Adalberto Müller prepara a tradução das poesias completas de Emily Dickinson

09 janeiro 2016 às 12h52

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Apontada como Shakespeare da América, Sade mulher e rival de Walt Whitman, a poeta morreu aos 55 anos, não saía de casa, só usava branco, escreveu 1800 poemas mas só dez deles foram publicados quando viva

Emily Dickinson (a Sade mulher, na avaliação de Camille Paglia, e a Shakespeare da América) morreu aos 55 anos, solteirona, e deixou uma obra poética vasta e ímpar (1800 poemas) — que preferiu guardar a publicar. “A partir de 1862, afastou-se de todo convívio social, enclausurou-se em casa e passou, até o fim da vida, a vestir-se somente de branco — como noiva ou noviça. E poetava copiosamente”, anota a tradutora Aíla de Oliveira Gomes.
“No total, foram publicados em vida sem indicação de autoria, apenas dez de seus poemas”, informa o tradutor José Lira. “Publicar — é como leiloar/A consciência humana —/A pobreza justificaria/Essa mesquinharia” (tradução de Aíla de Oliveira Gomes), escreveu a poeta. Aos poucos, com traduções às vezes escorreitas, a poeta americana está se tornando “brasileira”.
Da terra do filósofo e escritor Ralph Emerson e do poeta Walt Whitman, considerando as mulheres (e não só; Whitman e T. S. Eliot foram editados de maneira ampla), é das mais editadas no país. Entre seus tradutores estão Manuel Bandeira, Mário Faustino, Olívia Krahenbühl, Aíla de Oliveira Gomes, Idelma Ribeiro de Faria, Augusto de Campos, José Lira, Lucia Olinto, Paulo Vizioli, Ivo Bender, Jorge Wanderley, Isa Mara Lando, Waldéa Barcellos, Ana Cristina Cesar, Carlos Daghlian, Paulo Henriques Britto e, entre outros, Vera das Neves Pedroso. Em Portugal ganhou traduções de Jorge de Sena, Cecília Rego Pinheiro e Ana Luisa Amaral. A boa notícia, dada no artigo “Emily Dickinson — Imagem, ritmo, pensamento” (revista “Cult”), é que o professor da Universidade Federal Fluminense Adalberto Müller está preparando a tradução dos poemas completos. A única em Língua Portuguesa — considerando o Brasil, Portugal e países africanos.
Na apresentação ao livro “Uma Centena de Poemas” (T. A. Queiroz, páginas, 245 páginas, 1985) — tradução e introdução de Aíla de Oliveira Gomes —, o tradutor Paulo Rónai escreve: “O trabalho apresenta uma contradição íntima que só faz valorizá-lo. A autora demonstra na introdução por ‘a’ mais ‘b’ que a poesia de Emily Dickinson é intraduzível, e em português mais do que qualquer outra língua. Tínhamos alguma suspeita disso. Terrível Emily! Realiza o máximo de magia com o mínimo de sons, tira todo o efeito possível do amplo estoque de palavras da língua inglesa, precisamente das de cepa germânica, as mais sugestivas; só usa versos curtos; manipula a elipse com virtuosismo, opera malabarismos por meio de simples travessões — e com tudo isso guarda uma simplicidade de canção popular, uma ingenuidade infantil, ora travessa, ora magoada”. No caso da poeta, ritmo e rima, frisa Rónai, “são inseparáveis do conteúdo”.
