“A literatura russa é essencialmente política. O grande escritor é ‘o Estado alternativo’. Seus livros são o principal gesto de oposição política”

“Tigres no Espelho” (Globo, 419 páginas, tradução de Denise Bottmann) contém ensaios de George Steiner para a revista americana “New Yorker”. Steiner é o Antonio Candido — mais importante crítico literário brasileiro — do mundo globalizado. Crítico literário com formação filosófica sólida, o parisiense-americano, de 83 anos, é conhecido pelo rigor, passível de ser verificado em “Gramáticas da Criação” (muito superior ao livro aqui comentado), “Antigones” e “Depois de Babel”. Os textos de “Tigres no Espelho” às vezes roçam o ensaio, mas são no geral resenhas espichadas, nas quais o autor tenta não perder a profundidade, apesar do texto relativamente curto. Fica-se com a impressão de que se extraiu o sumo (ou a suma) de uma obra, de um autor, quando, na verdade, os “retratos”, se não apáticos, são incompletos. Ao final dos textos, perguntamos: “E aí?” Talvez seja isto mesmo: é possível que, como o espaço não era adequado — apenas alguns textos são mais amplos —, Steiner pretendeu expor ideias centrais, não raro originais, mas sem estender-se.

A crítica e prosadora Susan Sontag, citada a introdução, escrita por Robert Boyers, disse, em 1980: “Ele [Steiner] pensa que existem grandes obras de arte que são claramente superiores a todas as demais em suas várias formas, que existe uma coisa chamada profunda seriedade. E as obras criadas com profunda seriedade têm, a seu ver, um direito à nossa atenção e à nossa lealdade que supera qualitativa e quantitativamente qualquer outro direito reivindicado por qualquer outra forma de arte ou de entretenimento”. Steiner e Harold Bloom, possivelmente o crítico literário mais famoso da Terra, têm em comum a paixão pela literatura, não pela crítica literária. Ambos têm o hábito de examinar e arrancar das obras suas próprias interpretações, ainda que, direta ou indiretamente, dialoguem com a crítica. Há, porém, pelo menos uma diferença: a crítica de Steiner é mais distanciada e, ao contrário de Bloom, sua interpretação não faz a literatura derivar toda de Shakespeare, que, para Bloom, é Deus (ou a ciência) — o começo de tudo. Em Bloom, embora eu esteja exagerando, o leitor fica com a impressão que até Homero e Dante, autores anteriores, procedem do dramaturgo e poeta britânico.

Vladimir Nabokov, no Brasil mais conhecido como prosador e autor de um “único” romance, “Lolita” (em que o erotismo é tão “caliente” quanto uma aula de anatomia), era um crítico atento, talvez tão idiossincrático quanto qualquer outro. No seu panteão literário russo há espaço sobretudo para Púchkin, Tolstói e Gógol (a respeito do qual escreveu uma espécie de biografia literária). Dostoiévski? No máximo, quem sabe, merece figurar num honroso segundo lugar. Herzen (paixão do filósofo Isaiah Berlin), nem mesmo isso. Steiner, mais condescendente, avaliza, com interesse, a prosa histórica e literária de Alexander Soljenítsin, autor de “O Arquipélago Gulag”, em dois ensaios, “De Profundis” e “Sob os olhos do Oriente”.

“Mais do que sermos nós a ler, é Soljenítsin quem nos lê”, nota Steiner. O escritor “é um perscrutador, um explorador das fraquezas humanas e um incômodo para o mundo”. Como “anarquista teocrático”, “não sente grande apreço pela razão. (…) Diante do desumano, muitas vezes a razão é um agente fraco, até risível”. O sofrimento dos “soviéticos” — termo que esconde vários povos, agora confundidos com “russos” — é único e difícil, senão impossível, de transmitir em alta escala, sugere o escritor. A história do Gulag precisa ser contada e recontada para que a humanidade possa entendê-la e sofrer com os russos, ucranianos, georgianos, bielorrussos, lituanos, entre outros povos. “Soljenítsin tem a obsessão pela sacralidade dos detalhes. (…) Ele sabe que, para rezarmos pelos mortos sobre tortura, devemos decorar e dizer seus nomes, aos milhões, num infindável réquiem a nomeá-los sem cessar. (…) Se realmente quisermos entender, ‘precisamos’ tentar analisar, classificar, expor esses sonhos da razão que se chamam teorias.” Uma tarefa logicamente possível para instituições, com computadores, e não para indivíduos isolados, porque pelo menos 20 milhões de russos sucumbiram ao regime de Stálin — numa estatística conservadora (Moshe Lewin, o grande historiador polonês, tende a ser mais “econômico” também).

