Libério Neves, o poeta goiano que os mineiros “sequestraram”

29 setembro 2019 às 00h00

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Nascido em Buriti Alegre, o bardo consagrou-se em Minas Gerais. Inspirado pelos concretistas, acabou por seguir mais a poesia de Drummond e João Cabral

Em tempo de doidivanices nas redes sociais e blogs, com Simãos Bacamartes a granel, nada melhor do que esclarecer o título: os mineiros não “sequestraram” o poeta Antônio Libério Neves, nascido em Buriti Alegre, e falecido no dia 11 de agosto deste ano — aos 85 anos. O uso de “sequestraram” sugere tão-somente que, embora nascido em Goiás, em 1934, Libério Neves é considerado como escritor mineiro, por ter vivido na terra de Carlos Drummond de Andrade a maior parte de sua vida.
O poeta e jornalista Fabrício Marques publicou, na revista “451” (que está nas bancas), o artigo “O homem e os seus possíveis — Morte de Libério Neves faz relembrar a obra do poeta que escrevia como se jogasse snooker”. Trata-se de um belo texto.
Fabrício Marques nota que, quando foi lançada a antologia poética “Papel Passado”, o crítico José Castello alardeou: “Desconhecido, mas genial”.

Desconhecido? Sim, do grande público. Mas conhecido de um público sofisticado e, sobretudo, por poetas. Já em 1966, registrando a estreia literária de Libério Neves, o poeta, crítico e tradutor José Paulo Paes apontou “a ‘vigorosa nota pessoal’ de quem estava em dia ‘com o que’” há “‘de mais criativamente novo no campo da expressão poética’”.
Adiante, um dos mais seminais críticos literários e ensaístas do país, Silviano Santiago, comentou: “O bonito de sua poesia é que a voz poética, abrangente e universal, não tem a pretensão divina (vide Jorge de Lima) nem a pretensão profética (vide Murilo [Mendes]). Sua voz é a do homem e dos seus possíveis, como nos lembra [Paul] Valéry, citando Píndaro”.
Libério Neves mudou-se para Belo Horizonte, em 1952, e formou-se em Direito em 1960. Quando criança, o pai, Marinho, vaticinou: “Quando crescer, o menino será amansador de burros que nem eu”. Gabriela, a mãe, contrapôs — “o Antônio será amansador de burros, mas com lápis e caderno” — e ganhou a queda de braço.
Minas é Estado de poetas — grandes e pequenos. O maior, por certo, é Carlos Drummond de Andrade — “pai” de todos os demais, quiçá o Púchkin dos trópicos. Se Drummond é rei, Murilo Mendes é, no mínimo, príncipe. Há uma ampla aristocracia de poetas mineiros, ainda que, socialmente, tenham sido plebeus ou quase. Na universidade, percebendo que seu mundo era mais o dos anjos tortos, da poesia, e não o dos anjos direitos, os do Direito, tornou-se amigo de Sérgio Sant’Anna, Sebastião Nunes e Fernando Brant.
Numa visita ao editor do suplemento literário do jornal “Estado de Minas”, o bardo e crítico Affonso Ávila, Libério Neves decidiu exibir alguns poemas. O exigente Ávila disse, de chofre: “Já vi que é bom”. O vate iniciante disse: “Fiquei numa felicidade”.
Para afiar-afinar sua arte, Libério Neves — que não é parente de Tancredo Neves — tornou-se leitor, de cabeceira, da poesia de Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Pierre Santos disse ao amigo: “O Drummond vai na frente comendo banana e jogando a casca fora, e o Cabral vai atrás, pega as cascas e, das cascas, ele faz poesia”. O goianeiro (assim é chamado pelo vate Bueno de Rivera) seguia pelo mesmo sendeiro, recriando as cascas, tornando-as novas.
Na sua estreia como poeta, em 1965, com o livro “Pedra Solidão”, Libério Neves, incentivado por Affonso Ávila, presta homenagem à poesia concreta dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari.
Fabrício Marques frisa que “o estilo definitivo aparece em ‘O Ermo’ (1968), quando se liberta da visualização do poema na página para manter apenas as conquistas de linguagem enxuta, mais despojada, sem muitos adjetivos”. A poesia concreta é, por vezes, uma camisa de força — da qual é difícil se libertar. Há epígonos dos Brothers Campos que, inspirados nas matrizes, fazem uma poesia de segunda categoria, mas com publicidade de primeira linha. Libério Neves, aproximando-se mais de João Cabral, ganhou voz própria.