“Alguns poemas” (Iluminuras, 319 páginas, 2006), de Emily Dickinson, contém 245 poemas traduzidos por José Lira (que também organizou “A Branca Voz da Solidão”, em 2011). Entre eles os quatro poemas que mencionam o Brasil. Carlos Daghlian afirma que “é a mais extensa coletânea já publicada entre nós”. O tradutor e poeta Paulo Henriques Britto, no prefácio, afirma que José Lira lança mão de um recurso inusitado, “que ele denomina de ‘rima abreviada’. O efeito consiste na associação entre uma rima feminina e uma masculina em que há coincidência ou proximidade entre os sons das duas sílabas tônicas finais. Logo no primeiro poema da antologia encontramos uma rima entre ‘atada’ e ‘há’ [“eu canto para usar a Espera —/À Touca a fita atada/E posta a tranca em minha Porta/Mais a fazer não há//Até que ao soarem os Seus Passos/Seguimos para o Dia/A nos dizer como cantamos/Para o Escuro iludir”]. Lira é o primeiro tradutor a se valer sistematicamente desse recurso, que me parece ter ótimo rendimento no português e fazer justiça à inventividade da rima dickinsoniana. Pois foi Dickinson quem introduziu no inglês todo um repertório de formas rímicas novas, em particular a rima consonantal. (…) José Lira não só atinge um nível mais elevado de fidelidade aos recursos formais de Emily Dickinson como também traz uma importante contribuição ao repertório de recursos poéticos do português”.
No ensaio “Emily Dickinson: a críptica beleza”, José Lira frisa que “sua linguagem poética é quase sempre ambígua e obscura, muitas vezes hermética ou truncada, com uma ‘gramática’ própria, aberta às mais diversas interpretações”. Sua obra “é uma colcha de retalhos, costurada com poemas de grande força lírica e versos de ocasião, resquícios de devaneios juvenis ou meros rascunhos. (…) A grandeza do gênio poético de Emily Dickinson está, em larga medida, nas entrelinhas, nos subtextos e nos não-ditos de uma escrita elíptica, oblíqua, irônica, cheia de sugestões e insinuações. Tem-se a impressão de que algo sempre ‘está faltando’ nessa escrita. A ideia de perda — perda do amor, perda da fé, perda da fama — já foi vista por alguns críticos como inerente à poética dickinsoniana”.
“A morte é”, sublinha José Lira, “um dos motivos centrais de sua poesia, e para muitos é a força dominante, mas está quase sempre inter-relacionada com outros temas: a fé e a dor, ou a vida e a natureza”. A ironia e a ambiguidade “dão a cada uma de suas palavras uma inexcedível riqueza de nuanças e possibilidades interpretativas”. Os leitores pouco afeitos à poética de Emily Dickinson estranham a pontuação de seus poemas — como o uso do travessão como “substituto” do ponto. “Não há um arranjo linear nem uma grafia ou sequer uma pontuação sistemática nos” seus “manuscritos”, destaca José Lira. Ao mesmo tempo, “é difícil saber exatamente de que fala um poema de Emily Dickinson. (…) A marca inconfundível da verdadeira poesia” é “dizer mais do que diz sem dizer mais do que está dito”. É uma síntese possível e talvez exata da poética da norte-americana.
A tradutora portuguesa Ana Luísa Amaral disse a respeito de Emily Dickinson: “A sua linguagem poética, ao mesmo tempo metafórica e elíptica, sincopada e oblíqua, sem muitas vezes concordância de formas verbais, nem respeito por plurais ou regras de gramática, deixou espaço a que dela se acentuasse o excessivo ofício com a gramática ou se falasse até de uma gramática própria. O seu uso recorrente de travessões, que fragmentam e questionam o verso, permitiu que deles se dissesse serem formas de dispersão da unidade discursiva, ou, sexualizados, uma espécie de hímen-hifen. (…) O ter falado de tudo, misturando Deus com ladrões, aranhas com vassouras, alma com vulcões, sonho com abelhas, gerânios, piscos e trevos; ou o ter examinado a morte e a vida, explorado o amor e o inferno, o êxtase, a mais pura alegria, o sofrimento, a misteriosa energia das coisas todas do universo. Ainda o tê-lo feito numa voz de mulher, aparentemente submissa, de facto poderosa. ‘Habito a Possibilidade —/Uma Casa mais bela do que a Prosa —’, escreveu’. Depois disto, que melhor definição de poesia?”.
