Milan Kundera (1929-2023) é um ensaísta refinado, analista primoroso de Cervantes, Kafka e Hermann Broch (“Os Sonâmbulos”). Já sua literatura é pouco examinada em livros publicados no Brasil. Mas o que há é de qualidade acima da média. Entre seus comentadores estão a brasileira Leyla Perrone-Moysés (sempre notável), a francesa Pascale Casanova (1959-2018), a americana Michiko Kakutani (durante anos, crítica do jornal “New York Times”) e o inglês David Lodge.

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Tcheco diz que crítica apressada não compreende a literatura

Comecemos pela melhor dos quatro, Leyla Perrone-Moisés, autora do excelente livro “Mutações da Literatura no Século XX” (Companhia das Letras, 295 páginas). Milan Kundera é mencionado em várias páginas.

Leyla Perrone-Moisés começa citando “A Arte do Romance” (Companhia das Letras, 153 páginas, tradução de Teresa Bulhões de Carvalho da Fonseca), livro de Milan Kundera que analisa a escritura de Cervantes, espanhol, Kafka, tcheco que escrevia em alemão, e Hermann Broch, austríaco. O criador de “A Imortalidade” considera o autor de “Os Sonâmbulos” como uma espécie de mestre literário.

O exame da obra de Milan Kundera ocorre no ensaio “A nova teoria do romance”. Leyla Perrone-Moisés sublinha que, “em ‘A Arte do Romance’”, o autor tcheco “reconhece que o romance já não pode aspirar a exprimir a essência do ser e refletir a totalidade do mundo, mas aceita essa situação como uma nova postura que não impede sua realização”.

A crítica recolhe um trecho do livro de Milan Kundera: “Compreender o mundo como ambiguidade, ter de enfrentar, em vez de uma só verdade absoluta, várias verdades relativas que se contradizem (verdades incorporadas em egos imaginários chamados personagens), ter portanto como única certeza a sabedoria da incerteza”.

Então, o romance se estabelece como “meditação sobre a existência”. “A existência não é o que aconteceu, a existência é o campo das possibilidades humanas”, sugere Milan Kundera.

A crítica social de Milan Kundera, no entender de Leyla Perrone-Moisés, “não se refere mais à denúncia das condições materiais e morais da vida na sociedade burguesa, mas ao grande poder de alienação exercido pela cultura de massa. Diante da tolice dominante da indústria cultural, o romance pode ter um valor de resistência e de crítica”. Ressalte-se que o escritor, na sua literatura, procede a uma crítica corrosiva e perspicaz da vigência do stalinismo na Tchecoslováquia (hoje, dividida em República Tcheca e Eslováquia).

Leyla Perrone-Moisés acolhe mais um trecho do livro de Kundera: “A tolice moderna significa não a ignorância, mas o não pensamento das ideias recebidas.  (…) Podemos imaginar o futuro sem a luta de classes ou sem a psicanálise, mas não sem a invasão irresistível das ideias recebidas que, registradas nos computadores, propagadas pela mídia, ameaçam tornar-se em breve uma força que esmagará todo pensamento original e individual e sufocará assim a própria essência da cultura europeia nos tempos modernos” (“L’art du Roman” é da 1986, mas, dado o vigor das ideias, parece ter sido escrito ontem).

A crítica retoma ensaios posteriores de Milan Kundera, reunidos em “Os Testamentos Traídos” (Companhia das Letras, 320 páginas, tradução de Teresa Bulhões e Maria Luiza Newlands da Silveira) — no qual comenta os escritores Rabelais, Cervantes, Hemingway e Kafka e os compositores Stravinski e Leoš Janáček — e “A Cortina” (Companhia das Letras, 160 páginas, tradução de Teresa Bulhões).

Nos ensaios, nos quais vasculha o romance europeu, Milan Kundera, aponta Leyla Perrone-Moisés, enfatiza “sua relação com o humor e a música. O título e a conclusão são pessimistas: ‘Os Testamentos Traídos’. A tradição que ele considera traída é da Europa, no que se refere à arte e ao romance. As razões dessa traição seriam: o moralismo; a indiscrição generalizada que ameaça o individualismo; a crítica preguiçosa que se contenta em ser mera ‘informação sobre a atualidade literária’, enquanto o romance exige releitura (como a música que é reescutada), reflexão, intuição e esquecimento da atualidade imediata”.

