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Nascido em Buriti Alegre, o bardo consagrou-se em Minas Gerais. Inspirado pelos concretistas, acabou por seguir mais a poesia de Drummond e João Cabral

Libério Neves, poeta e prosador goianeiro | Foto: Reprodução

Em tempo de doidivanices nas redes sociais e blogs, com Simãos Bacamartes a granel, nada melhor do que esclarecer o título: os mineiros não “sequestraram” o poeta Antônio Libério Neves, nascido em Buriti Alegre, e falecido no dia 11 de agosto deste ano — aos 85 anos. O uso de “sequestraram” sugere tão-somente que, embora nascido em Goiás, em 1934, Libério Neves é considerado como escritor mineiro, por ter vivido na terra de Carlos Drummond de Andrade a maior parte de sua vida.

O poeta e jornalista Fabrício Marques publicou, na revista “451” (que está nas bancas), o artigo “O homem e os seus possíveis — Morte de Libério Neves faz relembrar a obra do poeta que escrevia como se jogasse snooker”. Trata-se de um belo texto.

Fabrício Marques nota que, quando foi lançada a antologia poética “Papel Passado”, o crítico José Castello alardeou: “Desconhecido, mas genial”.

Libério Neves, Murilo Rubião e Rui Mourão: o primeiro trabalhou com o segundo no Suplemento Literário de Minas Gerais | Foto: Reprodução

Desconhecido? Sim, do grande público. Mas conhecido de um público sofisticado e, sobretudo, por poetas. Já em 1966, registrando a estreia literária de Libério Neves, o poeta, crítico e tradutor José Paulo Paes apontou “a ‘vigorosa nota pessoal’ de quem estava em dia ‘com o que’” há “‘de mais criativamente novo no campo da expressão poética’”.

Adiante, um dos mais seminais críticos literários e ensaístas do país, Silviano Santiago, comentou: “O bonito de sua poesia é que a voz poética, abrangente e universal, não tem a pretensão divina (vide Jorge de Lima) nem a pretensão profética (vide Murilo [Mendes]). Sua voz é a do homem e dos seus possíveis, como nos lembra [Paul] Valéry, citando Píndaro”.

Libério Neves mudou-se para Belo Horizonte, em 1952, e formou-se em Direito em 1960. Quando criança, o pai, Marinho, vaticinou: “Quando crescer, o menino será amansador de burros que nem eu”. Gabriela, a mãe, contrapôs — “o Antônio será amansador de burros, mas com lápis e caderno” — e ganhou a queda de braço.

Minas é Estado de poetas — grandes e pequenos. O maior, por certo, é Carlos Drummond de Andrade — “pai” de todos os demais, quiçá o Púchkin dos trópicos. Se Drummond é rei, Murilo Mendes é, no mínimo, príncipe. Há uma ampla aristocracia de poetas mineiros, ainda que, socialmente, tenham sido plebeus ou quase. Na universidade, percebendo que seu mundo era mais o dos anjos tortos, da poesia, e não o dos anjos direitos, os do Direito, tornou-se amigo de Sérgio Sant’Anna, Sebastião Nunes e Fernando Brant.

Numa visita ao editor do suplemento literário do jornal “Estado de Minas”, o bardo e crítico Affonso Ávila, Libério Neves decidiu exibir alguns poemas. O exigente Ávila disse, de chofre: “Já vi que é bom”. O vate iniciante disse: “Fiquei numa felicidade”.

Para afiar-afinar sua arte, Libério Neves — que não é parente de Tancredo Neves — tornou-se leitor, de cabeceira, da poesia de Drummond, Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. Pierre Santos disse ao amigo: “O Drummond vai na frente comendo banana e jogando a casca fora, e o Cabral vai atrás, pega as cascas e, das cascas, ele faz poesia”. O goianeiro (assim é chamado pelo vate Bueno de Rivera) seguia pelo mesmo sendeiro, recriando as cascas, tornando-as novas.

Na sua estreia como poeta, em 1965, com o livro “Pedra Solidão”, Libério Neves, incentivado por Affonso Ávila, presta homenagem à poesia concreta dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari.

Fabrício Marques frisa que “o estilo definitivo aparece em ‘O Ermo’ (1968), quando se liberta da visualização do poema na página para manter apenas as conquistas de linguagem enxuta, mais despojada, sem muitos adjetivos”. A poesia concreta é, por vezes, uma camisa de força — da qual é difícil se libertar. Há epígonos dos Brothers Campos que, inspirados nas matrizes, fazem uma poesia de segunda categoria, mas com publicidade de primeira linha. Libério Neves, aproximando-se mais de João Cabral, ganhou voz própria.

Libério Neves, que, depois de uma fase concretista, seguiu os passos de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto | Foto: Reprodução

Depois da poesia adulta, Libério Neves escreveu 20 livros de poesia para crianças e três livros de prosa.

Em 1966, convidado pelo contista Murilo Rubião, publicou o poema “O bigode”, no primeiro número do “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Convidado por Rubião, começou a trabalhar no “SLMG”. Lá se tornou amigo do poeta Emílio Moura. Certa feita, foram fazer uma fotografia e, como Libério Neves estava cabisbaixo, Moura disse-lhe: “Levanta a cabeça, o futuro da poesia lhe pertence”.

