Genocídio dos yanomamis deriva da visão de progresso contínuo, acelerado e incontornável

29 janeiro 2023 às 00h10

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A imprensa não tem nenhuma responsabilidade pela subnutrição e pelas mortes de yanomamis. Já o finado governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, do indefectível PL, é um dos culpados pelo agravamento do problema, sobretudo porque escancarou as portas para a entrada e permanência de garimpeiros de ouro nas terras indígenas (traficantes de drogas também estão na região, aproveitando-se da omissão do Estado). Governantes estaduais, como o de Roraima, alegando que a jurisdição é do governo federal, não demonstraram nenhuma preocupação humanista.

Se os yanomamis estão morrendo, numa espécie de genocídio nem tão disfarçado assim, e se o problema não é recente, cadê as grandes reportagens da imprensa brasileira? Cadê a atenção redobrada dos editores dos jornais, como “Folha de S. Paulo”, “Estadão” e “O Globo”, das revistas “Veja”, “CartaCapital” e “IstoÉ” e das redes de televisão, como a Globo, Record e Band? Cadê os yanomamis na capa da “Veja” ou dos jornais citados antes da crise se tornar, digamos, nacional e, até, internacional?
Preocupada com a política e a economia — as ditas grandes questões —, a imprensa tem se descuidado de cobrir de maneira mais ampla a sociedade. Os indígenas são até “defendidos”, quase sempre em artigos, mas raramente os jornais, revistas e emissoras de televisão investem em reportagens amplas, feitas no local, e não apenas ouvindo autoridades e, eventualmente, lideranças dos povos originários.

A visão economicista do mundo — não há frase tão estúpida como “É a economia, estúpido”, mas se tornou aforismo para abertura de artigos e, até, de reportagens —, a ideia de progresso incontornável, é amplamente excludente das vozes dissonantes. Os indígenas, que ajudam a preservar as florestas, são, sugerem os apóstolos do progresso — filhos fossilizados do positivismo —, “barreiras” para o crescimento da economia. Fala-se muito em Bolsonaro, que não é um estadista — é um mero populista de direita que o descenso do PT produziu entre 2016 e 2018 —, mas quase nunca se menciona o ex-ministro da Economia Paulo Guedes, este, mais do que o presidente, o verdadeiro apologista do crescimento a qualquer custo.

Paulo Guedes pode até não dizer bobagens chocantes como Ricardo Salles e Bolsonaro, mas seu projeto de economia é o de exploração em alta escala, e rapidamente, dos recursos minerais e outros do país. A tese é: vamos arrancar tudo do solo, pois assim o Brasil se instalará entre os grandes (Estados Unidos, China, Japão e Alemanha) no concerto global. A visão está mais disseminada e assentada do que se acredita, e não é defendida tão-somente por Paulo Guedes e Jair Messas. Direita, esquerda e centro são seus apóstolos. O que distingue a esquerda petista — que não é comunista — é a pegada, digamos, humanista. O que é positivo, e muito.
Se no governo Bolsonaro prevaleceu a visão economicista — a economia é tudo, portanto aquilo que atrapalha o dito progresso precisa ser eliminado, caso dos munduruku, yanomamis e caiapó —, a imprensa submeteu-se à pauta dominante, que era do bolsonarismo e não dela (nem da sociedade), e deixou os outros Brasis de lado, esquecidos. Por isso, os indígenas não saíram nas manchetes dos jornais e nas capas das revistas há mais tempo.

