Para garantir as reformas e o continuísmo de João Goulart no poder, as esquerdas decidiram sacrificar a democracia, o que fortaleceu militares golpistas na sociedade

“Só teremos novos tempos se investigarmos os velhos tempos.” — Julian Barnes

“João Goulart — Uma Biografia” (Civilização Brasileira, 713 páginas), do doutor em História Jorge Ferreira, é, seguramente, o melhor estudo da vida do presidente da República e um brilhante livro de história. No capítulo “Dois dias finais”, o professor da Universidade Federal Fluminense apresenta as explicações de políticos, líderes sindicais e pesquisadores sobre “por que o golpe civil-militar foi vitorioso” e, “sobretudo, porque foi vitorioso com tanta facilidade”. O golpe “começou” em 31 de março de 1964 e em 1º de abril o poder dos militares estava cristalizado.

Por que “uma sociedade tão sensível ao tema da legalidade, com organizações de esquerda atuantes e com um movimento operário e sindical mobilizado, não reagiu à altura, levando-se em consideração as fortes bases de apoio militar a Goulart?”

Os líderes trabalhistas, como José Gomes Talarico, postulam que “Jango¹ caiu porque foi traído”. O principal traidor teria sido o general Amaury Kruel que, apesar de amigo e compadre, aderiu aos golpistas. Entre os supostos “traidores” aparecem Juscelino Kubitschek, que, pensando na disputa de 1965, teria “abandonado” o presidente.

Secretário de Imprensa do presidente, Raul Ryff sugere que “Jango estava condenado à queda porque havia iniciado um ‘processo nacionalista, independente e popular no Brasil. Um processo até certo ponto revolucionário”.

Os trabalhistas sugerem que, no registro de Jorge Ferreira, “a conspiração direitista interna-externa teria sido o fator fundamental para a crise política de 1964”. O ministro Darcy Ribeiro postula que Jango caiu por suas virtudes, não pelos defeitos. A “culpa”, para os trabalhistas, “é dos outros”.

Os comunistas ligados ao PCB, liderados por Luiz Carlos Prestes, sublinharam que os nacionalistas do PTB, como Jango, “vacilaram”. “Vacilaram porque tinham uma orientação pequeno-burguesa.” Num depoimento, Prestes disse: “Jango é o maior responsável pelo golpe de 64”. Curiosamente, os dois eram aliados.

João Goulart e seu cunhado, Leonel Brizola | Foto: Reprodução

Entre os acadêmicos desponta um dos biógrafos de Jango. “A tese que personaliza a crise política de 1964, responsabilizando e culpando o presidente João Goulart, simplifica ao extremo uma conjuntura extremamente complexa. É o caso de Marco Antônio Villa [no livro “Jango — Um perfil: 1945-1964”, Editora Globo, 287 páginas], para quem João era ‘fraco’, ‘conciliador’, ‘inconsequente’ e ‘incapaz’ de administrar o país.”

Mas pode um único homem ser responsável pela grande crise que acabou por derrubá-lo? O jornalista Carlos Haag assinala que “Jango não pode ser tão imenso a ponto de ser o grande responsável pelo golpe”.

A pesquisadora Marieta de Moraes Ferreira diz que “as acusações feitas a Goulart e as insuficiências atribuídas a ele, que fazem dele o responsável maior pelo golpe de 1964 e pelos 21 anos de ditadura que se seguiram, devem ser estendidas aos demais atores sociais da época. Limitações e defeitos de uma geração, de uma cultura política, não podem ser atribuídos exclusivamente a um indivíduo”.

Há os que defendem a tese de que os militares golpistas “avançaram” em razão de João Goulart “não resistir”. Na visão de Brizola, Jango “estava enojado de tudo. Ele tinha temperamento para a política do cochicho. Era bom negociador, mas tinha dificuldade de assumir situações de risco, audácia”.

Luiz Carlos Prestes: o líder comunista avaliava Jango como “vacilante” | Foto: Reprodução

Grupos nacionalistas e de esquerda avaliam que, se Jango tivesse dado voz de comando para reagir, o golpe teria sido “evitado”. Jorge Ferreira questiona essa interpretação, que teria dois pontos fracos. “O primeiro é a personalização do processo. Como sustentar que organizações sindicais, estudantis, camponesas, nacionalistas, de sargentos, de esquerda, entre diversas outras que, desde os anos 1950, mobilizavam a sociedade brasileira com um grau importante de autonomia, pudessem depender da ordem de um indivíduo?”