Sobre a criação poética, se prevalece a inspiração ou a transpiração (como sugeria João Cabral), Libério Neves, no registro de Fabrício Marques, “tinha uma certeza: a escrita acontece em momentos de motivação para concretizar a inspiração, que nele era permanente. ‘Penso, então, o que é inspiração. É a motivação. A motivação é a circunstância. Se você filtra a circunstância, o que fica é a poesia. Passei, então, a buscar o que estava por baixo daquilo que via’”. A inspiração, por si, não basta, sem o trabalho e a disciplina no fazimento poético

Quando jovem, Libério Neves adorava sinuca. “A habilidade sugere a metáfora que talvez explique o virtuosismo de Libério: fazer poemas é similar a jogar snooker. Assim Libério procedia na construção do verso: as melhores palavras na melhor ordem, perfazendo uma tacada de mestre”, observa Fabrício Marques.

POEMAS DE LIBÉRIO NEVES
Papel passado

Se, por acidente, moléstia ou velhice, algum dia eu

vier a ver-me (resto) imóvel no lençol, a depender, por

caridade ou pelo amor, do vosso gesto difícil, esse

gesto de lavar meus panos de matéria e de limpar os

meus resíduos deste mundo, assim constantemente

no cotidiano de uma lenta espera do expirar de tudo,

isto será profundo para vós e doloroso para mim.

 

E certamente é certo que não terei palavras, nem

gestos, para vos agradar; é certo que os meus olhos

lá serão de piedade, olhando as vossas fisionomias

desanimadas olhando-me nos panos, e sofrereis

demais e eu bem mais desesperadamente.

 

Antes que isto porventura ou positivamente ocorra,

lavro a declaração presente, antecipada, de que

no quando (eu) assim restar, imovelmente mudo,

contudo ainda vivo, estarei a todo instante, em

mente, beijando as vossas mãos em mim santifi-

cadas, nessa final humilhação do corpo, essencial

talvez à filtração da alma.

[“De Papel Passado” — 2013]

Impactos

Súbito, crescemos

nesse estremecimento

do beijo mais profundo

que nos enseja o mundo

com seus úmidos amores.

 

Súbito, nós vamos

na comunhão dos frutos

do nosso clã marchando

no chão que nos escuta

e oculta nossos clamores.

 

Súbito, nos vemos

na solidão dos gestos

que nos assopram fumos

no rosto quase em resto

desses bolores que somos.

Súbito, nós fomos.

[“De Lira Madura”]

Do ser o ser e ser seu parecer

No quando em conversando assim contigo

e tido em ser um ser assim sincero

sou uma sombra boa, um vulto amigo

 

e sou, quando te falo, e quando sério

um grave ser sutil que nesta vida

transcende ao anjo, ardendo-se matéria

 

minha palavra então espessa vibra

ou tímida se evola, ou gruda como visgo

nos corações melífluos das pessoas.

 

Contudo quando durmo (quando em sonho)

ou quando em meus re-versos me componho

um outro eu, em mim, pulsa e ressoa

 

uma linguagem funda e diferente!

pois uma coisa é ter-se o meu retrato

que mostra o magro rosto externamente,

 

enquanto que mostrado, em raios-X,

o dentro é contraponto e ponde exata

entre o ser-se o que é e o que se diz:

 

bem mais que olhos mansos nas capelas

ser o suspiro posto à luz das velas

queimando entre ser alma e ser matriz.

Gravita

Pura flor do carbono,

a mão humana

envolve o lápis.

 

Diz o lápis à mão:

 

Você comanda,

eu vou e relato.

Escreva dor,

assim eu acato.

Escreva amor,

então eu abono.

Você decide,

não sou o dono.

 

Diz a mão ao lápis:

 

Cometi um lapso

em minha cabeça;

apague a dor

e o mal esqueça.

[De “Mineragem”, de 2006]

Doação

Dou minha matéria à terra.

Entanto antes apresento

o corpo a ti, doutor, para

a ciência dos teus dentros.

 

Tu és o cérebro

em seus maciços de estanho,

mas não dissecas os versos

aí regurgitando

inconclusos ou inéditos.

 

Vês no avesso em mim a pele,

mas não seus arrepios

de febre ou dor ou medo

no amplo dos meus pelos.

 

E vês dentro das veias

o sangue escura sombra.

Os gens, tu não vislumbras

da ira funda contida

no amarrar-me amargo à vida.

 

Vês os nervos estendidos

com suas cordas dormidas,

e nunca sabes perceber

as vibrações mais vivas

dos meus íntimos tremores.

 

E tens em mãos o coração!

Mas não levas o poder

(indo além do endocárdio)

de reter estes impulsos

do meu secreto amor.

 

Então eu dou à terra

pulmões e unhas e ossos

e outras partes Singulares.

 

Não posso dar os versos,

não após meus arrepios

nem as iras e as tremuras

voando com os meus amores

dissolvendo-se nos ares.

Aos entes

Retorno eu para mim

ao longo do menino: minhas

bolas minas de vidro,

os olhos de minha mãe.

 

Os mortos evoluindo

dentro do chão da infância

falam das ladainhas

e as unhas destas mãos.

 

Nos fundos da retina

o sol me dissolve em sombra

essas miragens do homem.

 

Não adianta: menino,

mimo as imagens de ontem