José Eduardo de Morais brilhou na TV Globo e contribuiu para aprimorar e modernizar a música de artistas goianos

Iuri Rincon Godinho

O maestro José Eduardo Morais, que faleceu na segunda-feira, 19, de câncer no intestino, foi um dos músicos mais importantes da história de Goiás. No início dos anos 70 trabalhava na orquestra da Rede Globo de Televisão, a mais poderosa emissora televisiva da história brasileira, na sua época áurea.

Zé Eduardo nasceu em Goiânia, em 20 de junho de 1954, mesmo ano de Peninha. Três anos mais novo que Fernando Perillo, dois que João Caetano. Dois anos mais velho que Rinaldo Barra e cinco do que Marcelo Barra. O futuro maestro morava no mesmo prédio que os irmãos Barra, no Edifício Myrtes (nome de sua mãe), na Rua 2 quase esquina com a Tocantins.

Gêmeos com ascendente em Gêmeos, Zé Eduardo vinha de uma família de Silvânia. Como Fernando Perillo, estava fora do eixo Cidade de Goiás/Pirenópolis, tidos como os locais onde a cultura florescia no interior goiano.

Ele se considera da última geração de jovens que não conheciam como eram as pessoas da mesma idade que moravam no litoral brasileiro. “Em comparação com quem vivia nas cidades maiores como Rio ou São Paulo, tínhamos uma defasagem musical de mais de 20 anos”, constata. O músico está certo, pois nasceu em uma época em que as notícias chegavam pelo rádio ou pelos jornais — estes sempre com três ou mais dias de atraso. Esse quadro mudaria com a chegada da televisão, principalmente depois da década de 70, quando a Embratel unificou o Brasil por satélite e o que acontecia no Rio e em São Paulo era conhecido no mesmo dia com os telejornais, como o “Jornal Nacional”, produzido onde Zé Eduardo trabalharia no futuro, na Rede Globo. A novelas e programas de entretenimento uniformizariam os costumes e as gírias.

José Eduardo Morais, Ricardo Leão, João Caetano, Fernando Perillo e Bororó | Foto: Facebook

José Eduardo Morais cresceu em uma família musical, ouvindo seus familiares cantarem. Só que não ligava. Como Rinaldo Barra, queria mesmo era conhecer as novidades do futebol. Sua mãe tentou levá-lo para as artes, matriculando-o no Conservatório Goiano de Música, criado em 1956. Apesar de nos anos 60 ainda ser chamado de Conservatório, passou a fazer parte da Universidade Federal de Goiás com a criação desta, em 1960. Em 2020 é a Escola de Música e Artes Cênicas. Zé Eduardo não gostou da experiência e largou o curso.

Só em dezembro de 1965, com 11 anos, quando entrou no antigo ginásio (5ª série do Ensino Fundamental) se inicia seu interesse pela música. Foi tão impactante que ele se lembra do dia e da hora. A semana começara na segunda-feira, 27 de dezembro de 1965, quando antes do almoço sua mãe chegou em casa com um vinil debaixo do braço, vinda do mesmo Bazar Paulistinha, de Bariani Ortêncio, onde Peninha gastava horas escutando os lançamentos musicais. “Presente para você”, diz.

“O que vou fazer com isso?”, pensou Zé Eduardo.

Como se recorda em 2020, naquela hora do almoço Zé Eduardo olhou sem interesse para a capa branca, sem graça, de quatro garotos de cabelos longos, vestindo casacos de frio azuis, todos de botinhas e em poses ridículas. Na capa aparecia o nome: “Help! — Trilha Sonora do Filme ‘Socorro'”. O conjunto: The Beatles. O LP acabara de ser lançado naquele mês de dezembro no Brasil, mas a canção título fazia sucesso desde agosto.

A mãe colocou o disco na vitrola e no primeiro grito de “help” na voz de John Lennon, José Eduardo Morais não conseguiu entender o que era aquilo. Diferente demais, ousado demais, barulhento demais. Um sujeito gritando socorro. Mas acima de tudo era um barulho bom. A partir dessa canção sua vida mudou para sempre e “Os The Beatles”, como muitos chamavam o grupo naquela época — inclusive na casa do futuro maestro — fizeram com que, na virada de 1965 para 1966, ele decidisse aprender a tocar violão.

