Ele tinha 57 anos e escreveu um livro notável sobre a participação dos pracinhas na luta contra o nazismo na Itália

Quem estuda a participação do Brasil na Segunda Mundial sabe que um livro do jornalista Ricardo Bonalume Neto é crucial para entendê-la. “A Nossa Segunda Guerra — Os Brasileiros em Combate: 1942-1945” é um livro valioso sobre a luta dos pracinhas na Itália. Ele também escreveu uma biografia curta mais precisa do autor do romance distópico “1984”: “Orwell”. O notável repórter, autor das melhores análises sobre a Segunda Guerra Mundial e outras guerras, sempre na “Folha de S. Paulo”, morreu no sábado, 24. Ele não resistiu a uma ciurgia para retirada de um coágulo no cérebro.

Ricardo Bonalume Neto era repórter da “Folha” desde 1985. O Portal Imprensa informa que “nos anos 1990, fez grandes coberturas, como uma expedição pela Transamazônica com o fotógrafo Antonio Gaudério e uma duradoura visita ao antigo Zaire, atual Congo, para cobrir a dissolução do regime militar liderado pelo ditador Mobutu. A viagem nutriu o interesse dele em estudar a malária e escrever detalhadamente sobre a doença. No obituário publicado pela Folha, o jornalista é descrito como um profissional folclórico, colega querido na redação do veículo e amante dos livros – mantinha acervo com mais de 6 mil obras em casa.

Éramos amigos de Facebook e trocamos opiniões sobre livros, notadamente sobre a Segunda Guerra Mundial. Uma vez, quando publiquei um texto sobre a brasileira que ajudou a patrocinar a publicação do primeiro livro de George Orwell, Bonalume me perguntou se eu tinha informações extras sobre o assunto.

A “Folha” publicou uma reportagem que explica com relativa precisão quem era Ricardo Bonalume Neto. Leia abaixo:

Morre o jornalista Ricardo Bonalume Neto, aos 57 anos

Colaborador da Folha desde 1985, era especialista em ciência e temas militares

Gabriel Alves

De São Paulo

Morreu aos 57 anos na madrugada deste sábado (24) o jornalista Ricardo Bonalume Neto, um dos maiores jornalistas de ciência e especialistas em assuntos militares de sua geração.

Ele não resistiu a uma cirurgia de emergência para a remoção de um coágulo.

Ricardo Bonalume nasceu em 5 de setembro de 1960, em São Paulo, cidade onde sempre morou. Escrevia para a Folha desde 1985.

O humor ácido e irônico, o jeito brincalhão e a rabugice marcaram um personagem considerado folclórico por vários dos colegas com quem conviveu na Redação do jornal.

O “velho repórter”, como Bonalume se referia a si mesmo, foi o vencedor do Prêmio José Reis, um reconhecimento por suas contribuições ao jornalismo científico nacional, em 1990.

Gostava especialmente de arqueologia, biotecnologia e a teoria da evolução. Pegou gosto em escrever reportagens sobre malária —dizia que era sua doença predileta— depois de ter ido ao antigo Zaire, atual Congo, cobrir a queda do ditador Mobutu em 1997. Voltou apavorado com a doença, como lembra Claudio Angelo, coordenador de comunicação do Observatório do Clima e editor de Ciência da Folha entre 2004 e 2010.

Ficou em Kinshasa, a capital do país, durante todos os momentos de tensão com o avanço dos rebeldes de Laurent Kabila, que chegavam do leste, e testemunhou o momento histórico da fuga do ditador.

Na volta, deu uma palestra no jornal para relatar a experiência. “Ele narrou a viagem, os tiroteios, as mortes. No meio da fala, abriu uma caixa. ‘Agora vou mostrar uns souvenires’. E sacou algumas balas douradas e pontiagudas, enormes, do tamanho da palma de uma mão. ‘Isso aqui eu resgatei do chão em frente o palácio do Mobutu. Felizmente, nenhuma me atingiu.”, lembra Fábio Zanini, editor de Poder da Folha.

“Ele foi um exemplo de absoluta coerência intelectual. Ele dizia que as coisas são o que elas são, não o que queremos que elas sejam”, diz Angelo.

Também era obcecado por assuntos militares. Seu interesse era tamanho que se tornou uma das maiores referências da área no país.

Em junho de 2017, foi condecorado com a Ordem do Mérito Naval, grau de cavaleiro, feito que o deixou radiante.

Leão Serva, colunista da Folha, foi uma espécie de patrono da entrada de Bonalume no jornal.

Eles haviam sido colegas do Colégio Santa Cruz almoçavam na casa de Nina Horta toda segunda e quarta. Os filhos dela eram amigos dos dois futuros jornalistas.

“Ele tinha muita admiração por Paulo Francis e, assim como ele, tinha essa característica de ser culto e irônico. Vivia fazendo piadas. Bonalume foi uma figura referencial, um jornalista de ciência de envergadura internacional”, diz Serva. “Ele era um comentarista de armas e de estratégias de guerra de mão cheia.”

Sem pudor

Bona, como era conhecido, era um notório rebelde e fanfarrão —tirava sarro de chefes e colegas, fazia seu próprio horário, não respeitava muito prazos e hierarquias.

Certa vez, escreveu um poema para a editora de Ciência Mariana Versolato para se desculpar pelo prazo descumprido: “(…)O embargo já caiu/  Mas a matéria não saiu/ Foi culpa do velho/ Que no ponto dormiu. Foi obra do ancião repórter/ Que começou na terça à noite/ Para entregar na quarta-feira/ Esquecendo ele próprio/ Que isso não era brincadeira./ Pois agora ele aproveitou/ Para tentar se redimir/ A cientista ele entrevistou/ Pra matéria poder sair.”

Quando cobrado, repetia seu bordão: O atraso é o preço da qualidade.

Marcelo Leite, hoje repórter especial da Folha e contemporâneo de Bonalume, conta que uma vez, quando Bona estava atrasado para o trabalho, respondeu à ligação do chefe sem o menor pudor: “Estou acabando de dar banho na minha gata e já vou”.

“Tenho uma dívida com o Bonalume. Foi ele quem me apresentou o trabalho do paleontólogo Stephen Jay Gould, referência que mudou minha carreira”, conta Leite.

Bona também promovia um desafio na Redação: pedia que um colega escolhesse uma palavra aleatória para que a introduzisse na reportagem do dia. Entre os exemplos bem-sucedidos estão neoprene, fios de ovos e bolachas.

Lúcia Helena de Camargo, com quem Bonalume viveu por dez anos, até 2001, diz que o que a encantou eram a inteligência e a erudição. “Chegamos a ter dez gatos juntos. Continuamos a ser amigos depois que não éramos mais um casal.”

Segundo ela, um dos melhores trabalhos do ex-marido foi quando ele percorreu a Transamazônica, em meados da década de 1990, com o fotógrafo Antonio Gaudério.

Bonalume foi aluno do colégio Santa Cruz e da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Chegou a estudar direito também no largo de São Francisco, mas abandonou o curso no 4º ano porque sabia que o que queria mesmo era ser jornalista. Era também baterista.

Deixa a mulher, Anita, os enteados Paulo e Beatriz, a cachorra Lana e sua biblioteca com mais de 6.000 livros. “Ele era extremamente inteligente, culto e rabugento –menos comigo. Foi o homem mais maravilhoso que conheci”, diz Anita.