Aldous Huxley escreveu um livro muito bom, mas que não se destaca na sua bibliografia (todas as suas obras são esmagadas, por assim dizer, pelo romance “Admirável Mundo Novo”). Trata-se de “Eminência Parda”, que conta a história do padre José de Paris, auxiliar do cardeal Richelieu. Ele usava uma batina puída, acinzentada, daí a expressão “eminência parda”.

Como colaborava com Richelieu, dando-lhe conselhos, era homem importante, mas que atuava nos bastidores. Então, todo político, ou auxiliar de político, que fica nos bastidores, lidando na articulação e formulação de ideias e projetos, passou a ser conhecido como eminência parda.

Na ditadura civil-militar, o grande eminência parda foi o general Golbery do Couto e Silva, que participou dos governos de Castello Branco (criou o SNI, que, segundo ele, virou um monstro), Ernesto Geisel e João Figueiredo. Era um formulador, de rara inteligência (e era pragmático). No governo Geisel, foi decisivo na formulação da distensão e da abertura política.

No governo Figueiredo, como exigiu uma investigação rigorosa do caso Riocentro, e o presidente não aceitou, Golbery pediu o boné e foi embora. Ele estava certo, é claro. Entretanto, ao “abafar” o caso, “Figa” conseguiu segurar a matilha da linha dura, que, tentando mostrar força, com o atentado do Riocentro, acabou por sucumbir.

Golbery do Couto e Silva, Ernesto Geisel e Heitor Aquino Ferreira: três militares que foram decisivos no processo de distensão e abertura política do Brasil | Foto: Reprodução

Além de Golbery, havia outro eminência — “eminencinha” — parda: Heitor Aquino Ferreira, que morreu na quarta-feira, 24, aos 86 anos, de câncer.

Conta-se que Heitor Aquino mantinha arquivos extraordinários da ditadura, pois fora secretário de Golbery e de Geisel. E é fato. Mas o grande arquivo era mesmo o militar. Ele sabia de muita coisa, que talvez não tenha anotado, e não se sabe se compartilhou com alguém, pois não dava entrevista. O jornalista Elio Gaspari, que era seu amigo, pode ter se beneficiado das várias conversas entre eles.

No governo de Castello Branco, como membro da turma da Sorbonne (militares que, moderados, eram adversários da turma da linha dura, que era comandada por Costa e Silva), trabalhou como secretário de Golbery, de 1964 a 1967. Entre 1974 e 1979, se tornou secretário de Geisel.

Na ditadura, Heitor Aquino encheu 17 cadernos com informações exclusivas. Tais cadernos, expurgados, somados aos arquivos de Golbery, além de uma longa entrevista com Geisel, foram decisivos para a série de cinco livros do jornalista e pesquisador Elio Gaspari — “Ilusões Armadas”. Um dos volumes, “O Sacerdote e o Feiticeiro — A Ditadura Derrotada”, relata a profunda conexão de Geisel e Golbery. Heitor Aquino certamente deu uma contribuição decisiva para sua elaboração.

Heitor Aquino não entregou todos os cadernos para a pesquisa de Gaspari. O que não permitiu que o jornalista consultasse, ele disse que queimou. As conversas com Elio Gaspari, além dos livros, certamente renderão artigos, reportagens e, quem sabe, até outro livro.

Nos obituários de Heitor Aquino há pelo menos uma história interessante, contada por ele: “Dois coronéis foram à sala de Golbery com a ideia de ouvi-lo sobre o plano de fazer uma incursão de comandos no Uruguai, prender o exilado Leonel Brizola e trazê-lo de volta para o Brasil. Queriam um sim ou um não. Golbery só tinha a perder se respondesse. Como quem pede um cafezinho, sem tirar os olhos de um papel qualquer que ele fingia ler, disse sem alterar a voz… ‘E quando é que vocês vão?’ O plano morreu ali”.

Heitor Aquino apreciava charutos cubanos (mas não o comunismo da dinastia Castro) e ouvir música enquanto trabalhava. Gostava de ouvir a música de Frank Sinatra, Tom Jobim e Nöel Coward. Jazz era a música do dia a dia.

Heitor Aquino era um tradutor muito bom. O livro “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell, foi traduzido por ele. Recentemente, decidiram publicar novas traduções com outro título, mas não se conhece viv’alma neste país que não chame a novela de “A Revolução dos Bichos”. É o título, digamos, que pegou. Canônico. Porque é preciso, mais até que o insosso dado pelo autor do livro, “Animal Farm” (“A Fazenda Animal”, na nova tradução da Editora Companhia das Letras). Ele fez revisão técnica de livros de história e biografias para a Editora Nova Fronteira (com seu amplo conhecimento, por certo salvou o leitor de vários equívocos. Heitor Aquino certamente impediria a publicação de uma obra com o título de “Lênin — A Biografia Definitiva”, quando, em inglês, o título do livro de Robert Service é “Lênin — Uma Biografia”. A tradução da Difel contém tantos erros que impressiona).