No livro “Como e Por Que Ler” (Objetiva, 275 páginas, tradução de José Roberto O’Shea), o crítico americano Harold Bloom afirma que, “tanto quanto Shakespeare e William Blake”, a poeta “repensa, em seus próprios termos, a experiência da vida. Quando lemos Dickinson, precisamos estar preparados para enfrentar a sua originalidade de raciocínio. A recompensa é singular, pois Dickinson ensina-nos a pensar com mais argúcia, com mais consciência da dificuldade que temos de romper as convenções de recepção literária tão arraigadas em nosso ser. Dickinson é tão original que a tarefa de classificá-la com precisão é quase tão impossível quanto no caso de Shakespeare. Serão ambos poetas cristãos ou niilistas?”
Segundo Harold Bloom, “até a perda erótica é transformada por Dickinson em imagens poéticas”. Charles Wadsworth, Susan Gilbert, Samuel Bowles e o juiz Otis Phillips Lord são as perdas eróticas da poeta. De todas as esplêndidas expressões de perda, o poema 1.260 é o que me causa maior impacto: “Porque estás partindo/P’ra nunca mais voltar,/Eu, sempre tão absoluta,/Não vou teu Rastro olhar —//Porque a Morte é final,/Desde a mais tenra idade,/Este instante é suspenso/Além da mortalidade —//Importa havermos vivido/Para o outro conhecer,/Achado que nem Deus/Pode ora obscurecer.//Eternidade, Presunção,/A hora exata percebida/Que tu, a própria Existência,/Esqueceste da tua vida —//“Esta Vida” será passado,/jamais pude conhecer —/Paraíso fictício,/Até descobrir você —//“A outra Vida” será, p’ra mim,/Residência de plebeu/Se no Rosto do Redentor/Eu não encontrar o teu —//Quem sabe, a Imortalidade/Não trocaria comigo,/Dando-me teu Rosto obscuro,/Por tudo, menos o Amigo —//Abro mão de Céu e Inferno,/Direito de ralhar não esqueço,/Com quem trocar esse Rosto/Pelo Amigo de menor preço.//Se “Deus é amor”, ele afirma,/Achamos, deve ser mesmo;/Sendo ele um “Deus ciumento”,/As palavras não vagam a esmo.//Se a ele “Tudo é possível”,/Sempre diz nos sermões pregados,/Ele há de nos restituir/Nossos Deuses confiscados —”.
O professor Adalberto Müller traduziu 12 poemas de Emily Dickinson para a revista “Cult” nº 208, de dezembro de 2015, e comentou sua poética. Pela mostra, ainda que pequena, a tradução é perceptiva e consegue sair-se bem das “armadilhas” criadas pela poeta, tornando-se uma rival à altura do original. Porém, por mais que inove, há, por certo, um diálogo com as traduções anteriores. Isto é inescapável quando se trata de poetas — que embora pareçam simples à primeira vista — tão complexos quanto Emily Dickinson
Por que a poeta se tornou, digamos, uma febre mundial — criando-se quase uma religião poética? Müller aponta a “beleza sintética”, a “riqueza temática (natureza, amor, metafísica)”, “modernidade” e a “escrita feminina (e, mais recentemente, homoafetiva)”. Emily Dickinson teria sido apaixonada por homens, aparentemente sem o ato sexual, e pela cunhada Susan Gilbert. Na sua poesia, a síntese da “imagem, ritmo e pensamento se conciliam” e chegam “à apoteose”.