“Segundo”, continua Jorge Ferreira, “o processo ocorreu dos dois lados com resultados absolutamente diversos. Os partidários das reformas não resistiram por falta de instruções que viessem de um único comando, mas como explicar que, do lado dos golpistas, igualmente não existisse nenhuma voz unificadora, nenhuma liderança centralizada, e mesmo assim, de um dia para o outro, diversas iniciativas tivessem sido tomadas por inúmeros comandos militares? É necessário relativizar a explicação: se, de um lado, não houve ordem para resistir, também, do outro, não houve ordem para golpear as instituições”.

Direita e esquerda contra a democracia

Numa teoria acadêmica, 1964 teria simbolizado o “colapso do populismo no Brasil”. Autora do livro “Democracia ou Reformas; Alternativas Democráticas à Crise Política — 1961-1964”, Paz e Terra), a cientista política Argelina Figueiredo aponta que o argentino Guillermo O’Donnel “aproximou excessivamente estágios de industrialização e regimes autoritários. Para o autor, o processo de industrialização por substituição de importações, em um certo estágio, atinge um nível em que o crescimento econômico exige governos autocráticos na regulação dos conflitos” (a síntese é de Jorge Ferreira).

Argelina Figueiredo: professora-doutora procedeu a uma reavaliação da história política de 1964 | Foto: Reprodução

Argelina Figueiredo postula que a interpretação de Fernando Henrique Cardoso é ainda mais determinista. Segundo o sociólogo, “a acumulação de capital necessita de formas autoritárias de gestão, desarmando as classes populares e reestruturando os mecanismos de acumulação para o desenvolvimento das forças produtivas”. Configura-se, aí, um determinismo econômico. As interpretações, sublinha a pesquisadora, “presumem uma coincidência perfeita entre os requisitos estruturais e ações individuais ou grupais, sem especificar o mecanismo através do qual a ‘necessidade’ se realiza na ação”.

Jorge Ferreira afirma que dois cientistas políticos, Wanderley Guilherme dos Santos e Argelina Figueiredo, apresentaram análises inovadoras.

Autor de “Sessenta e Quatro — Anatomia de uma Crise” (Vértice), o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos “inovou ao incluir variáveis políticas para a compreensão do golpe militar, tornando relativo o determinismo econômico. O colapso da democracia em 1964 resultou daquilo que o autor definiu como ‘paralisia de decisão’, processo composto de quatro combinações: fragmentação de recursos de poder, radicalização ideológica, fluidez nas coalizações partidárias no Congresso Nacional e rotatividade nos ministérios, resultando na instabilidade do governo”.

Wanderley Guilherme dos Santos, cientista político: colapso da democracia em 1964 resultou da “paralisia de decisão”| Foto: Reprodução

Argelina Figueiredo, resume Jorge Ferreira, “procura na própria dinâmica política explicações para o desempenho do governo, a crise política e o próprio golpe. Para ela, entre 1961 e 1964, ‘escolhas e ações específicas solaparam as possibilidades de ampliação e consolidação de apoio para as reformas, e, dessa forma, reduziram as oportunidades de implementar, sob regras democráticas, um compromisso sobre essas reformas’. A radicalização das direitas e das esquerdas desestabilizou o governo. A questão democrática não estava na agenda das partes em conflito. Para garantir privilégios, as direitas sempre estiveram dispostas a romper com as regras democráticas — se não fossem garantidos, era preferível sacrificar a democracia. As esquerdas lutavam pelas reformas a qualquer preço e custo. (…) Para viabilizar as reformas era necessário atropelar as instituições. Direitas e esquerdas, diz a autora, ‘subescreviam a noção de governo democrático apenas no que servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava a incerteza inerente às regras democráticas’”.