Aleksandr Soljenítsin e Stálin: o escritor demoliu a imagem do ditador da União Soviética com livros-vingadores | Foto: Reprodução

Citando Soljenítsin, mas indo além, porque não fica apenas no caso soviético, Steiner diz que “o fato avassalador” do século 20 “foi que o homem político, o homem nacionalista, equipado com armas sem precedentes na história, relembrou ou redescobriu a lógica da aniquilação”. Stálin, Hitler, Mao Tsé-tung e Pol Pot são “irmãos históricos”. O Gulag “não tem” — citando a barbárie stalinista, nazista e na Argentina, na década de 1970 (o texto da “New Yorker” é de 1978) — “fronteiras físicas”. “Isso não significa diminuir de maneira alguma a especificidade dos relatos de Soljenítsin sobre o Inferno. Mas cabe perguntar se e como o edifício soviético de servidão e da degradação é ou não é uma parcela de uma catástrofe mais geral.”

Como uma espécie de “grego” na sociedade de massas, Steiner está comentando “O Arquipélago Gular”, mas acrescenta sempre informações novas, que, se não estão no livro, guardam certa conexão. O crítico mostra a hesitação de Soljenítsin, que ora apresenta a crença de “que a opressão do alto e a obediência da grande massa da população à autoridade bruta são características do espírito russo” e, depois, “insiste na natureza especificamente bolchevique do regime de terror”.

George Steiner, ensaísta: “O escritor russo tem enorme importância” | Foto: Reprodução

Depois de apresentar a análise de Hannah Arendt e de outros para as raízes do totalitarismo moderno, Steiner apresenta a sua própria teoria, a “metáfora de trabalho”, “segundo a qual a eliminação da presença de Deus na vida cotidiana e na legitimidade do poder político gerou a necessidade de instituir na terra um sucedâneo da condenação (um Inferno aqui), que seriam os gulags nazistas, soviéticos, chilenos e cambojanos”. O crítico admite que tanto sua tese quanto as outras são insuficientes para explicar o fenômeno. Por isso acrescenta: “O que nos resta é o fato central: de uma maneira e numa escala inconcebível para o homem ocidental educado, desde, digamos, Erasmo até Woodrow Wilson, retomamos ou inventamos uma política de tortura e do massacre. Desse fato brota a única pergunta que importa: é possível deter o ciclo infernal?”.

No fim do ensaio, Steiner observa que, “depois de nove anos escrevendo clandestinamente, Soljenítsin encerra sua trilogia com a terrível observação de que se passara um século desde a invenção do arame farpado. E ele, que viu, viveu, narrou a mais alta resistência, a mais elevada esperança contra o Inferno, dá a entender que é essa invenção que continuará a determinar a história do homem moderno. No negro desse grandioso afresco, esse é o toque mais desesperado”.

No ensaio “Sob os olhos do Oriente”, de 1976, Steiner nota que a literatura russa — cita Púchkin, Gógol, Dostoiévski e Mandelstam — é admirada em todo o mundo, mas seu “significado se mantém obstinadamente nacional e refratário a exportações”. O leitor não russo “sempre será um forasteiro”.

“Toda a literatura russa é essencialmente política. (…) Como diz a expressão russa, o grande escritor é ‘o Estado alternativo’. Seus livros são o principal e, em muitos aspectos, o único gesto de oposição política”. Os clássicos nacionais — como Púchkin, Turguêniev, Tchekhov, Tolstói e Herzen (os dois últimos não listados por Steiner) — “são válvulas de escape que liberam no campo do imaginário algumas daquelas enormes pressões pela reforma, pela mudança política responsável, que a realidade não permitiria. (…) O escritor russo tem enorme importância”. Tanto que Óssip Mandelstam foi mandado para a Sibéria, onde morreu meio louco e faminto, porque escreveu um poema no qual compara os “bigodes” de Stálin aos de uma barata.

Steiner nota que “há um sentimento de eleição pela dor e para a dor comum aos mais variados da sensibilidade russa. E isso significa que existe uma cumplicidade fundamental na relação triangular entre o escritor russo, seus leitores e o Estado onipresente”.

Resenha publicada no Jornal Opção em julho de 2012