Em janeiro já estava nas aulas particulares do professor Marcos Fontenelle, onde encontrava Rinaldo Barra, que estudava com o irmão do professor, Eurípedes. Foram só três meses de estudo até Marcos se mudar para o Rio de Janeiro tentando a sorte de seu conjunto Os Apaches.

Zé Eduardo não precisava mais de aula. Com o ouvido privilegiado passou a “tirar” as canções direto dos discos e a tocar todas. Quanto ao disco de “Os The Beatles”, ele até hoje sabe fazer de cabeça a parte instrumental que cada um dos quatro tocou, faixa por faixa, na mesma ordem do LP “Help”.

Em 1967, já expert em rock e em música jovem brasileira da época — o “iê iê iê”, como ele diz —, ganhou de uma tia um outro disco que seria fundamental na sua formação. Em junho, mês de seu aniversário, pegou pela primeira vez o vinil clássico “Stan Getz e João Gilberto — featuring Antônio Carlos Jobim”, lançado em 1964. Ali se unia a voz miúda e a batida revolucionário de João Gilberto com o talento do saxofonista Getz e as canções que fizeram a Bossa Nova de Tom Jobim.

De cara, antes de escutar o disco, Zé Eduardo torceu o nariz de novo: “Não gosto disso. Prefiro música britânica”. Mas, ao ouvir a sofisticação daquele trabalho gravado nos Estados Unidos, José Eduardo Morais “chapou” de novo com os arranjos baseados em piano, sopro e violão, a delicadeza da voz de João se misturando aos instrumentos, o lirismo das canções mansas de Tom. Frente a tanto apuro técnico, dizia: “Nunca darei conta de fazer isso”. E começou a estudar Bossa Nova com quase 10 anos de atraso, já que o movimento surgira em 1958, quando João Gilberto lançou o compacto “Chega de Saudade”.

Mas não só ele estava com esse delay de uma década. Em Goiânia podia-se contar nos dedos quantas pessoas tocavam aquele tipo de música. Aliás, qualquer tipo de música moderna ou sofisticada.

Aos 18 anos, em 1972, decidiu que era hora de correr atrás de seu sonho. Percebendo o mercado incipiente para a música em Goiânia, onde, tirando os conjuntos de baile, todos eram amadores, resolveu se mudar para o Rio de Janeiro no início de 1973. Avisou aos pais, pegou um ônibus na rodoviária em frente ao Lago das Rosas (em 2020, Corpo de Bombeiros) e se mandou para a capital carioca onde tinha um único contato.

José Eduardo Morais e Marcelo Barra | Foto: Reprodução

Celso Woltzenlogel conhecera o garoto Zé Eduardo em Goiânia e abriu para ele as portas do Rio de Janeiro — no futuro o maestro faria o mesmo para Marcelo Barra e Fernando Perillo. Exímio flautista, Celso morava na cidade desde 1958, quando vencera um concurso de jovens talentos em sua cidade natal, Piracicaba (SP), e era professor titular da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O flautista apresentou Zé Eduardo para os grandes músicos de orquestra na capital carioca. O goianiense aprendeu a tocar vários instrumentos, sendo a flauta o principal. Ainda assim, os pais tiveram de ajudá-lo por mais um ano, até março de 1974, quando Celso o chamou e disse com a autoridade de mestre, sem rodeios: “Tem uma gravação para você ir hoje. Você vai me substituir porque tenho outro compromisso”. O trabalho era com a consagradíssima cantora Elizeth Cardoso, que fazia sucesso desde 1955 e era chamada de “Divina”. A canção, “A Noite de Meu Bem”, um grande sucesso desde 1959, quando foi lançada por Dolores Duran.

Uma semana depois, novo job (como se diz em 2021, expressão que não existia em 1974). José Eduardo Morais pegou o endereço: Rede Globo de Televisão, Jardim Botânico. A gravação era para o programa “Fantástico”, o líder de audiência das noites de domingo mesmo sem ter completado ainda um ano de exibição. Por ironia da história, o maestro entrou na Globo para fazer o mesmo programa de João Caetano — que ali gravaria um clipe de “Roda Gigante” —, no mesmo ano e com apenas quatro meses de diferença um do outro. Apesar de se conhecerem de Goiânia e de terem a Rede Globo em comum, não se encontraram naquela época no Rio de Janeiro.