Em 1961, sob a liderança de Leonel Brizola (com o apoio do governador de Goiás, Mauro Borges), as esquerdas derrotaram o projeto conservador. Em seguida, com o plebiscito que garantiu a vitória do presidencialismo, venceram mais uma vez. “Essas vitórias”, anota Jorge Ferreira, “incentivaram-nas a acreditar que bastava mobilizar a sociedade na luta pelas reformas para terem seu apoio e, desse modo, grande sucesso. (…) Em março de 1964, as esquerdas pensaram repetir agosto e setembro de 1961 [quando garantiram a posse de João Goulart na Presidência da República]. Mas a luta era pela manutenção da ordem jurídica e democrática. O movimento era defensivo”. A direita, ao pregar o golpe, perdeu legitimidade. A esquerda, ao trabalhar pela legalidade, venceu. “Em março de 1964, os sinais se inverteram. O lema que pregava ser ‘a Constituição intocável’ passou a ser defendido pelos conservadores. Para impedirem as reformas, eles proferiam discursos de defesa da ordem legal. As esquerdas, diversamente, pediam o fechamento do Congresso, a mudança na Constituição e questionavam os fundamentos da democracia liberal instituídos pela Carta de 1946. Inebriadas pelas vitórias de 1961 e de 1963, as esquerdas acreditaram que poderiam repeti-las em 1964. Não perceberam a importância da questão democrática para a sociedade brasileira. (…) Em março de 1964 , elas [as esquerdas] não encontraram apoio social para resistir ao golpe”.

Medo do comunismo unificou elites

No clássico “1964: A Conquista do Estado — Ação Política, Poder e Golpe de Classe” (Vozes, 814 páginas), René Dreifuss analisa o papel do Ipes e do Ibad — “Estado-Maior da burguesia multinacional-associada” — no golpe civil-militar de 1964.

Por ter articulado uma grande estrutura, com financiamento financeiro interno e externo (dos Estados Unidos), o Ipes e o Ibad pavimentaram a estrada do golpe — que, ao desestabilizar o governo de Jango, “foi inevitável”.

O historiador Daniel Aarão Reis Filho assinala, de acordo com Jorge Ferreira, que “a grande fragilidade do trabalho de Dreifuss é superestimar o controle e o domínio do Ipes e do Ibad sobre o curso dos acontecimentos. (…) Embora a propaganda anticomunista não possa ser desconsiderada, ‘seria simplório imaginar que tudo se limitou a manobras de manipulação’, como se os receptores das mensagens, em particular as classes médias, recebessem de maneira passiva a propaganda ideológica. Para Argelina Figueiredo, ‘a conspiração foi uma condição necessária mas não suficiente para o sucesso do golpe em 1964’”.

Rodrigo Patto Sá Motta, historiador: “O que unificou as elites contra o presidente foi o temor da aliança entre Jango e as esquerdas” | Foto: Reprodução

O historiador Rodrigo Patto Sá Motta pontua que “há algum exagero na suposição de que o temor ao comunismo fosse meramente uma manobra utilizada por conspiradores ocultos, visando a conduzir uma massa de tolos em direção ao golpe”. Para o pesquisador, assinala Jorge Ferreira, “é exagerada a hipótese de que os grupos conservadores tinham no golpe a sua principal opção política”.

“Como explicar”, inquire Jorge Ferreira, “a grande mobilização e a quantidade de dinheiro investido pelos direitistas do Ipes-Ibad nas eleições parlamentares de outubro de 1962? Se a opção era pelo golpe, não haveria motivo para tantos investimentos no pleito. Para Rodrigo Motta, a extrema direita anticomunista estava isolada no espectro político do país. Os próprios setores conservadores nos meios militares, políticos e empresariais não se animavam em romper com o processo eleitoral — meio privilegiado, porque legítimo, para alcançar o poder”.

Portanto, continua Jorge Ferreira, “o que unificou as elites contra o presidente foi o temor da aliança entre Jango e as esquerdas, abrindo possibilidades para ascensão ao poder dos comunistas”.

Jorge Ferreira, professor da UFF: revolta dos marinheiros detonou o mecanismo golpista | Foto: Reprodução

Segundo Jorge Ferreira, “a aliança de Jango com as esquerdas no comício da Central do Brasil [em março de 1964] e a revolta dos marinheiros — a fagulha que detonou o mecanismo golpista, na avaliação do autor [Rodrigo Patto Sá Motta] — permitiram que instituições que até então defendiam o regime, à exemplo da imprensa, aderissem à mobilização anticomunista. O medo do comunismo unificou as elites”.

