De todos os times que disputam o Campeonato Brasileiro há décadas, apenas três não haviam passado pelo dissabor de cair de uma divisão: Flamengo, São Paulo e Santos. Torcedores desses clubes se orgulham de um “não feito”: nunca terem passado pelo pecado mortal do rebaixamento.

Desde a noite da quarta-feira, 6, só restam os dois primeiros. Depois de flertar com a “indignidade” durante muitos dos últimos anos e passar praticamente a Série A inteira de 2023 na parte de baixo da tabela, o Santos confirmou seu passaporte à segunda divisão com vários requintes de crueldade.

Mais: a revolta dos torcedores levou o caos às cercanias da Vila Belmiro, o tradicional estádio do clube, depois da partida. Carros foram queimados e o fogo e a fumaça que subiram deram à paisagem da cidade litorânea um quê de praça de guerra.

São várias as humilhações por que passou a torcida santista na temporada. Uma é estatística: sofreu seu 7 a 1 particular, a maior goleada do Campeonato Brasileiro, tendo como algoz o Internacional, em Porto Alegre. Ao placar de triste memória e massacre impiedoso da 28ª rodada, porém, se seguiu uma reação extraordinária: foram sete jogos de invencibilidade, com três vitórias e 13 pontos somados.

Faltando três jogos para o fim da competição, o time ocupava uma 14ª colocação, posição relativamente confortável para quem já tinha vivido o pesadelo do Z4 durante tantas rodadas. Bastariam um ou dois pontos para se garantir de vez.

Só que os pontos não vieram. Enquanto isso, os outros concorrentes se recuperavam. Mesmo assim, o Santos chegou relativamente tranquilo à rodada final, em 15º lugar, com 43 pontos. Dependia só de si: uma vitória simples contra o supostamente desinteressado Fortaleza, já sem objetivos na competição. Ainda que não vencesse, se ao menos empatasse, para dar algo errado era preciso que os dois rivais na disputa ganhassem: o Bahia contra o poderoso Galo – o Atlético Mineiro ainda tinha chances minúsculas de ganhar o título – e o Vasco contra o surpreendente Bragantino, cheio de jogadores talentosos.

E foi exatamente nesse cenário trágico que o jogo na Vila Belmiro chegou a seus derradeiros minutos: vendo seus adversários na fuga do descenso vencerem, restava ao Santos virar a partida sobre o Fortaleza, que abrira o placar com gol de Marinho, que, depois de brilhar na Vila, fizera ali prevalecer a “lei do ex” depois de atuações apagadíssimas em todo o campeonato.

A crueldade-mor viria com o roteiro que deu a vitória aos cearenses: desespero alvinegro rolando já nos acréscimos, e então uma bola perdida no meio de campo sobra para o argentino Lucero. O goleiro João Paulo estava muito longe de sua posição, se preparando para tresloucadamente partir para o ataque – como já fazia mesmo antes de bater os 45 minutos.

Para sacramentar seu primeiro rebaixamento, o clube do Atleta do Século (passado) sofreu “o gol que Pelé não fez”. Era a queda para a Série B consolidada no “Brasileirão Rei”, como foi batizada o primeiro campeonato nacional após a morte de Edson Arantes do Nascimento, em dezembro passado.

É preciso transcender a disputa e entender que o resultado importa mais para o futuro do que para o presente

Nem precisou de o árbitro apitar o fim do jogo – a torcida entrou em histeria total assim que a bola ultrapassou a linha do gol. Quer dizer, precisou que ele apressasse o apito final, porque os atletas em campo passaram a correr risco de vida.

E aqui, então, entra a questão básica: futebol não é questão de vida ou morte, é muito mais do que isso, já dizia o escocês Bill Shankly, lendário treinador do Liverpool. É preciso transcender a disputa e entender que o resultado importa mais para o futuro do que para o presente.

É lugar-comum dizer que no esporte se aprende muito mais com as derrotas do que com as glórias, mas é necessário ressaltá-lo. Necessário porque o contrário disso é a barbárie do imediatismo, de que se contaminam tanto as pessoas em tempos de redes sociais. O que vale é o que acabou de ocorrer, não importando suas consequências (que virão, obviamente).

E foi assim que torcedores santistas – não “os” torcedores santistas, mas uma parte pequena deles, mas representativa negativamente – deram uma má lição de como lidar com a frustração. Trouxeram prejuízos materiais a quem não conheciam e prejuízos institucionais ainda maiores do que o que já manchava o clube mitológico por conta das más gestões que o trouxeram até a situação limite.

À imprensa em geral, faltou entender o Santos como o que ele é conjunturalmente: um clube médio, endividado, e que, por todo o contexto em que se envolveu, estava bastante vulnerável ao que enfim acabou acontecendo. Se não fosse este ano, seria no próximo, como foi neste, mas poderia ter sido em alguma das últimas campanhas. A “surpresa” dos jornalistas esportivos com a derrocada santista se dá muito mais pelo peso da camisa do que pelo desempenho em campo. Resta agora torcer para que o “Peixe”, o time que revelou Pelé no século passado e que mostrou Neymar ao mundo neste milênio, faça as vezes de um golfinho às avessas: que só dê um pequeno mergulho nas profundezas da Série B para retornar em breve, mais livre, mais leve e mais solto, a navegar em mar de brigadeiro no futebol brasileiro.