Milan Kundera: escritor enfrentou, com a literatura, stalinismo soviético e tcheco | Foto: Reprodução

“A Cortina”, livro posterior, é notado por Leyla Perrone-Moisés como “nostálgico”. Henry Fielding é visto pelo crítico tcheco como “um dos primeiros romancistas capazes de pensar uma poética do romance”. Milan Kundera está falando, de acordo com a crítica, “implicitamente de si mesmo”.

“Teoria leve e agradável; pois é assim que um romancista teoriza: conservando ciumentamente sua própria linguagem, fugindo como à peste do jargão dos eruditos”, diz Milan Kundera sobre o congênere inglês. “A única coisa que nos resta diante desse inelutável malogro que chamamos de vida é tentar compreendê-la. Essa é a razão de ser do romance”, anota o ensaísta.

O autor de “A Insustentável Leveza do Ser” percebe, no dizer de Leyla Perrone-Moisés, “a arte do romance como uma história contínua, mas desprovida de ‘progresso’”.

“A ambição romancista não é fazer melhor do que seus predecessores, mas ver o que eles não viram, dizer o que não disseram”, sugere Milan Kundera.

Leyla Perrone-Moisés enfatiza que “Kundera não é apenas um ensaísta culto e agradável de ler. Suas tomadas de posição com relação à época atual têm a verve do polemista. (…) Ele condena o ensino de literaturas nacionais, ainda praticado nas universidades, como um provincianismo herdado dos nacionalismos do século XX”.

Leyla Perrone-Moisés: uma das mais importantes críticas do Brasil | Foto: Reprodução

No entendimento de Milan Kundera, o essencial de um escritor é sua obra, não a correspondência e rascunhos. “Ao colecionar, publicar e examinar esses rastros menores do autor, os pesquisadores universitários substituem a ‘moral do essencial’ pela ‘moral do arquivo’.” O escritor critica: “O ideal do arquivo: a doce igualdade que reina numa imensa fossa comum”.

O autor de “O Livro do Riso e do Esquecimento” critica “as adaptações de grandes obras literárias para o cinema e a televisão. Porque elas perdem o essencial do romance, que é a forma”, regista Leyla Perrone-Moisés. “Pretende-se prolongar a vida de um grande romance por uma adaptação, e o que se faz é apenas construir um mausoléu no qual somente uma pequena inscrição no mármore lembra o nome daquele que ali não está”, ataca Milan Kundera. Não deixa de ser curioso que, às vezes, ao comentarem “A Insustentável Leveza do Ser”, algumas pessoas estão, na verdade, falando do filme — que, naturalmente, não teve como captar a linguagem e toda a história do romance.

No mesmo ensaio, adiante, depois de mencionar o filósofo Adorno (a indústria cultural) e os escritores Proust e James Joyce, Leila Perrone-Moisés retoma a questão do cinema: Kundera alerta para o perigo de sermos esmagados pelo lugar-comum, e refuta a possibilidade de adaptação do romance ao cinema e à televisão, justamente porque na adaptação preserva-se apenas o enredo e perdem-se as múltiplas camadas de significação que só a linguagem verbal pode criar”.

Noutro ensaio, “A volta do romanção”, Leyla Perrone-Moisés diz que “‘A Insustentável Leveza do Ser’, de Kundera, é o melhor retrato do amor no final de um século de convulsões históricas e de perda de referentes religiosos ou morais. O sucesso internacional desse livro se deveu ao fato de os leitores da época se identificarem com suas personagens, dilaceradas entre a ‘leveza’ da liberdade sexual e o ‘peso’ do comprometimento emocional, ético e político”.

O ensaio de Leyla Perrone-Moisés, de qualidade ímpar, não trata apenas de Milan Kundera. Senti falta, porém, de um exame mais detido do vínculo da literatura do autor de “A Brincadeira” com sua dura crítica ao stalinismo soviético e tcheco. “O Livro do Riso e do Esquecimento” parece um livro de contos — e, aqui e ali, de fábulas —, porque são histórias com personagens distintas (uma delas, Tamina, magnífica). Mas é um romance, um belo e doloroso romance, cujos temas — o amor, o erotismo, o sexo e o stalinismo — são os elementos que unificam as histórias.