Desta vez a gravação foi com a cantora Claudya, que vencera o I Festival Fluminense da Canção, defendendo a música “Razão de Paz para Não Cantar” (Eduardo Lage e Alésio de Barros), em 1969 e em 1974 divulgava seu disco “Deixa Eu Dizer”. A música era “Derradeira Primavera”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Após uma introdução que em 2020 seria considerada longa, faltando pouco para completar um minuto, a câmera foca em um membro da grande orquestra, José Eduardo. Por alguns segundos ele aparece para todo o Brasil tocando um solo de flauta.

Em Goiânia foi uma comoção na família. José Eduardo avisara da gravação, mas não percebeu que a câmera iria focalizá-lo. Naquela semana, avisou aos pais: “Não precisa mandar mais dinheiro. Agora acho que vai”.

Contratado pela Globo como flautista, o jovem músico não parou de estudar, pois queria se tornar arranjador — o que seria útil para a música goiana no futuro. Com seu jeito tímido, discreto e aplicado, encontrou outro protetor na figura do maestro Francis Hime, que não dava aulas particulares mas que “adotou” o goianiense e foi seu professor. Era um impulso e tanto, pois Francis tinha como parceiro de Vinicius de Moraes e Chico Buarque, músicas cantadas por Elis Regina e outros. Acabara de lançar um LP que levava apenas seu nome na capa.

Francis o apresentou ao mundo musical do Rio de Janeiro, mas Zé Eduardo já andava sozinho. Foi aluno também de Antônio Adolfo, outro músico importante para os goianos e para o mercado fonográfico nacional ao lançar a produção independente no país.

Primeiro especial de Roberto Carlos em 1974 no qual José Eduardo ensaiou 22 músicas

Quando chegou o final de 1974, José Eduardo crescera tanto que ensaiara 22 músicas para tocar no especial de final de ano de Roberto Carlos (o vídeo completo pode ser encontrado no YouTube). É um dos mais bem elaborados do rei. Ele com voz intacta, apoiado pela grande orquestra da Globo. Roberto estava em uma fase família, com muitas imagens de filhos e participações de Paulo Gracindo, Antônio Marcos e Erasmo. O apuro técnico da emissora nos anos 70 atinge aqui seu pico e impressiona ainda em 2020.

Estabelecido no Rio de Janeiro e tendo chegado ao topo da profissão de maneira vertiginosa, Zé Eduardo passa a vir a pouco a Goiânia, apenas nas festas de final de ano. A Orquestra da Globo lhe tomava todo o tempo. Eram 22 arranjadores do primeiro time, começando por Radamés Gnatalli, um dos grandes responsáveis pela aproximação das fronteiras entre o erudito e o popular no Brasil, contratado pela emissora desde 1968. De manhã se gravava as bases das canções, à tarde os sopros e à noite as cordas. Um trabalho insano e aproveitado ainda em 2020 nas vinhetas e músicas incidentais da TV Globo. “Eles têm uma biblioteca fantástica e enorme, muito fruto do nosso trabalho nos anos 70”, conta o maestro.

Fernando Perillo e João Caetano

Numa das raras vezes que esteve em Goiânia, em 1976, conheceu o cantor e compositor Fernando Perillo tocando no Syrius Bar, na Praça Tamandaré, levado pelas mãos do vizinho e também músico Rinaldo Barra, autor de “Araguaia”. Mas continuaria distante do meio musical do Cerrado.

Perillo aproveitou a oportunidade de ter um amigo maestro, influente e enturmado com os músicos no Rio de Janeiro. Passou a ficar em seu apartamento na Rua Barão da Torre, em Ipanema. Ali naquele quarto e sala, José Eduardo puxava uma cama que ficava debaixo da sua para Perillo se acomodar. Inquieto como sempre, Fernando sempre escapava para a capital carioca quando algum show lhe interessava. Assistiu Dave Brubeck, Weather Report, Al Jarreau, David Mathew Band, Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos e outros.

