermos o que pretendemos como povo organizado neste espaço geográfico, nesta nesga de terra que aprendemos a amar também por algum sentimento atávico que nos leva à nossa ancestralidade primordial.
Pertencimento, eu escrevi. E aí estão o Iúri Godinho com sua página “Goiás Tem História”, no Instagram, recordando-nos constantemente por que somos o que somos; o Euler de França Belém, com seus textos minuciosos, também não nos deixando ficar desgarrados do nosso passado; o promotor de Justiça Jales Guedes Mendonça, presidente do IHGG, comandando a reforma da antiga e histórica sede do Instituto; o Nilson Jaime escrevendo livros e artigos que nos pregam ainda mais no chão vermelho do Cerrado. Eles e muitos outros.

Há uma tradição, em outros países, de contar histórias de cidades em livros que são quase “biografias”: temos, entre tantos outros exemplos, “Biografia de Lisboa”, de Magda Pinheiro; “Roma” e “Barcelona”, de Robert Hughes; “Jerusalém”, de Simon Sebag Montefiore; “Paris: Biografia de uma Cidade”, de Colin Jones; e “Faust’s Metropolis: A History of Berlin”, de Alexandra Richie. São poucos os exemplos que menciono; poderiam, contudo, ser centenas. Sobre Goiânia, a saga de sua construção está já bem documentada. Ocorre que livros assim existem porque a história dessas cidades quase sempre se acumula como aluvião; ela não se reconstrói com os salamaleques dispensados à personalidade do momento. Iris Rezende terá as suas homenagens; esperemos, então, que elas se façam sem acintes à nossa história e à família de Altamiro. Alguns dirão: uma troca de nomes é coisa pequena: não, não é, ou o é apenas na aparência. Um único nome de edifício ou logradouro traz em si uma história que é parte indissociável da teia da história maior de uma cidade, um Estado, um país — e não menos inseparável de uma narrativa temporal na qual nos inserimos todos. Goiânia sou eu, somos nós, inteiriços por causa de um passado compartilhado.

“O brasileiro não tem memória”, dizem. Costumo duvidar muito desses conceitos absolutos que tentam sintetizar o caráter de todo um povo; eu diria apenas que somente alguns brasileiros não prezam a memória coletiva, e muitas vezes são as mesmas pessoas que nasceram com colunas vertebrais flexíveis. Dado esse passo, quem impedirá que o Aeroporto Iris Rezende passe a ser, em 50 anos, digamos, o Aeroporto Marconi Perillo?

O ex-governador Marconi também receberá as suas homenagens, no devido tempo, mas esperemos que até lá tenhamos compreendido que não se fazem homenagens com atos acintosos. “Aeroporto Santa Genoveva” não é um nome que pertence só a Goiânia ou à família de Altamiro de Moura Pacheco: ele pertence a mim, a nós todos que estamos aqui, tocando as nossas vidinhas bestas no mesmo local e no mesmo tempo, vidinhas que podem ecoar na eternidade se levarmos seriamente o compromisso de que só se mantém um tapete com a coesão dos seus fios.
“Benefac loco illi quo natus es”, para ficarmos novamente com Ortega y Gasset.