Müller sugere que “os versos e estrofes de Emily Dickinson se sustentam sobre o common meter, no qual se alternam versos jâmbicos de oito e seis sílabas (algumas vezes de sete a seis). O uso extensivo do common meter diferencia Emily Dickinson de quase todos os contemporâneos, e aproxima muitas vezes sua poesia dos hinos religiosos e das canções populares (daí minha preferência pelas redondilhas, na tradução). Por outro lado, Dickinson alterna verbos brancos com rimas, que, na maioria dos poemas (em cerca de 90% deles), ocorre no antepenúltimo e último versos. Seu jogo com as rimas é também complexo, inclusive lançando mão de sonoridades típicas do inglês falado na Nova Inglaterra (o que, também, a quase maioria dos tradutores ignora ou prefere esquecer).
A poesia de Emily Dickinson contém filosofia, indica Müller, pois era leitora de Emerson e Henry David Thoreau (autor de “Walden”). “Sua síntese é tão perfeita que os poemas se parecem com pequenas esferas prismáticas, que pedem horas de reflexão” (como os aforismos de Nietzsche), postula Adalberto Müller. Os tradutores de Emily Dickinson preferidos do professor são, aparentemente, Augusto de Campos e Ana Luísa Amaral.
O leitor verá que alguns poemas estão “repetidos”. Mas é que cada tradutor reinventa Emily Dickinson e, por isso, duas traduções são, por assim dizer, praticamente dois poemas. Carlos Daghlian lista as principais traduções da poesia de Emily Dickinson.
Traduções de Adalberto Müller
1
Toda Vida busca Centro —
Em parte expressa — ou quieta —
Há na Natureza Humana
Uma Meta —
Pouco aferrada — que seja —
Tão pura —
Que a presunção de Credibilidade
desfigura —
Tomar com cautela — o Céu Frágil —
Alcançá-la
Seria ver a renda do Arco-íris
E tocá-la —
Mas perseverando — à Distância —
ao léu —
Com a diligência lenta dos Santos —
No Céu —
Longe da Ventura da Vida —
De repente
A Eternidade desafia —
novamente —
2
Não pedi nada mais nada —
E nada mais — me foi negado —
Ofereci o Ser — em troca —
Ao Mercador — o Abastado —
Brasil? — o dedo no Botão —
Fingindo que não me via —
“Madame — leva outra coisa
Hoje — este aqui — seria?”
3
Pra cada momento extático
Pagamos com angústica
Pesando desejo e temor
Até o êxtase.
Cada hora de amor
É um milagre — mas —
Juntamos cada centavo —
E pagamos com mil lágrimas.
(Revista “Cult”, nº 208, dezembro de 2015. Traduções do professor universitário Adalberto Müller)
Traduções de José Lira para quatro poemas sobre o Brasil
1
Borboletas assim se veem
Nos Pampas do Brasil —
Ao meio-dia — só — e acaba
A amável Permissão —
Sabores assim — vêm e voltam —
Depois de dar-se — a Ti —
Como Estrelas — que viste à Noite —
Estranhas — de Manhã —
2
Não pedi outra coisa —
Nem outra — me negou —
Pus-Lhe aos pés minha Vida —
Sorriu o Mercador —
Brasil? Fitou as Unhas —
Nem um olhar me volveu —
“Senhora — não há mais nada
Para Hoje — se ver?”
3
Mariposas desse matiz
Rondam as Velas no Brasil.
A Natureza aqui não faz
Rubro tão vivo como lá.
Como uma Moça, eu acho, a Natureza é fã
Desses Balangandãs.
4
Depois de dias de Doença
Olhar o mundo eu quis
E a Luz do Sol nas mãos tomá-la
E ver o que nos Pés
Desabrochava quando em casa
Lutava contra a Dor —
Sem ter certeza se eu ou Ela
Iria enfim ganhar.
Já o Verão que ao fim chegava
As flores extinguiu —
E em seu lugar outras mais rubras
Caprichoso deixou —
Criança fora e já morria —
E estava a se enganar —
Tentando — à sombra do Arco-Íris —
Da cova se esconder.