Depois da poesia adulta, Libério Neves escreveu 20 livros de poesia para crianças e três livros de prosa.
Em 1966, convidado pelo contista Murilo Rubião, publicou o poema “O bigode”, no primeiro número do “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Convidado por Rubião, começou a trabalhar no “SLMG”. Lá se tornou amigo do poeta Emílio Moura. Certa feita, foram fazer uma fotografia e, como Libério Neves estava cabisbaixo, Moura disse-lhe: “Levanta a cabeça, o futuro da poesia lhe pertence”.
Sobre a criação poética, se prevalece a inspiração ou a transpiração (como sugeria João Cabral), Libério Neves, no registro de Fabrício Marques, “tinha uma certeza: a escrita acontece em momentos de motivação para concretizar a inspiração, que nele era permanente. ‘Penso, então, o que é inspiração. É a motivação. A motivação é a circunstância. Se você filtra a circunstância, o que fica é a poesia. Passei, então, a buscar o que estava por baixo daquilo que via’”. A inspiração, por si, não basta, sem o trabalho e a disciplina no fazimento poético
Quando jovem, Libério Neves adorava sinuca. “A habilidade sugere a metáfora que talvez explique o virtuosismo de Libério: fazer poemas é similar a jogar snooker. Assim Libério procedia na construção do verso: as melhores palavras na melhor ordem, perfazendo uma tacada de mestre”, observa Fabrício Marques.
POEMAS DE LIBÉRIO NEVES
Papel passado
Se, por acidente, moléstia ou velhice, algum dia eu
vier a ver-me (resto) imóvel no lençol, a depender, por
caridade ou pelo amor, do vosso gesto difícil, esse
gesto de lavar meus panos de matéria e de limpar os
meus resíduos deste mundo, assim constantemente
no cotidiano de uma lenta espera do expirar de tudo,
isto será profundo para vós e doloroso para mim.
E certamente é certo que não terei palavras, nem
gestos, para vos agradar; é certo que os meus olhos
lá serão de piedade, olhando as vossas fisionomias
desanimadas olhando-me nos panos, e sofrereis
demais e eu bem mais desesperadamente.
Antes que isto porventura ou positivamente ocorra,
lavro a declaração presente, antecipada, de que
no quando (eu) assim restar, imovelmente mudo,
contudo ainda vivo, estarei a todo instante, em
mente, beijando as vossas mãos em mim santifi-
cadas, nessa final humilhação do corpo, essencial
talvez à filtração da alma.
[“De Papel Passado” — 2013]
Impactos
Súbito, crescemos
nesse estremecimento
do beijo mais profundo
que nos enseja o mundo
com seus úmidos amores.
Súbito, nós vamos
na comunhão dos frutos
do nosso clã marchando
no chão que nos escuta
e oculta nossos clamores.
Súbito, nos vemos
na solidão dos gestos
que nos assopram fumos
no rosto quase em resto
desses bolores que somos.
Súbito, nós fomos.
[“De Lira Madura”]
Do ser o ser e ser seu parecer
No quando em conversando assim contigo
e tido em ser um ser assim sincero
sou uma sombra boa, um vulto amigo
e sou, quando te falo, e quando sério
um grave ser sutil que nesta vida
transcende ao anjo, ardendo-se matéria
minha palavra então espessa vibra
ou tímida se evola, ou gruda como visgo
nos corações melífluos das pessoas.
Contudo quando durmo (quando em sonho)
ou quando em meus re-versos me componho
um outro eu, em mim, pulsa e ressoa
uma linguagem funda e diferente!
pois uma coisa é ter-se o meu retrato
que mostra o magro rosto externamente,
enquanto que mostrado, em raios-X,
o dentro é contraponto e ponde exata
entre o ser-se o que é e o que se diz:
bem mais que olhos mansos nas capelas
ser o suspiro posto à luz das velas
queimando entre ser alma e ser matriz.
Gravita
Pura flor do carbono,
a mão humana
envolve o lápis.
Diz o lápis à mão:
Você comanda,
eu vou e relato.
Escreva dor,
assim eu acato.
Escreva amor,
então eu abono.
Você decide,
não sou o dono.
Diz a mão ao lápis:
Cometi um lapso
em minha cabeça;
apague a dor
e o mal esqueça.
[De “Mineragem”, de 2006]
Doação
Dou minha matéria à terra.
Entanto antes apresento
o corpo a ti, doutor, para
a ciência dos teus dentros.
Tu és o cérebro
em seus maciços de estanho,
mas não dissecas os versos
aí regurgitando
inconclusos ou inéditos.
Vês no avesso em mim a pele,
mas não seus arrepios
de febre ou dor ou medo
no amplo dos meus pelos.
E vês dentro das veias
o sangue escura sombra.
Os gens, tu não vislumbras
da ira funda contida
no amarrar-me amargo à vida.
Vês os nervos estendidos
com suas cordas dormidas,
e nunca sabes perceber
as vibrações mais vivas
dos meus íntimos tremores.
E tens em mãos o coração!
Mas não levas o poder
(indo além do endocárdio)
de reter estes impulsos
do meu secreto amor.
Então eu dou à terra
pulmões e unhas e ossos
e outras partes Singulares.
Não posso dar os versos,
não após meus arrepios
nem as iras e as tremuras
voando com os meus amores
dissolvendo-se nos ares.
Aos entes
Retorno eu para mim
ao longo do menino: minhas
bolas minas de vidro,
os olhos de minha mãe.
Os mortos evoluindo
dentro do chão da infância
falam das ladainhas
e as unhas destas mãos.
Nos fundos da retina
o sol me dissolve em sombra
essas miragens do homem.
Não adianta: menino,
mimo as imagens de ontem