Lula acerta ao se “aproximar” da China e acertará se não perder contato com os Estados Unidos
16 abril 2023 às 00h15
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A China e os Estados Unidos são grandes parceiros comerciais. O país de Joe Biden condena a ditadura do país de Xi Jinping? Até “condena”, mas não deixa de manter relações, relativamente cordiais, com a segunda maior potência global.
Por que, se não concorda com a ditadura, os Estados Unidos mantêm relações comerciais, políticas e diplomáticas com a China?
Porque a China, um gigante comercial e populacional, é incontornável. Não dá para desprezá-la.
Ao colocar Donald Trump na Presidência da República, por quatro anos, o establishment comercial-tecnológico dos Estados Unidos, digamos assim, esperava que o gestor barulhento e bravateiro pudesse “controlar” a China. Noutras palavras, era uma aposta para barrar o avanço da nação de Mao Tsé-tung e Deng Xiaoping em todo o mundo.
Donald Trump falava muito, e sua verborragia, do tipo “os Estados Unidos para os americanos”, até agradou muita gente, inclusive os poderosos. Porém, do ponto de vista prático, nada mudou. A China continuou avançando, comendo pelas beiradas e se tornando, não apenas um player econômico, mas também um player político (Vladimir Putin, presidente da Rússia, não estaria arrostando tanta brabeza contra a Ucrânia, se não tivesse o amparo dos chineses).
Então, se Donald Trump não deu conta do recado, era hora de trocá-lo. Daí o “surgimento” de Joe Biden, cuja retórica, a do poder leve, às vezes esconde o velho e poderoso protecionismo dos democratas.
Joe Biden é tão liberal quanto Donald Trump — o que muda é a retórica e o fato de que o primeiro é humanista e o segundo não o é. Mas ambos estão a serviço do Império americano.
Por isso, tanto Joe Biden quanto Donald Trump sabem que o problema central, para os Estados Unidos, não é o Afeganistão e não é a Rússia. A China é o país que pode “destronar” o país de William Faulkner e Joyce Carol Oates — e daqui a poucos anos.
Democracias, como a americana, têm seus limites e o custo de sua mão de obra, para citar uma questão, é alto. Fala-se em trabalho análogo à escravidão no Brasil — um horror do capitalismo de ponta e, ainda assim, retardatário —, mas as condições de trabalho na China são parecidas.
Os produtos da China podem até não serem melhores do que os americanos, alemães e japoneses, porém são bem mais baratos. Ressalte-se que os chineses entraram fortemente na área tecnológica e, mesmo no mercado de alta qualidade, são cada vez mais competitivos.
A rigor, os Estados Unidos não estão ficando para trás. O que está ocorrendo é que a China está avançando, e rapidamente.
Graham Allison, professor de história aplicada em Harvard (respeitado pelo historiador Niall Ferguson e até por Joe Biden), postula, no excelente livro “A Caminho da Guerra — Os Estados Unidos e a China Conseguirão Escapar da Armadilha de Tucídides?” (Intrínseca, 411 páginas, tradução de Cássio de Arantes Leite), que potências emergentes costumam ir à guerra para superar potências hegemônicas. Em dezesseis casos estudados, 12 foram à guerra.
Os Estados Unidos e a China irão a guerra — como a Alemanha e a Inglaterra em 1939? Graham Allison acha que é possível, mas sugere caminhos para evitá-la.
Entretanto, os Estados Unidos, maior potência do século 20 e, agora, do século 21, aceitarão inermes ao avanço da China?
Com ou sem Joe Biden, os Estados Unidos vão reagir, não vão aceitar serem superados pelos chineses. Mas é possível “brecar” a China sem uma batalha? Talvez não. Porém, uma guerra, se nuclear, não interessa a ninguém, nem aos dois possíveis contendores.
O que fazer? O mais provável — portanto, não significa que será assim — é que a China supere os Estados Unidos, daqui uns 20 ou 50 anos, e, quem sabe, de maneira pacífica. Pode ser que o país de Henry James e Toni Morrison acabe por aceitar a hegemonia chinesa, ainda que aos trancos e barrancos.
Japão e Alemanha são potências altamente desenvolvidas, mas nenhuma ameaça o poderio americano. Ainda assim, mantêm um naco importante do mercado mundial, oferecendo-lhe produtos de alta qualidade e, às vezes, durabilidade. Estão confortáveis como terceiro e quarto colocados no mercado global.
Os Estados Unidos, com imensa capacidade de renovação tecnológica, podem até perder o lugar para a China, mas saberão manter a qualidade do que produz, consequentemente terão mercado para suas mercadorias em todo o mundo. Um segundo lugar honroso e produtivo é mais salutar do que uma guerra destrutiva.
