Merval Pereira critica Bolsonaro, diz que PT não está no seu radar e elogia Sergio Moro

05 dezembro 2021 às 00h02

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O profissional da GloboNews e de O Globo afirma que “o jornalismo é que ajuda a sociedade a se mover”
O mineiro Zuenir Ventura, de 90 anos, entrevistou o carioca Merval Pereira, de 72 anos, para o jornal “O Globo” (quinta-feira, 2). O texto saiu com o título: “Merval Pereira: ‘O jornalismo ajuda a sociedade a se mover’”. O jornalista é o novo presidente da Academia Brasileira de Letras, que foi presidida pelo escritor Machado de Assis.

Sobre o jornalista Carlos Castelo Branco, o Castelinho, Merval relata: “Era formidável ver como ele conseguia transmitir informações na coluna driblando a censura, os militares que não queriam muitas vezes que informações saíssem”. Sobre um colunista da “Folha”: “Trabalhei com Elio Gaspari na ‘Veja’ quando ele era diretor [adjunto da redação]. É uma das pessoas mais inteligentes que já conheci. Ele me influenciou muito, me deu muitas orientações e direção de como escrever sobre política”.
Merval conta que, entre seus admiradores, estava o presidente Jair Bolsonaro, que pretende retirar a concessão da TV Globo em 2022 (o que, no mercado, ninguém acredita — exceto se o presidente for reeleito, o que parece improvável). O líder da direita ficou “surpreso” quando o jornalista começou a criticá-lo na GloboNews e em “O Globo”, onde é colunista. “Assim como os petistas ficaram [perplexos] quando comecei a criticar Bolsonaro, porque” antes o jornalista “criticava Lula”. O PT passou a tratá-lo como “inimigo” e, agora, certamente é um adversário cordial. “Não há conversa inteligente sobre política, o destino do país. É um exemplo típico de como estamos vivendo. Ou é um lado, ou o outro.”

O jornalismo dos Estados Unidos, acredita Merval, pode ser um exemplo para o brasileiro. No caso Watergate, na década de 1970 — que levou à renúncia do presidente republicano Richard Nixon —, o jornalista diz que ficou “deslumbrado com a possibilidade de escrever coisas gravíssimas sobre o governo, e ser protegido pelas leis”. De fato, Nixon chegou a ameaçar o “Washington Post” e sua publisher, Katharine Graham, mas o jornal não recuou um milímetro. “Em várias ocasiões a imprensa peitou presidentes, de qualquer tendência, e a Suprema Corte e a Justiça estadual, na maioria das vezes, deu apoio à liberdade de imprensa. No momento em que não há imprensa livre, não há o que contenha o dirigente autoritário. Estamos vivendo isso hoje no país, a imprensa é fator fundamental para a manutenção da democracia. (…) Seja em que plataforma for, e hoje temos milhares, o jornalismo é que ajuda a sociedade a se mover. Constatar que a profissão que escolhi é central numa democracia é reconfortante.”
Na eleição de 2018, Merval anulou o voto. Rejeitou Bolsonaro (então no PSL) e Fernando Haddad (PT). “A partir do mensalão nunca pensei no PT como solução, sempre votei nos candidatos do PSDB.”
O PSDB, na avaliação de Merval, está destruído dadas as “brigas internas”. Talvez não seja isto. Recentemente, o partido ganhou alguma projeção nacional exatamente por causa dos conflitos internos — que, a rigor, não são brigas. Fernando Leite, ao se colocar contra João Doria, o pré-candidato do partido a presidente, acabou por chamar a atenção do país para o tucanato. O problema do PSDB é outro. Sua moderação, em tempos polarizados, sem meio-termo, é vista como condenável. Os extremos, como Bolsonaro, do PL (do “ético” Valdemar Costa Neto), e Lula da Silva, do PT, se atraem e, também, atraem mais apoiadores. Porque respondem, de maneira mais integrada e apocalíptica, à radicalização generalizada, notadamente nas redes sociais, do é “A” ou é “B”. Quem é “C” equivale quase a “zero”.

“Sergio Moro”, sublinha Merval, é “um bom candidato, começou bem, está com visão boa. Anunciar o Affonso Celso Pastore como orientador econômico é um bom sinal, porque é um economista brilhante, uma pessoa que faz parte de um grupo de pensamento econômico que já fez o Plano Real. É um liberal, acha que o Estado não tem que ser nem mínimo, nem máximo, quer abrir a economia para o mundo”. O ex-juiz é visto como o nome mais sólido da terceira via.
De fato, Moro é um bom candidato. Tanto que o PT, no momento, escolheu-o para sparring. Porque sabe que, na hipótese de segundo turno, é um candidato mais difícil de derrotar do que Bolsonaro. Se passar o presidente nas pesquisas, vai ser difícil, quiçá impossível, segurá-lo. Portanto, é uma ameaça poderosa ao postulante petista.
Mas há dois problemas em Moro que (me) incomodam. Primeiro, parece acreditar que o principal problema do Brasil é a corrupção — e talvez não seja (a desigualdade social e a violência são mais graves). Seu discurso monotemático pode ser corrigido, como sugere a indicação de Pastore. Porém, mesmo assim, sua obsessão contra a corrupção por certo perdurará. Se eleito, para governar, terá de conviver com o Centrão — porque a realidade é o que é, não o queiramos que seja —, o que decepcionará seus eleitores. A convivência com o Centrão é incontornável, mas o que não se deve é permitir que tal grupo assenhore-se do núcleo do governo, como está acontecendo agora, na gestão de Bolsonaro.