O jornalismo está se tornando uma atividade de gabinete? Não inteiramente. Mas a ideia de que se pode fazer quase tudo a partir da redação, sem contatos humanos, está contribuindo para distanciar os repórteres das questões-chaves da sociedade. Imagine se a “Folha de S. Paulo” enviasse um profissional do gabarito de Ricardo Kotscho para verificar a situação dos yanomamis, entre outros povos. Se fosse produzida uma série de reportagens, como aquelas que ele fez em Serra Pelada, o país teria voltado sua atenção para as dificuldades dos indígenas mais cedo, o que poderia ter salvado vidas.
Por que o governo Bolsonaro reinou quase absoluto, abrindo as porteiras para as diversas “boiadas”? Porque conseguiu, com certa habilidade, pautar a Imprensa, submetendo seu “discurso” — mesmo quando crítico — às parcas ideias bolsonaristas. Ao cobrir Brasília com extrema atenção, com seus melhores profissionais — que, naturalmente, apreciam os gabinetes refrigerados (e quem não gosta? Daqui a pouco, para retirar um repórter das áreas de conforto, será preciso usar um guindaste) —, a Imprensa patropi está, de alguma maneira, deixando o Brasil de lado. E nem se trata de cobrir o Brasil profundo, e sim o país que está aí, à espera de ser mostrado. Gritando para ser exibido, com seus problemas e, às vezes, soluções.

Um dos melhores repórteres e articulistas de ciência do país, Marcelo Leite, publicou, na “Folha de S. Paulo”, um artigo, “Genocídio yanomami é obra coletiva do Brasil”, que vale breve comentário, tal sua pertinência. De cara, nota que a divulgação dos problemas dos yanomamis se deu na revista “Sumaúma”. A publicação “revelou que 570 curumins yanomamis tinham morrido por causas evitáveis nos quatro anos de Bolsonaro. (…) Um surto de cobertura jornalística assomou para exibir o que era uma realidade crônica. (…) No quadriênio anterior a Bolsonaro, morreram uns 442 curumins nas terras assediadas pelo garimpo contaminador. (…) O genocídio começou muito antes. É coisa nossa”.
O governo de Bolsonaro agravou o problema, porque deu uma espécie de salvo-conduto aos garimpeiros — agentes da visão economicista, quer dizer, do crescimento econômico a todo vapor (que às vezes e muitas vezes não gera desenvolvimento). Mas o problema existia antes do presidente da direita. Marcelo Leite lembra que, no início da década de 1990, houve uma “matança de yanomamis, a de Haximu”.

O repórter Ruan de Sousa Gabriel, de “O Globo”, entrevistou o escritor e líder indígena Ailton Krenak.
“A terra dos yanomamis é como um acampamento na escuridão. Quando um raio cai e produz um clarão, a opinião pública olha para lá e vê os yanomamis morrendo. Dura o tempo de um relâmpago. O território já estava invadido nos anos 1980. Os garimpeiros foram expulsos no governo Collor, mas voltaram. Tem mais de 20 mil garimpeiros lá. (…) O que eles [Bolsonaro, Hamilton Mourão] fizeram enquanto os yanomamis morriam envenenados pelo mercúrio? Os algozes dos yanomamis têm nome, e alguns continuam ocupando cargos públicos”, denuncia, de maneira tão bela quanto incisiva, o notável Ailton Krenak.
Ailton Krenak diz uma coisa que nós, da Imprensa, talvez não queiramos ouvir e ler: “O que está acontecendo na terra dos yanomamis é tão grave quanto o que ocorreu em 8 de janeiro. É o Brasil tentando se autoimolar. Do mesmo jeito que estão atrás dos invasores das sedes dos Três Poderes e de seus financiadores, é preciso ir atrás de invasores de terra indígena e financiadores do garimpo. Os yanomamis precisam ser contados no rol da Humanidade”. Não se trata de esquecer o 8 de janeiro, a tentativa de “abolir” a democracia, e sim de incluir outras pautas, tornando assuntos de discussão na sociedade. A Imprensa precisa “forçar” o país a prestar atenção na história e na vida atual dos povos originários.

O xamã Davi Kopenawa, líder yanomami, disse aos repórteres Carolina Moraes e João Gabrel, da “Folha de S. Paulo”: “Em 2020, começaram aumentar as invasões na Terra Yanomami. A Associação Hutukara fazia documentos avisando sobre o aumento de garimpeiros. A gente pedia para a Funai, para retirarem [eles da terra], mas não fizeram nada. E aumentou ainda mais”.
Davi Kopenawa sublinha que “os yanomamis nunca morreram de fome. Estou aqui, tenho 66 anos e quando era pequeno, ninguém morria de fome. Agora o garimpo está matando o meu povo e também os parentes munduruku e caiapó. Quando os indígenas ficam doentes, eles não conseguem trabalhar [na roça] ou caçar”.