“O objetivo [da cúpula golpista militar] não era instituir uma ditadura, mas afastar Goulart e, com isso, a ameaça de um processo revolucionário.” Rodrigo Motta destaca que “o anticomunismo não era um recurso demagógico e fantasioso, mas um efetivo temor de que a radicalização esquerdista beneficiasse os comunistas. ‘O objetivo principal não era dar um golpe, mas combater os comunistas e a ameaça revolucionária. O recurso à solução autoritária era um meio para eliminar tais perigos, não um fim’”.

O historiador Jacob Gorender sugere que, “até dezembro de 1963 ou mesmo em janeiro de 1964, o golpe não era inevitável”. Só se tornou inevitável “no início de 1964”.

Gorender postula que, “a partir de novembro de 1963, Goulart deu uma guinada e passou a se entender com as forças de esquerda, com o PCB em particular, germinando também uma ideia golpista. Jango se preparava francamente para o que se chama de continuísmo”. Em janeiro de 1964, Luiz Carlos Prestes disse “que a Constituição deveria ser reformada para possibilitar a reeleição do presidente. Era um convite ao golpe, neste caso já com motivação esquerdista aparente. Havia golpismo, não só da direita, mas também da esquerda”, enfatiza o pesquisador, que foi membro do PCB.

Jacob Gorender: o golpe, até 1963, não era inevitável | Foto: Reprodução

Gorender afirma que os golpistas não estavam muito bem articulados. “Não corresponde à realidade a ideia de que os conspiradores golpistas possuíam planos perfeitamente elaborados para tudo”.

Golpe não foi da burguesia e da classe média

Jorge Ferreira sustenta que “não houve um centro unificado articulador da conspiração. Os próprios militares usam a expressão ‘ilhas de conspiração’”.

Segundo os pesquisadores Maria Celina D’Araujo, Celso Castro e Glaucio Ary Dillon Soares — que entrevistaram vários militares —, “a opinião militar dominante define o golpe como resultado de ações dispersas e isoladas, embaladas, no entanto, pelo clima de inquietação e incertezas que invadiu a corporação militar”.

Glaucio Soares diz que o golpe não resultou de articulação das elites econômicas. “O golpe foi essencialmente militar: não foi dado pela burguesia nem pela classe média, independentemente do apoio que lhe prestaram. O golpe resultou da conspiração militar com apoio de grupos empresariais brasileiros e não, como é comum supor, uma conspiração das elites dominantes com o apoio dos militares”.

Antonio Lavareda: pesquisa mostra que a maioria dos brasileiros apoiava a reforma agrária em 1964 | Foto: Divulgação / Facebook

O cientista político Antonio Lavareda menciona uma pesquisa do Ibope, feita entre 9 e 26 de março de 1964, com a seguinte pergunta: “Na sua opinião, é ou não é necessária a realização da reforma agrária no Brasil?” 72% dos entrevistados disseram que a reforma agrária era necessária. Apenas 11% disseram que não e 16% não souberam responder. “A opinião favorável à reforma agrária foi positiva em todas as classes sociais, incluindo os ricos e as classes médias.”

Outra pesquisa indicou que 45% dos eleitores preferiam o centro político. 23% ficaram com a direita e 19% com a esquerda. 13% não souberam responder. A maioria dos brasileiros apoiava as reformas de Jango. As pesquisas do período sinalizam que a sociedade via as reformas como necessárias e defendia a preservação da legalidade democrática. Jorge Ferreira anota que, “quando, no fim de 1963 e início de 1964, as esquerdas passaram a menosprezar e a questionar os fundamentos da democracia liberal, instituídos pela Constituição de 1946, seus apelos não encontraram respaldo na sociedade. Para Antonio Lavareda, o acirramento dos conflitos ideológicos não teve força suficiente para cindir a sociedade brasileira em polos antagônicos, esvaziando o centro político. ‘A radicalização, que terminaria por destruir a ordem constitucional, era apenas uma opção estragética das elites desinteressadas no jogo democrático’”.

Maria Celina D’Araujo defende que “o golpe militar foi contra o PTB, sua prática política e suas lideranças. O partido surgiu aos olhos dos militares como um inimigo a ser combatido”.