Vestiu a Noz para enfeitá-la —
Deu aos Grãos um Capuz —
Deixou cair trapos de Tinta
E Brasileiras Lãs
Em cada ombro que tocava —
As Mãos de névoa a encher
Se pôs — negando à Graça extinta
O nosso impróprio olhar.
(“Alguns Poemas”, de Emily Dickinson. Tradução de José Lira. Editora Iluminuras. 2006)
Traduções de Manuel Bandeira
1
Duas vezes perdi tudo
E foi debaixo da terra.
Duas vezes parei mendiga
À porta de Deus.
Duas vezes os anjos, descendo dos céus,
Reembolsaram-me de minhas provisões.
Ladrão, banqueiro, pai,
Estou pobre mais uma vez!
2
Morri pela beleza, mas apenas estava
Acomodada em meu túmulo.
Alguém que morrera pela verdade
Era depositado no carneiro contíguo.
Perguntou-se baixinho o que me matara:
— A beleza, respondi.
— A mim, a verdade — é a mesma coisa,
Somos irmãos.
E assim, como parentes que uma noite se encontram,
Conversamos de jazigo a jazigo,
Até que o musgo alcançou os nossos lábios
E cobriu os nossos nomes
(“Alguns Poemas Traduzidos”, de Manuel Bandeira. Editora José Olympio)
Traduções de Aíla de Oliveira Gomes
1
A beleza não se faz — ela é.
Você a caça, ela cessa;
Se desiste, ela persiste.
Tente imitar as estrias
No capinzal, quando o vento
Corre-lhe os dedos por dentro —
Algum deus vai estar atento
Para frustrar o seu intento.
2
Morri pela Beleza, mas na tumba
Mal me tinha acomodado
Quando outro, que morreu pela Verdade,
Puseram na tumba ao lado.
Baixinho perguntou por que eu morrera.
Repliquei, “Pela Beleza” —
“E eu, pela Verdade” — ambas a mesma —
E nós, irmãos com certeza.
Como parentes que pernoitam juntos,
De um quarto a outro conversamos —
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E encobriu os nossos nomes.
3
Dizer toda a Verdade — em modo oblíquo —
No Circunlóquio, o êxito:
Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo
O seu sublime susto.
Como a meninos se explica o relâmpago
De modo a sossega-los —
A Verdade há de deslumbrar aos poucos
Os homens — p’ra não cegá-los.
4
Dizem, “com o tempo se esquece”,
Mas isto não é verdade,
Que a dor real endurece,
Como os músculos, com a idade.
O tempo é o teste da dor,
Mas não é o seu remédio —
Prove-o e, se provado for,
É que não houve moléstia.
(“Uma Centena de Poemas”, Emily Dickinson. Tradução de Aíla de Oliveira Gomes. Editora T. A. Queiroz, 1985)
Tradução de Paulo Vizioli
A alma escolhe sua própria sociedade,
E fecha a porta;
Depois, com a divina maioria
Não mais se importa.
Imóvel, nota as bigas se detendo
Ao portão abaixo;
Imóvel, vê monarca de joelhos
Em seu capacho.
Elege apenas um de ampla nação:
Aquele medra;
E fecha as válvulas de sua atenção
Igual a pedra.
(“Poetas Norte-Americanos”. Tradução de Paulo Vizioli. Editora Lidador, 1974)
Traduções de Augusto de Campos
1
Não sou Ninguém. Quem é você?
Ninguém — Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar.
Que triste — ser — Alguém!
Que pública — a Fama!
Dizer seu nome — como a Rã —
Para as palmas da Lama.
2
A Morte é um Diálogo entre
A Alma e o Pó.
Diz a Morte ‘Some” — A Alma “Só
Me cabe ser Crente” —
A Morte — sob a Terra — clama.
Vai-se a Alma
Deixando o seu — prova cabal —
Manto de Lama.
(“O Anticrítico”, de Augusto de Campos. Companhia das Letras, 1986)
Traduções de Jorge Wanderley
1
A alma escolha sua companhia
e fecha os portais.