A ideia de “progresso”, tão cara à direita e à esquerda — quer dizer, uma visão de mundo “modernizadora” —, é predatória. Talvez devêssemos ler e pensar sobre o que diz Ailton Krenak: “A narrativa colonial se apoia em um conjunto de consensos, como a ideia do futuro como algo prospectivo, que ainda vamos alcançar. É pura ficção. Se você perguntar para um yanomami o que vai fazer no futuro, ele vai te responder: ‘Onde é isso?’. (…) O conceito indígena de futuro está articulado à ancestralidade porque tudo que existe é o passado, o que já aconteceu. O futuro é ancestral porque está sendo produzido agora. (…) O futuro não é uma flecha movida para a frente. O futuro está aqui, agora, em todo lugar”. Trata-se de uma ideia filosófica que, por certo, encantaria Isaiah Berlin. O filósofo anglo-letão desconfiava dos que sacrificavam o presente, destruindo o mundo e matando pessoas, em busca de um futuro radioso que, a rigor, não chega.
A denúncia do errático e nefasto Bolsonaro precisa ser feita, porque é correta, mas o país não começou a “abandonar” e “matar” os povos originários entre 2019 e 2022. O genocídio é (muito) mais antigo. E, mesmo sem o bolsonarismo, parte dos problemas certamente continuará. Porque o modo de os indígenas viverem — seu respeito à natureza (a conexão com a floresta e demais animais) é amplamente distinto do modo de vista moderno, que é rápido, destrutivo e consumista — contraria o ideário dos demais. A mortandade dos indígenas tende a diminuir, no governo de Lula da Silva — cuja linguagem não é meramente economicista, mas não escapa às ideias de progresso acelerado —, mas certamente persistirá (torço, na verdade, para que o problema seja estancado). Sem Bolsonaro, quem vamos culpar? O poema “À espera dos bárbaros”, de Konstantinos Kaváfis, é um alerta para todos nós.
E quanto à Imprensa? Torçamos para que não continue a ser a primeira a chegar atrasada. Ressalve-se que Fernando Gabeira, de quase 82 anos, nos alerta a respeito dos problemas dos yanomamis há pelo menos dois anos.
À espera dos bárbaros
Konstantinos Kaváfis
— Que esperamos reunidos na ágora?
É que hoje os bárbaros chegam.
— Por que tanta abulia no Senado?
Por que assentam os senadores? Por que não ditam normas?
Porque os bárbaros chegam hoje.
Que normas vão editar os senadores?
Quando chegarem, os bárbaros ditarão as normas.
— Por que o Autocrátor levantou-se tão cedo
e está sentado frente à Porta Nobre da cidade
posto em seu trono, portanto insígnias e coroa?
Porque os bárbaros chegam hoje.
E o Autocrátor espera receber
o seu chefe. Mais do que isto, predispôs
para ele o dom de um pergaminho. Ali
fez inscrever profusos títulos e nomes sonoros.
— Por que nossos dois cônsules e os pretores saíram
esta manhã com togas rubras, com finos bordados de agulha?
Por que essas braçadeiras que portam, pesadas de ametistas,
e os anéis dactílicos lampejando reflexos de esmeralda?
Por que ostentam hoje os cetros preciosos,
esplêndido lavor de cinzel, amálgama de ouro e prata?
Porque os bárbaros chegam hoje,
e toda essa parafernália deslumbra os bárbaros.
— Por que nossos bravos tributos não acodem
como sempre, a blasonar seu verbo, a perorar seus temas?
Porque os bárbaros chegam hoje,
e eles desprezam a oratória e a logorreia.
— Por que de repente essa angústia,
esse atropelo? (Todos os rostos de súbito sérios!)
Por que rápidas se esvaziam ruas e praças
e os antes reunidos retornam atônitos às casas?
Porque a noite chegou e os bárbaros não vieram.
E pessoas recém-vindas da zona fronteiriça
murmuram que não há mais bárbaros.
E nós, como vamos passar sem os bárbaros?
Essa gente não rimava conosco, mas já era uma solução.
[Tradução de Haroldo de Campos]