Waldir Pires, consultor da República: reformas de base eram aceitas pela maioria da sociedade | Foto: Reprodução

Waldir Pires, consultor da República em 1964, declara que as reformas de base (como a agrária) eram aceitas pela maioria da sociedade, portanto “não se tratava da implantação do socialismo”. Porém, “os grupos interessados nas mudanças econômicas e sociais não tiveram clareza para definir um projeto que as tornasse viáveis politicamente”. Ao escapar do campo institucional, as esquerdas se perderam e levaram Jango de embrulho.

O brigadeiro Francisco Teixeira, do PCB e aliados de Jango, afirma, no registro de Jorge Ferreira, “que, se a esquerda tivesse tido uma compreensão da importância da manutenção da democracia, ‘nós teríamos vencido aquela etapa e teríamos saído para outra”. O membro da Aeronáutica assegura que as Forças Armadas “têm a tendência de defender a legalidade. Os militares são sensíveis a pensamento dominante da sociedade civil”.

Quebra da hierarquia e da disciplina

Membro do Partido Comunista Brasileiro e líder sindical, Hércules Corrêa disse que, em 1964, os comunistas não valorizavam a “questão democrática”. Darcy Ribeiro admite que as esquerdas apostavam no caos. O militar Eduardo Chuay frisa que “as esquerdas deram armas para os golpistas, insuflando a quebra da hierarquia e da disciplina” entre os militares.

Eduardo Chuay garante que “90% dos oficiais do Exército eram, em termos políticos, tidos como neutros. O restante do Exército era composto de 5% de militares golpistas históricos de direita e outros 5% de nacionalistas, esquerdistas, reformistas ou janguistas. Diante de tantas quebras das regras de hierarquia e disciplina [a insurreição dos sargentos e a revolta dos marinheiros], os 90% passaram a dar razão aos 5% golpistas, isolando os 5% reformistas”.

Darcy Ribeiro: “Jango só foi entendido pela direita” | Foto: Reprodução

O jornalista Carlos Castelo Branco observou que Jango tinha apoio militar considerável, o que prova “o número de oficiais destituídos de comando e transferidos para a reserva após o golpe”. “Parece fora de dúvida que o episódio que fez pender a balança em favor dos seus adversários foi a crise da Marinha. A anistia dos marinheiros [que haviam se rebelado] foi desastrosa para o governo”, ao esfacelar “os princípios básicos da hierarquia e disciplina”.

Segundo Jorge Ferreira, “foi a revolta dos marinheiros o momento em que a maioria legalista nas Forças Armadas cedeu aos argumentos dos grupos golpistas, situação agravada pela ida do presidente ao Automóvel Clube, ao lado de sargentos, marinheiros, fuzileiros navais e, inclusive, do Cabo Anselmo. Tratou-se, para a oficialidade, de uma questão de sobrevivência da própria instituição”.

Para Jorge Ferreira, “radicalizadas e embriagadas pela possibilidade de alcançarem o poder, as esquerdas não perceberam que tinham Goulart como um aliado. Gregório Bezerra [do PCB) diz que ‘Jango era pela reforma agrária e facilitou muito o movimento camponês’”.

Herbert “Betinho” de Souza: “Não soubemos fazer uma leitura de Jango fundamentalmente como aliado” | Foto Reprodução

“Não soubemos fazer uma leitura do Jango fundamentalmente como aliado. A AP chegou a ter ministros e assessores de primeiro escalão do governo, como Paulo de Tarso, Almino Affonso e Plínio Arruda Sampaio”, admitiu Herbert “Betinho” de Souza. Trata-se de uma avaliação na época, pois “as esquerdas não viam Goulart como aliado, mas como um entrave” à radicalização.

Marcelo Cerqueira, do PCB e vice-presidente da UNE, em 1964, diz que, “na questão estudantil não havia governo mais democrático do que o de Jango. O ministro [da Educação] Paulo de Tarso foi escolhido com consulta a nós. Quando o Jango nomeou o Darcy Ribeiro para o MEC, perguntou a nós”.

Jorge Ferreira sintetiza a posição de Waldir Pires: “O presidente nunca foi um radical. Ele era um articulador das reformas, mas não da revolução. Havia nele uma enorme coerência. Não se encontra em sua trajetória política uma única posição ou atitude reacionária. O que as esquerdas cobravam dele, como o rompimento institucional para realizar as reformas, ele ‘nunca estava disposto a fazer, nunca esteve, não era do seu temperamento, de sua formação. Ele era um homem do acordo, mas acordo que avança. Não se conhecem acordos do Jango em que ele tenha retrocedido’”.