Em sua divina soberania
Não se entra mais.
Impassível, reconhece a carruagem
Parando à entrada;
Impassível, vê um rei que se ajoelha
No seu tapete.
Sei que escolheu de uma grande nação
Um só, a dedo.
Depois fechou as valvas da atenção
Como um rochedo.
2
Duas vezes morri, antes da morte;
Falta agora ver somente
Se a imortalidade me revela
Algum terceiro incidente
Inconcebível como os dois primeiros
Que de lembrar me consterno.
Partir é tudo o que do céu sabemos
E desejamos do inferno.
(“Antologia da Nova Poesia Norte-Americana”, seleção e tradução de Jorge Wanderley. Editora Civilização Brasileira, 1992)
Traduções de Idelma Ribeiro de Faria
1
Loucura é razão sublime
Para um olho perspicaz.
Muito juízo é pura
E simplesmente loucura.
A opinião da maioria
Nisto e em tudo prevalece.
Se concordas, és sensato.
Discordando — és perigoso
E acorrentado no ato.
2
Mais grave é perder a fé
Do que os bens materiais;
Podem os bens ser recompostos,
A fé, contudo, jamais.
É herança recebida
Com a vida e uma vez somente;
A anulação de uma cláusula
Fará do herdeiro um indigente.
(“Poemas”, de Emily Dickinson. Tradução e apresentação de Idelma Ribeiro de Faria. Editora Hucitec, 1991)
Tradução de Ana Cristina Cesar
Não há fragata igual a um livro, que daqui
nos distancie.
Nem corcel que galope mais que um Verso
de Poesia —
Não custa Pedágio ao pobre
Essa Travessia —
Frugal é o Carro que nos leva
Nesta Vida.
(“Folhetim — Poemas Traduzidos”. Tradução de Ana Cristina Cesar. Editora da Folha de S. Paulo, 1983)
Traduções de de Ana Luísa Amaral
1
A minha vida fechou-se duas vezes antes de se fechar –
Mas fica por saber
Se a imortalidade me revela
Um evento maior
Tão largo, tão incrível de pensar
Como estes que sobre ela duas vezes tombaram.
Partir é tudo o que sabemos do céu,
Tudo o que do inferno se pode precisar.
2
Crescendo de trovão até findar,
Depois o esboroar-se, grandioso,
Quando o Tudo criado era escondido
Isto — a Poesia —
Ou o Amor — os dois vêm coevos —
Ambos, nenhum provamos —
Um qualquer experimentamos e morremos —
Ninguém vê Deus e vive —
(“Duzentos Poemas”, Emily Dickinson. Tradução de Ana Luísa Amaral. Editora Relógio d’Água, 2015)
Traduções de Jorge de Sena
1
Ter Medo? De quem terei?
Não da Morte — quem é ela?
O Porteiro de meu Pai
Igualmente me atropela.
Da Vida? Seria cómico
Temer coisa que me inclui
Em uma ou mais existências —
Conforme Deus estatui.
De ressuscitar? O Oriente
Tem medo do Madrugar
Com sua fronte subtil?
Mais me valera abdicar!
2
Morri pela Beleza — mas mal eu
Na tumba me acomodara,
Um que pela Verdade então morrera
A meu lado se deitava.
De manso perguntou por quem tombara…
— Pela Beleza — disse eu.
— A mim foi a Verdade. É a mesma Coisa.
Somos Irmãos — respondeu.
E quais na Noite os que se encontram falam —
De Quarto a Quarto a gente conversou —
Até que o Musgo veio aos nossos lábios —
E os nossos nomes — tapou.
(“80 Poemas”, de Emily Dickinson. Tradução de Jorge de Sena. Editora Guimarães)
Tradução de Isa Mara Lando
Medo! De quem tenho medo?
Não da Morte — quem é essa Senhora?
O Porteiro de meu Pai
Igualmente me apavora!
