Jason Tércio revela bastidores de seu livro sobre Rubens Paiva: ‘Ele nunca se conformou com a cassação’

25 janeiro 2025 às 21h00

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Eldorado Paulista, uma pequena cidade no interior de São Paulo, testemunhou a convivência de duas famílias que personificam os contrastes políticos e sociais do Brasil nas décadas de 1940 a 1970. Os Paiva, influentes e proprietários de terras, e os Bolsonaro, de origem humilde, tiveram suas histórias entrelaçadas em um contexto marcado por desigualdades, repressão e disputas ideológicas.
Nos anos 1940, Jaime Almeida Paiva, empresário oriundo de Santos, adquiriu grandes extensões de terra em Eldorado e consolidou sua influência na região. A fazenda Caraitá, pertencente aos Paiva, tornou-se o centro econômico e social da cidade, evidenciando o poder e a riqueza da família. Jaime também exerceu papel político, sendo eleito prefeito em duas ocasiões, o que reforçou sua posição como figura central na vida local.

Paralelamente, a família Bolsonaro vivia em condições mais modestas. Percy Geraldo Bolsonaro, pai de Jair Bolsonaro, atuava como dentista prático, profissão que desempenhava sem formação acadêmica formal, atendendo à população local. Jair, ainda jovem, ajudava a complementar a renda da família, que enfrentava dificuldades econômicas. A disparidade entre os luxos dos Paiva e as limitações dos Bolsonaro exemplificava as desigualdades sociais da cidade.
A relação entre as duas famílias tornou-se ainda mais tensa na década de 1970, período em que o Brasil vivia sob uma ditadura militar. Rubens Paiva, filho de Jaime, destacou-se como deputado federal e opositor ao regime. Sua postura crítica fez dele um alvo da repressão, simbolizando a luta contra a ditadura. Em 1970, o confronto entre o guerrilheiro Carlos Lamarca e forças militares em Eldorado acentuou as divisões políticas. Jair Bolsonaro, então adolescente, presenciou os desdobramentos desse episódio, que influenciariam sua visão política.
As acusações de que Rubens Paiva teria apoiado Lamarca na formação de uma guerrilha na região nunca foram comprovadas, mas Jair Bolsonaro utilizou o caso como parte de seu discurso político. Esse fato contribuiu para reforçar as diferenças entre as famílias, alimentando polêmicas sobre o papel de Rubens na história e sobre as narrativas em torno do período da ditadura militar.
Relatos informais indicam que, apesar das tensões sociais, havia interação entre os membros das famílias. Jair Bolsonaro, por exemplo, teria jogado futebol nas terras dos Paiva e até furtado mexericas da fazenda, episódios que contrastavam com as diferenças de classe evidentes entre as famílias. Essas histórias ilustram a complexidade das relações sociais em Eldorado.

Em 1971, Rubens Paiva foi preso e desapareceu, tornando-se um símbolo da violência do regime militar. A versão oficial aponta que ele morreu sob tortura, mas Jair Bolsonaro questionou essa narrativa ao longo de sua carreira, alimentando debates sobre a memória da ditadura. A polarização em torno do desaparecimento de Rubens Paiva intensificou as divisões entre as famílias.
Com o tempo, Jair Bolsonaro passou a criticar os Paiva publicamente, associando-os à elite rural e à oposição ao regime militar. Ele via a fazenda Caraitá como um símbolo de concentração de poder e riqueza, em oposição às dificuldades enfrentadas por sua própria família. Em outro momento de conflito simbólico, Bolsonaro teria cuspido no busto de Rubens Paiva, gesto que marcou um ponto de ruptura definitiva entre as histórias das famílias.
Enquanto os Bolsonaro consolidaram sua presença em Eldorado, os Paiva deixaram a cidade no final dos anos 1970. Os irmãos de Jair investiram em negócios locais, aumentando sua influência econômica e política. A saída dos Paiva representou o fim de uma era e abriu espaço para a ascensão dos Bolsonaro como força dominante no cenário local.
O legado de Jaime Paiva continua a ser debatido em Eldorado. Para alguns, ele é lembrado como líder que contribuiu para o desenvolvimento da cidade. Para outros, representa o poder autoritário e as desigualdades que marcaram a história local. Essa dualidade reflete as complexas relações de classe e poder que definiram a região.
As acusações sobre o suposto envolvimento de Rubens Paiva com a guerrilha permanecem sem comprovação, mas alimentam discussões até hoje. Marcelo Rubens Paiva, filho do deputado desaparecido, tornou-se crítico das declarações de Bolsonaro, mantendo vivo o debate sobre a memória histórica desse período.
Eldorado Paulista permanece como cenário de memórias divididas, marcada pelas histórias das duas famílias. As relações entre os Paiva e os Bolsonaro são uma síntese das desigualdades e tensões que moldaram o Brasil e continuam a influenciar debates políticos e históricos.
Jason Tércio e a análise de Trajetória de Rubens Paiva
Em entrevista ao Jornal Opção, o jornalista Jason Tércio, autor dos livros Segredo de Estado e Perfil Parlamentar de Rubens Paiva, compartilhou detalhes sobre sua investigação da história de Rubens Paiva. Jason Tércio é um jornalista, tradutor e biógrafo brasileiro, graduado em Jornalismo pela Universidade Gama Filho, com passagens por diversos jornais no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Além disso, trabalhou como produtor e apresentador na BBC de Londres durante quatro anos.
Como você organizou a estrutura não linear do seu trabalho sobre Rubens Paiva e quais foram as principais dificuldades nesse processo?
Jason Tércio – Para mim, cada livro determina sua própria linguagem, conforme o tema. Quando comecei a pesquisar para escrever Segredo de Estado, eu tinha só as informações básicas que saíam na imprensa. Mas eram apenas a ponta do iceberg. A estrutura não linear eu decidi adotar quando descobri que, no dia da prisão do Rubens, houve diversos acontecimentos na cidade que tinham relação direta e indireta com o caso, por mera coincidência. E esses acontecimentos só poderiam ser relatados simultaneamente se eu rompesse com a narrativa linear e não escrevesse uma história com começo, meio e fim. Foi muito difícil conseguir chegar a essa estrutura, foi como montar um quebra-cabeça. A maior parte do livro se passa em apenas um dia, o dia da prisão do Rubens. Os antecedentes políticos e históricos são narrados em flashback.