A amizade e hospitalidade de José Eduardo cresceu a ponto de lhe ligar no final dos anos 70 para indicar um livro: “Saciologia Goiana”, de Gilberto Mendonça Teles. Lançado em 1982, era uma obra poética de um autor já consagrado localmente — estreou na literatura em 1955 e é membro da Academia Goiana de Letras desde 1961. Ele se mudara para o Rio de Janeiro em 1970, depois de se formar em Letras Neolatinas, na Faculdade de Filosofia da então Universidade Católica de Goiás (em 2020 PUC-GO) e de Direito, na Universidade Federal de Goiás. No futuro, Gilberto Mendonça Teles seria letrista dessa geração e um dos maiores críticos literários do país (Carlos Drummond de Andrade dizia que era um dos principais intérpretes de sua poesia).

Em 1980, Zé Eduardo passa a se aproximar da galera de sua geração. Em janeiro, quando estava de férias em Goiânia, começa a se falar de um espetáculo que reuniria aquele pessoal que rompeu a década de 70 fazendo música e ganhando festivais. Nasce o show “Sinal de Vida” (que dois anos depois seria também o nome do primeiro disco de Fernando Perillo). Foi a primeira vez que se reuniu a geração de ouro da nova música goiana, que tocava não sucessos de outras pessoas, mas músicas originais compostas por eles.

Pela primeira vez Goiás contava com um produtor de ponta, José Eduardo Morais, o flautista da Orquestra Globo. No elenco reunido para o espetáculo estavam o amigo Fernando Perillo e o cantor e compositor João Caetano, que garantiriam o apelo popular do espetáculo. A banda era formada por Bororó no baixo, Marquinhos Xará na bateria e outro velho conhecido, Ricardo Leão nos teclados.

Se “Sinal de Vida” foi um espetáculo de banda, um ano depois a fórmula se repetiria aprimorada. Dessa vez intitulada “Olhos D´Água”, o novo show vinha embalado pelos arranjos de José Eduardo Morais, que novamente aproveitou as férias de janeiro para unir os músicos e ensaiar. Desta vez incluiu um quarteto de cordas e um saxofonista e flautista (Evaldo José). O time continuava igual: o maestro (arranjos e orquestrações), Fernando Perillo (voz e violão), João Caetano (voz e violão), Ricardo Leão (voz e pianos), Bororó (baixo) e Marquinhos Xará (bateria e percussão). Um mês antes, a Araguaia FM começou a promover o “Olhos D’Água”.

O catálogo do espetáculo já dava uma noção do quanto aquele time se aprimorara. Era uma revista meio ofício de 40 páginas desenvolvido por uma agência de propaganda (Marca), que nada ficava a dever a catálogo algum no Brasil. Cartazes em papel reciclado, amarronzados e claros, foram colados pela cidade anunciando três noites, de 3 a 5 de abril (o que obrigou Jose Eduardo Morais a voltar à cidade para as apresentações). Os ingressos foram colocados à venda na Opus Discos e Fitas, a mais qualificada e moderna da época, que ficava em uma pracinha da Avenida República do Líbano, pouco antes de se chegar na Praça Tamandaré, para quem vinha do Setor Aeroporto. A promoção exclusiva da Rádio Araguaia FM Estéreo 97,1 Goiânia. Algumas músicas do setlist a plateia cantava junta, caso de “Triste Papel”, “Colheita” e “Roda Gigante”, de João Caetano; e “Sol da Manhã”, “Último Sopro” e “Sempre Viva”, de Perillo.

Mais interessante notar é que havia um grupo de empresários ligados aos artistas e que passaram a patrocinar as iniciativas. Casos do Zero Bar e Dom Quixote, este do parceiro de João Caetano — Otávio Daher. O Baroni, da família Barra; a Arvoredo, loja de móveis que compunha os cenários; Unigraf, a gráfica do jornal “Diário da Manhã”, que vivia seu auge e também divulgava os shows; a Casa Betânia, de equipamentos de som; e a Mistura Fina, de roupas “homem/mulher” da família de João Caetano. Mas havia ainda construtoras, boates como a Number One, centro de beleza, lojas de joias e de óculos. A música goiana virara um sucesso local e dava lucro, muito graças ao trabalho do maestro José Eduardo.

Nota

O texto faz parte de um livro que Iúri Rincon Godinho está escrevendo. Por isso, exceto no início, num trecho acrescentado, fala-se da morte do maestro. Quando o jornalista escreveu o texto, José Eduardo Morais estava vivo.

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