Da Vida? Estranho seria temer
Algo que me contém completa
Em uma existência ou duas —
Como a Divindade decreta —
Da Ressurreição? Será que o Oriente
Teme confiar na Aurora
Com sua altaneira fronte?
Antes perder minha Coroa!
(“Cinquenta Poemas”, de Emily Dickinson. Tradução de Isa Mara Lando. Editora Imago/Alumni. 1999)
Tradução de Vera das Neves Pedroso
Num verão nos casamos, querida,
A sua visão — foi em junho.
E quando sua pequena existência falhou,
Eu me cansei, também, da minha.
E acometida no escuro
Onde você me tinha deposto,
Por alguém carregando uma luz
Eu — também — recebi o sinal.
É verdade—nossos futuros eram diferentes.
A sua casa dava para o sol,
Enquanto oceanos e o norte
Rodeavam a minha.
É verdade, o seu jardim florescia primeiro,
Pois o meu era em geadas semeado.
E contudo num verão fomos rainhas,
Mas você foi em junho coroada.
(“Mistério e Solidão—A Vida e a Obra de Emily Dickinson”, de Thomas Johnson. Tradução de Vera das Neves Pedroso. Editora Lidador, 1965. O poema aparentemente diz respeito à poeta e Susan Huntington Gilbert, Sue, sua cunhada.)
Tradução de Cecília Rego Pinheiro
O Cérebro — é mais amplo do que o Céu —
Pois — colocai-os lado a lado —
Um o outro irá conter
Facilmente — e a Vós — também —
O Cérebro é mais fundo do que o mar—
Pois — considerai-os — Azul e Azul —
Um o outro irá absorver —
Como as Esponjas — à Água — fazem —
O Cérebro é apenas o peso de Deus —
Pois — Pesai-os — Grama a Grama —
E eles só irão diferir — se tal acontecer —
Como a sílaba do Som —
(“Esta é a Minha Carta ao Mundo e Outros Poemas”, de Emily Dickinson. Tradução de Cecília Rego Pinheiro. Editora Assírio & Alvim,1997)
Tradução de Ivo Bender
Para as assombrações, desnecessária é a alcova,
Desnecessária, a casa —
O cérebro tem corredores que superam
Os espaços materiais.
Mais seguro é encontrar à meia-noite
Um fantasma,
Que enfrentar, internamente,
Aquele hóspede mais pálido.
Mais seguro é galopar cruzando um cemitério,
Por pedras tumulares ameaçado,
Que, ausente a lua, encontrar-se a si mesmo
Em desolado espaço.
O eu, por trás de nós oculto,
É muito mais assustador;
E um assassino, escondido em nosso quarto,
Dentre os horrores, é o menor.
O homem prudente leva consigo uma arma
E cerra os ferrolhos da porta,
Sem perceber um outro espectro,
Mais ínfimo e maior.
(“Poemas de Emily Dickinson”. Tradução de Ivo Bender. Editora Mercado Aberto. 2002)
Tradução de Abgar Renault
O céu se encontra tão
Longe como o quarto mais perto,
Se em tal quarto o amado espera
Ventura ou perdição.
Que fortitude a alma contém,
que tanto e assim suporta
o ruído de passos que vêm,
o abrir-se uma porta!…
(“Poesia — Tradução e Versão”, de Abgar Renault. Editora Record, 1994)
Tradução de Paulo Henriques Britto
Noites Loucas — Noites Loucas!
Estivesse eu contigo
Noites Loucas seriam
Nosso luxuoso abrigo!
Para Coração em porto —
Ventos — são coisas fúteis —
Bússolas — dispensáveis —
Portulamos — inúteis!
Navegando em pleno Éden —
Ah, o Mar!
Quem dera — esta Noite — em Ti
Ancorar!
(Inimigo Rumor — Revista de Poesia. Tradução de Paulo Henriques Britto. Editora Sette Letras. 1999)