De que maneira você teve acesso a documentos confidenciais sobre o desaparecimento de Rubens Paiva, como o que trazia o carimbo de “confidencial”?
Fiz pesquisa bibliográfica, documental e de campo. Consegui informes dos órgãos de segurança, como SNI, DOPS, CISA, em arquivos públicos e particulares, Arquivo Nacional, Arquivo Histórico do Rio, arquivos de amigos do Rubens e da família. Também tive acesso ao IPM (Inquérito Policial-Militar) aberto em 1986 pra investigar o caso, a pedido do procurador-geral da Justiça Militar, Leite Chaves. Consegui relatórios do DOPS que monitorava o Rubens quando era deputado e depois de cassado. Um dos relatórios, curiosamente, se baseia no relato de um informante do sindicato de jornalistas de São Paulo. Consultei na Câmara dos Deputados os anais da CPI do Ibad-IPES, que estava ainda datilografada. Aliás, sugiro à Câmara que digitalize essa CPI, se ainda não fez, e divulgue no portal, porque foi uma CPI muito importante, tem valor histórico e pedagógico. Vários políticos foram depor.
Quais fontes e testemunhas foram essenciais para a construção da narrativa de Segredo de Estado e como você conseguiu reuni-las?
As principais foram a viúva e as filhas do Rubens, parentes dele, amigos, advogados e ex-agentes da repressão política. Como já havia passado muito tempo que a ditadura tinha acabado – eu comecei a pesquisar para o livro em 2007 –, não tive nenhuma dificuldade, exceto alguns olhares desconfiados, mas eu já tinha livros publicados e não houve resistência. Uma das principais fontes foi um ex-preso político que ficou no DOI-Codi um mês antes da prisão do Rubens. O ambiente descrito no livro é o que ele presenciou. Os interrogadores provavelmente eram os mesmos de Rubens Paiva, porque havia uma equipe fixa. As torturas descritas no livro eram a rotina praticada no DOI-Codi.
Como você equilibrou a apuração factual com a necessidade de envolver o leitor na história de Rubens Paiva?
A história do Rubens Paiva é uma história de mistério, homicídio, ocultação de cadáver, política, família e personagens históricos. Ou seja, tem todos os ingredientes de um thriller dramático, intenso e cheio de peripécias. Eu queria transmitir essa carga humana e emocional, os efeitos psicológicos do caso na família do Rubens, e não iria conseguir se usasse uma linguagem acadêmica ou jornalística. Usei uma linguagem híbrida, com técnicas de romance, História, biografia e crônica. Isso me permitiu preencher lacunas e me deu liberdade pra mostrar um pouco da vida interior dos personagens naquele momento crucial de suas vidas, entrar na cabeça deles, exprimir seus sentimentos. Mas os fatos são narrados com rigor, sem invenção.
Durante a apuração, quais informações ou descobertas sobre Rubens Paiva foram inesperadas ou alteraram sua compreensão sobre o caso?
Foi a descoberta das atividades políticas de Rubens, antes e depois da cassação de seu mandato. Ele nunca se conformou. Ficou cinco meses exilado e, quando voltou, se tornou diretor do jornal oposicionista Última Hora, edição paulista. Ajudava a retirar perseguidos políticos do Brasil, às vezes abrigava algum em sua casa temporariamente, fazia contatos com exilados quando viajava para a Europa ou Estados Unidos, denunciava para a imprensa estrangeira o que o regime militar estava fazendo.
A teoria de que Rubens Paiva foi enterrado na Floresta da Tijuca está baseada em quais evidências e fontes?
Como eu conto no livro, existem quatro versões sobre a causa da morte de Rubens: choque elétrico, tiro na cabeça, espancamentos e ataque cardíaco. Sobre o destino do corpo há sete versões. Em 1999, o programa Fantástico, da TV Globo, mostrou uma reportagem com depoimento de um ex-informante dos órgãos de segurança, não identificado. Ele informou que Rubens foi retirado já morto do DOI por cinco homens, levado para o Alto da Boa Vista e enterrado atrás de uma delegacia. Em 2000, dois procuradores autorizaram escavações no local, mas nada foi encontrado.
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