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“Pequenas nações têm dores das quais as grandes nem desconfiam”

“A República Mundial das Letras” (Estação Liberdade, 436 páginas, tradução de Marina Appenzeller), da brilhante Pascale Casanova (uma pena que tenha falecido aos 59 anos), comenta a literatura de Milan Kundera.

Pascale Casanova: as “periferias” são invisíveis no sistema global | Foto: Reprodução

Pascale Casanova fala de escritores, de alta qualidade, mas que, pertencendo a países menores, estão (relativamente?) à margem, como Danilo Kiš e Milan Kundera. O tcheco acabou ganhando “força” dado o fato de ter se tornado praticamente um escritor francês (escreveu parte de sua obra na língua de Flaubert). Asilou-se na França para escapar da virulência e perseguição do stalinismo na Tchecoslováquia. Claro que deve se ressaltar que “altas literaturas” — ou, por vezes, escritores isolados, como o turco Orhan Pamuk — se impõem, mesmo que os países estejam, digamos, fora do sistema global.

“As pequenas nações, esse conceito não é quantitativo; designa uma situação, um destino: as pequenas nações não conhecem a sensação feliz de estarem lá desde sempre e para sempre; […] sempre confrontadas à arrogância ignorante dos grandes [países, como a ex-União Soviética], assistem à sua existência perpetuamente ameaçada ou questionada: pois sua existência está em jogo”, escreve Milan Kundera. A Tchecoslováquia, por sinal, foi invadida pelos tanques soviéticos em 1968. Trata-se da Primavera de Praga. Um sopro de verdade, que se anunciava, acabou por se tornar um vento leve tragado pelas forças militares dos comunistas da URSS com o apoio de comunistas tchecos.

A escritora e tradutora do servo-croata Janine Matillon observa que “as pequenas nações têm dores das quais as grandes nem mesmo desconfiam”. Pascale Casanova acrescenta: “A pequeneza, a pobreza, o ‘atraso’, a marginalidade desses universos literários tornam os escritores, que são seus membros, propriamente invisíveis, imperceptíveis no sentido literal, para as instâncias literárias internacionais; invisibilidade e afastamento que só aparecem bem para os escritores desses países  que, por ocuparem posições internacionais nesses universos nacionais, conseguem avaliar com precisão o lugar de seu espaço na hierarquia tácita e implacável da literatura mundial. Essa invisibilidade os obriga a pensar sua própria ‘pequeneza’”.

Adiante, Pascale Casanova colhe a voz de Milan Kundera: “Uma pequena nação assemelha-se a uma grande família e ela gosta de se designar assim. […] Na grande família de uma pequena nação, o artista fica portanto amarrado de várias maneiras, por muitas cordas. Quando Nietzsche maltrata ruidosamente o caráter alemão, quando Stendhal proclama que prefere a Itália à sua pátria, nenhum alemão, nenhum francês se ofende com isso; se um grego ou um tcheco ousasse dizer a mesma coisa, sua família iria anatematizá-lo como um traidor detestável”.

Pascale Casanova registra que “Milan Kundera, escritor tcheco exilado na França desde 1975, há alguns anos redige seus livros em francês [o livro da crítica francesa foi publicado em 1999, na França, e em 2002 no Brasil]; porém, mais ainda, desde 1985 decidiu, após ter ele próprio controlado e corrigido a totalidade das traduções francesas de seus livros tchecos, fazer da versão francesa de sua obra a única inteiramente autorizada. Por um procedimento que inverte o processo comum da tradução (e que mais uma vez prova que se trata menos de uma mudança de língua do que de ‘natureza), o texto francês de seus romances torna-se portanto a versão original: ‘Desde então’, escreve Kundera, considero o texto francês como meu e deixo que traduzam meus romances tanto do tcheco quanto do francês. Tenho até mesmo uma ligeira preferência pela segunda solução’”.

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David Lodge aponta realismo mágico na literatura de Kundera

No livro “A Arte da Ficção” (L&PM, 245, tradução de Guilherme da Silva Braga), David Lodge começa com uma longa citação do romance “O Livro do Riso e do Esquecimento”, do qual anoto apenas uma parte: “Praga com os cafés cheios de poetas e as prisões cheias de traidores, e no crematório estavam dando cabo de uma socialista e de um surrealista”. O surrealista tcheco é Zavis Zalandra, poeta que era amigo de Paul Éluard, que, no lugar de defendê-lo, optou por apoiar sua condenação, que resultou em execução. Acusada de conspiração, Milada Horáková foi executada pelo Partido Comunista. Os dois foram mortos em 1950. Tinham menos de 50 anos. Decente, o surrealista francês André Breton ficou ao lado do vate da terra de Kafka. A história está contada nas páginas 64 e 65 do romance (minha edição é do Círculo do Livro, autorizada pela Editora Nova Fronteira).

