Filme de Terence Davies, com Cynthia Nixon e Emma Bell, chega aos cinemas brasileiros e consagra a poeta como a Walt Whitman de saia

Emily Dickinson, poeta americana, ganhou traduções competentes no Brasil

Emily Dickinson (morreu aos 55 anos em 1886) e Walt Whitman são os poetas mais importantes dos Estados Unidos. Suas poéticas são diferentes, até muito diferentes — menos em termos de qualidade, em que são almas gêmeas. A primeira era sintética, de matiz enviesado. Uma espécie de poeta do indivíduo, da introspecção. Como tal, difícil, senão impossível, de se tornar, mesmo depois se tornar canônica, a alma de um país, a consciência de uma nação. O segundo era grandiloquente, o poeta da nação, do coletivo, da extroversão (sem deixar de cultivar o indivíduo). A tendência natural é que Whitman “explodisse” antes, dada sua fala como representante dos Estados Unidos (a alma poética; o Lincoln da poesia) de seu tempo e, quem sabe, de todos os tempos. Era e permanece sendo uma espécie de alma artística americana. Emily Dickinson, que publicou pouco em vida, passou anos como uma poeta de poucos, até de pouquíssimos. Porém, com o tempo, com a publicação de toda a sua poesia e com as interpretações de críticos gabaritados — inclusive no Brasil (por sinal, mencionado em alguns de seus poemas), onde tem sido traduzida de maneira competente (por Manuel Bandeira, Aíla de Oliveira Gomes, José Lira, Augusto de Campos) —, tornou-se uma poeta, digamos, cult. A Whitman de saia — algo assim. Que uma poeta tão sofisticada, mais complexa do que parece, esteja caindo no gosto de um público cada vez mais amplo prova que ainda há muitos e bons leitores.

Emily Dickinson

Publicar, dizia Emily Dickinson, era como leiloar a consciência. Mas escrevia, de maneira consciente — até escreveu um poema sobre isto —, para a posteridade. Sabia da qualidade de sua poesia, que, porém, não era adequada à época. Há poetas que nascem num tempo, escrevem nesse tempo, mas pertencem a outro tempo — às vezes, ao passado; às vezes, ao futuro. Emily Dickinson pertencia ao futuro, não ao seu tempo (que talvez não tivesse instrumental para entendê-la e, por isso, aceitá-la). Agora, consolidando sua fama (justíssima) para além dos círculos acadêmicos e dos leitores de poesia, sua história chega ao cinema com o filme “Além das Palavras”, do inglês Terence Davies, com a atriz Cynthia Nixon no papel de Emily Dickinson adulta (quando adolescente, é representada por Emma Bell). Trata-se de uma consagração, pois o cinema é uma arte (ou subarte) de massa.

Um filme dá conta da vida e da poesia de Emily Dickinson? Poetas, sobretudo poetas irredutíveis ao simples, tendem, quando levados ao cinema, ao folclore e à caricatura. Em geral, passam a impressão de que são doidos ou meio doidos (fico a pensar como o notável britânico William Blake, um poço de complexidade e autor de uma obra tão variada, como seria levado ao cinema). A outra impressão que se cristaliza, quando se fala de poetas, é a de românticos. Emily Dickinson tinha uma vida de poeta, tipo a do britânico Byron? De maneira alguma. Mas sua vida reclusa (sempre usando vestidos brancos, quase sem sair de casa, escrevendo mas sem publicar), ou relativamente reclusa, contribua para a formatação da mitologia que a cerca. Sua poesia é afeita à declamação? Por certo, toda poesia é, desde que não seja muito longa (quando longa, cansa o ouvinte, que se perde). A dela é, em geral, curta, mas com uma pontuação que a torna, por vezes, não-conclusiva — como se seguisse o fluxo da vida (que é confusa, contraditória, seguindo por linhas tortas). Talvez não provoque tanto impacto… A palavra a reter é “talvez”.

Talvez seja possível sugerir que a vida de Emily Dickinson — a pública, a interior (muito mais rica; publicamente, em tese, era um vulcão adormecido; interiormente, era um vulcão em permanente erupção) — é suscetível de ser levada ao cinema. Mas a poesia, a não ser que se encontre uma forma de expressá-la de maneira não didática (porque é avessa ao didatismo, às fórmulas), é mais complicada de ser sintetizada para o cinema. Posta a questão, eu estou curiosíssimo: quero ver o filme “Além das Palavras”. Um filme menor (não sei se é o caso) sobre a gigante Emily Dickinson sempre será interessante para seus leitores e aficionados.

Traduções de José Lira para quatro poemas sobre o Brasil

1

Borboletas assim se veem

Nos Pampas do Brasil —

Ao meio-dia — só — e acaba

A amável Permissão —

 

Sabores assim — vêm e voltam —

Depois de dar-se — a Ti —

Como Estrelas — que viste à Noite —

Estranhas — de Manhã —

 

2

Não pedi outra coisa —

Nem outra — me negou —

Pus-Lhe aos pés minha Vida —

Sorriu o Mercador —

Brasil? Fitou as Unhas —

Nem um olhar me volveu —

“Senhora — não há mais nada

Para Hoje — se ver?”

 

3

Mariposas desse matiz

Rondam as Velas no Brasil.

A Natureza aqui não faz

Rubro tão vivo como lá.

 

Como uma Moça, eu acho, a Natureza é fã

Desses Balangandãs.

 

4

Depois de dias de Doença

Olhar o mundo eu quis

E a Luz do Sol nas mãos tomá-la

E ver o que nos Pés

 

Desabrochava quando em casa

Lutava contra a Dor —

Sem ter certeza se eu ou Ela

Iria enfim ganhar.

 

Já o Verão que ao fim chegava

As flores extinguiu —

E em seu lugar outras mais rubras

Caprichoso deixou —

 

Criança fora e já morria —

E estava a se enganar —

Tentando — à sombra do Arco-Íris —

Da cova se esconder.

 

Vestiu a Noz para enfeitá-la —

Deu aos Grãos um Capuz —

Deixou cair trapos de Tinta

E Brasileiras Lãs

 

Em cada ombro que tocava —

As Mãos de névoa a encher

Se pôs — negando à Graça extinta

O nosso impróprio olhar.

(“Alguns Poemas”, de Emily Dickinson. Tradução de José Lira. Editora Iluminuras. 2006)

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