Segundo, numa variação do combate à corrupção, Moro parece acreditar que, em quatro anos de governo, é possível corrigir o homem e, portanto, a sociedade. Enquadra-se, por isso, entre os políticos utópicos, ou até fantasiosos. Instituições sólidas, numa sociedade democrática, podem, a longo prazo, melhorar o homem, torná-lo mais institucional — cumpridor das leis —, mas não perfeito. Mudanças tecnológicas de grande porte, como estão se processando neste momento, são possíveis. Mas mudar o homem, “refazendo-o”, é uma missão que, às vezes, demanda séculos.
Aqueles que tentaram mudar o homem rapidamente acabaram por construir sociedades ditatoriais, totalitárias. Stálin era um político incorruptível (em termos financeiros), e tão implacável quanto inflexível. Seu objetivo real era construir o novo homem, a nova sociedade, que saltaria, do socialismo, para o comunismo — o paraíso na Terra. Deu no que deu: cerca de 30 milhões de pessoas assassinadas e o socialismo ruiu, na União Soviética, depois de 74 anos. Os fins, como sugeriu Norberto Bobbio, podem corromper os meios. A violência, usada para a construção do homem novo, não gerou nem igualdade nem liberdade, e sim um regime totalitário.
Não se está a dizer que Moro tem vocação totalitária, que seja stalinista. Mas a ideia de que é possível criar “perfeição” a partir das leis parece-me uma ideia perigosa. Admito, inclusive, que eu talvez não esteja interpretando corretamente as ideias do ex-ministro e ex-magistrado (até porque, fora a ideia do combate sistemático à corrupção, ele fala pouco sobre seu ideário). Posso até votar em Moro, mas o realismo de Lula da Silva é mais agradável à minha audição. O petista-chefe é pragmático; e, se tentar impor medidas autoritárias, será tanto denunciado pela imprensa — a que Merval elogia — quanto combatido pelo Congresso (frise-se que, apesar de fisiológico, o Centrão é pró-democracia — e talvez por isso Bolsonaro tenha abandonado a ideia de golpe de Estado) e pelo Poder Judiciário (o Supremo Tribunal Federal está numa boa fase).
A respeito de Ciro Gomes, Merval afirma que “é imprevisível, do ponto de vista pessoal, de temperamento”. Ora, é o contrário, o postulante do PDT é altamente previsível, em termos de temperamento. O marqueteiro João Santana não vai conseguir moderá-lo, ainda mais que ele caiu para o quarto lugar, atrás de Moro. “Cirinho paz e amor” não funciona. Porque o indivíduo que “sabe tudo” (parece ter solução para todos os problemas), como Ciro, aproxima-se dos políticos totalitários. “Mas é candidato importante, com bom recall”, registra Merval.
Mestre Zu inquire se Merval admira mais o inglês Winston Churchill, o americano Franklin Delano Roosevelt ou o francês Charles de Gaulle. “Churchill é meu favorito. Pelo que fez, e porque era o mais humano dos grandes líderes. Fazia tudo o que hoje o politicamente correto critica — fumava charuto desbragadamente, bebia no café da manhã, mas um era um gênio político. Você pode criticar De Gaulle por ter sido autoritário, mas tinha um projeto de país, defendia pontos centrais para a França. Hoje não se tem grandes estadistas, nem de direita, nem de esquerda”. Não há o que discordar em relação a Churchill, pois, se não fosse sua energia física e verbal, o mundo hoje seria uma imensa colônia da Alemanha nazista. Mas o que teria sido da Europa sem o apoio decisivo de Roosevelt, dos Estados Unidos? E mais: pode-se não apreciar Stálin, mas, se não fosse o georgiano, é provável que Adolf Hitler teria vencido a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Talvez os Aliados ganhassem, mas a batalha teria se prolongado por mais tempo, com mais mortes (calcula-se que morreram de 60 milhões a 80 milhões de pessoas).
E como desconsiderar que Angela Merkel é (foi) uma das grandes estadistas do século 21? Boris Johnson (ótimo “hagiógrafo” de Churchill), primeiro-ministro da Inglaterra, também não vai mal, embora ainda não tenha a estatura da alemã.
Merval levaria “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust (1871-1922 — um gênio literário que viveu apenas 51 anos), para uma ilha deserta. Ele admite que nunca terminou a leitura do múltiplo romance do francês. O jornalista elogiou o belo “O Encontro Marcado”, de Fernando Sabino, e “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D. Salinger.
No momento, enquanto a ilha deserta não surge, Merval está lendo “Anos de Chumbo”, contos de Chico Buarque, “Vestígios”, contos de Ana Maria Machado, e “Saga dos Intelectuais Franceses”, de François Dosse (volume 1, que vai de 1944 a 1968).