O pé direito de Lula da Silva na China
A visita do presidente do Brasil, Lula da Silva, à China acendeu os debates políticos, ideológicos e econômicos.
Lula da Silva se inspira, de alguma maneira, no Getúlio Vargas da década de 1940, que, se “movendo” entre a Alemanha e os Estados Unidos, obteve vultosos recursos norte-americanos para expandir a indústria siderúrgica do Brasil? Talvez, aqui e ali.
Há uma diferença crucial entre a Alemanha nazista de Adolf Hitler e a China comunista (diz-se que há, no país, um socialismo de mercado) de Xi Jinping, é claro. O país de Goethe e Herta Müller (ainda que nascida na Romênia, sua pátria é a língua alemã) massacrava povos (como os judeus) e planejava eliminar a democracia nos países conquistados. É até provável que a China, se pudesse, excluindo massacres, também queira um controle geopolítico do mundo.
Porém, intenção não é o mesmo que possibilidade. Portanto, o mais provável é que a nação de Xi Jinping — um ditador, sublinhe-se — se preocupe mais com controle econômico, via comércio, do que controle político. Não muito diferente do que fazem os Estados Unidos.
Na visita aos Estados Unidos, Lula da Silva definiu — o que, aliás, já é um fato inconteste — a China como seu grande parceiro comercial. Até seu projeto de reindustrialização do país contará, possivelmente, com o reforço do caixa chinês (sublinhe-se a China já tem um “banco mundial”). O Brasil poderá se tornar a grande China dos trópicos, assumindo, a longo prazo, influência similar à dos Estados Unidos? Obviamente, não dá para saber.
Entretanto, a parceira com a China pode fortalecer ainda o Brasil.
A China já está “no” Brasil, como um parceiro comercial considerável, acima dos Estados Unidos. Porém, uma aliança mais forte tem como objetivo reduzir a influência americana na América Latina.
Aos poucos, a América Latina está se tornando mais “chinesa” do que “americana”. Quem levar o Brasil, sabem a China e os Estados Unidos, “puxa” o restante.
Então, o Brasil é o país estratégico da América Latina (porque o México dificilmente, até pela proximidade, sairá do raio de influência dos Estados Unidos).
Por saber que o Brasil interessa à China e aos Estados Unidos, como mercado e aliado geopolítico, Lula da Silva fez um discurso quase radical pró-China. Os menos afeitos ao jogo diplomático podem pensar que o presidente tropiniquim fez um discurso inteiramente anti-norte-americano.
Dada a retórica enfática, fica-se com a impressão de que Lula da Silva é anti-Estados Unidos. Não é. Na verdade, o petista-chefe está “usando” a China — o que é normalíssimo no jogo comercial entre nações — para enviar recados ao país de Joe Biden.
O Brasil ganha muito mais ao manter os Estados Unidos e a China como aliados comerciais e estratégicos. Agora, envolver-se numa guerra (comercial ou militar) entre os dois gigantes — quando se é grande, mas não gigante — é falta de bom senso. Por isso Lula da Silva está certo ao negociar com a China mas sem deixar de pensar na nação de Mohammad Ali e Flannery O’Connor como um grande parceiro comercial.
Manter a China mais próxima é uma maneira de conquistar ainda mais os Estados Unidos e seus dólares tão necessários. Equivocada seria uma aliança ideológica com a China tendo como objetivo o afastamento dos americanos.
Uma aliança de Lula da Silva com Cuba não tem importância nenhuma para o Brasil (no caso a identidade ideológica foge à questão de Estado, e é mais partidária e, até, pessoal), mas com a China é vital. Porém, sem “desprezar” aqueles que não se pode menosprezar — os Estados Unidos.
Por fim, o Brasil não é um Estado dos Estados Unidos, e tampouco da China. Então, um possível jogo duplo de Lula da Silva, pondo os pés em duas canoas comerciais, é saudável, imensamente saudável, para a economia do Brasil.
Pergunte aos homens chaves do agronegócio, os que vendem soja para a China, se estão preocupados com o fato de o país asiático ser comunista. Não estão, claro. Querem vender e receber money.
Lula da Silva não é diferente. O presidente quer fortalecer o país, retomando o crescimento econômico, e, para tanto, precisa manter as portas abertas dos que compram do Brasil e vendem para o Brasil. O pragmatismo da economia é um adeus permanente às ideologias de esquerda e de direita.
A visita de Lula da Silva à China mostra que começou com o pé direito. Está no caminho certo — o do realismo político, econômico e diplomático. O resto é tema para debates entre nefelibatas.