David Lodge: escritor e crítico inglês | Foto: Reprodução

David Lodge diz que é possível constatar que o realismo mágico — para além de Gabriel García Márquez — também ocorre na literatura do alemão Günter Grass, do indiano Salman Rushdie e do tcheco Milan Kundera. “Todos esses autores viveram períodos de grande turbulência histórica e conflitos pessoais pungentes, que, a seu modo de ver, não se prestam à representação em um discurso realista tradicional.”

No romance “O Livro do Riso e do Esquecimento” — meio anti-romance, o que “cola” as várias histórias é a História, a vigência do comunismo stalinista na Tchecoslováquia —, pontua David Lodge, Milan Kundera “afirma ter visto uma roda de dançarinos levantar voo e ir embora”. Porém, o crítico inglês parece não distinguir as possíveis variantes de realismo mágico. Pois no livro do escritor tcheco ir embora talvez tenha outro sentido. Voar, no caso, pode ser tão-somente escapar da ditadura comunista do país. Não se trata, provavelmente, de um voo literal — mágico. De qualquer maneira, é possível mesmo que o autor de “A Brincadeira” tenha flertado com a literatura imaginativa da América do Sul.

Numa rua de praga, Milan Kundera, o personagem Milan Kundera, encontra-se com o poeta Paul Éluard, que dança numa roda de jovens. “A roda de dançarinos desprende-se do chão e começa a flutuar pelo céu. O acontecimento é impossível. Mesmo assim, suspendemos nossa descrença, pois a imagem expressa de forma poderosa e comovente as emoções que vinham se preparando nas páginas anteriores. A imagem dos dançarinos alçando-se aos ares, levantando os pés ao mesmo tempo em que a fumaça das duas vítimas cremadas ergue-se no mesmo céu, simboliza o autoengano estapafúrdio dos camaradas, a ansiedade por declararem-se puros e inocentes, a obstinação em não enxergar o terror e a injustiça do sistema político a quem servem”, escreve David Lodge.

“Uma das características mais atraentes de Kundera é que ele nunca reclama para si o título de mártir e nunca subestima o custo humano de ser um dissidente”, postula David Lodge. A passagem dos bailarinos voando funciona, de acordo com o crítico britânico, “graças ao brilhante apelo visual. Kundera chegou a dar aulas de cinema em Praga” (no romance relata que trabalhou como astrólogo, anonimamente, numa publicação comunista. Ele estava proibido de trabalhar).

David Lodge sublinha que Milan Kundera “explora”, em “O Livro do Riso e do Esquecimento”, “as ironias públicas e as tragédias pessoais na Tchecoslováquia do período pós-guerra com uma narrativa mais solta e mais fragmentária, que flerta com o documentário, a autobiografia e a fantasia”. De fato, Milan Kundera é, neste belo romance, narrador e personagem. Narra “de dentro”, como se estivesse “de fora”. Há uma espécie de olhar do antropólogo participante.

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Michiko Kakutani faz perfil de Milan Kundera

“O Poeta ao Piano” (Casa Maria Editorial, 263 páginas, tradução de Ana Arruda Callado) contém “perfis de escritores, cineastas, dramaturgos e artistas em ação”. Sua autora é a jornalista Michiko Kakutani, que, durante anos, foi crítica titular de literatura do jornal americano “New York Times”.

Milan Kundera é perfilado por Michiko Kakutani em quatro páginas. Trata-se de um perfil bem-feito, mas abstenho-me de comentá-lo. Porque quase tudo que contém eu expus em dois textos anteriores, baseados em entrevistas do escritor tcheco ao escritor Philip Roth e à “Paris Review”. As duas matérias podem ser consultadas no site do Jornal Opção. Confira os links abaixo.

Leia sobre a entrevista de Kundera a Philip Roth

Leia sobre a entrevista de Kundera à Paris Review