Darcy Ribeiro afiança que “Jango só foi entendido realmente pela direita. A direita verificou que ele era um perigo, e se unificou toda para derrubá-lo”. O antropólogo e escritor avalia João Goulart como “pacifista, um conciliador, cujo objetivo era alcançar as mudanças econômicas e sociais pela persuasão”.

“O que Jango propunha era tão-somente um capitalismo progressista como o norte-americano”, ressalta Darcy Ribeiro. “‘Em sua imaturidade e alienação’, as esquerdas não perceberam que haviam alcançado o poder”, frisa.

Almino Affonso: Jango era o político “que mais defendia a reforma agrária” | Foto: Reprodução

Almino Affonso assegura que Jango era o político “que mais defendia a reforma agrária”. Chegou a colocar duas de suas fazendas para o programa da reforma agrária. Uma delas em Uruaçu, em Goiás.

Hugo de Faria, auxiliar e amigo do presidente, sustenta que Jango recusou-se a resistir ao golpe não por medo. “Negou-se a resistir porque não queria ser o motivo para deflagrar uma guerra civil no país. ‘Ele queria negociar, não queria impor’.”

Jorge Ferreira escreve que “a guerra civil era o grande receio de Goulart”. O presidente temia também que, com o apoio de forças americanas, os militares brasileiros procedessem a uma carnificina no Brasil. O político gaúcho quis evitar “derramamento de sangue de inocentes”. No exílio, ele disse que o “sangue a ser derramado seria o de civis, não de militares”.

Brizola relata que, “se o presidente ‘pudesse imaginar a natureza do regime que se instalaria no país, seu procedimento teria sido outro. Ele agiu com muita boa-fé. Ninguém tinha ideia da ferocidade do regime que se estabeleceria’”.

Paulo Markun, jornalista, escritor e pesquisador: “Jango deve ser valorizado por aquilo que não fez: jogar o sangue de outros na luta política”  | Foto: Companhia das Letras

O jornalista Flávio Tavares afirma que a “não resistência era incorreta e absurda em termos políticos, mas correta e acertada em termos humanos”.  O jornalista e escritor Zuenir Ventura corrobora: “Jango teve um dos seus momentos mais bonitos ao evitar aquilo que imaginava que viria a ser uma guerra civil com 1 milhão de mortos”. O jornalista Paulo Markun segue pelo mesmo caminho: “Jango deve ser valorizado por aquilo que não fez: jogar o sangue de outros na luta política”.

O fato é que, analisa Jorge Ferreira, “o governo trabalhista, a sociedade brasileira e mesmo os patrocinadores da derrocada da democracia não perceberam que, em abril de 1964, ocorrera um golpe de tipo novo”. Os militares — parte deles, como o general Arthur da Costa e Silva — não conquistaram o poder para devolvê-lo a curto prazo aos civis. Tanto que, além de Jango e Juscelino Kubitschek, cassaram também Carlos Lacerda, espécie de “general civil” nos inícios da ditadura (1964-1985).

Jango é apelido de João no Sul do país

¹ João Belchior Marques Goulart nasceu em 1919, no Rio Grande do Sul, e morreu em 1976, aos 57 anos, na Argentina, de problemas cardíacos. A tese de que teria sido assassinado por integrantes da ditadura civil-militar integra o rol das teorias conspiratórias, possivelmente. João Goulart “passou a ser chamado de Jango desde criança, apelido de João muito comum no Sul do país”, relata Jorge Ferreira. Ele foi casado com Maria Thereza Goulart, uma das mulheres mais bonitas do país. O general Assis Brasil dizia a João Goulart que poderia evitar um golpe de Estado porque dispunha de um azeitado “dispositivo militar”, que, na verdade, era uma ficção. Mais tarde, no exílio, quando Assis Brasil foi visitar Jango, Maria Thereza, uma mulher de fibra, deu-lhe um tapa na cara. A história é relatada na excelente biografia “Uma Mulher Vestida de Silêncio — A Biografia de Maria Thereza Goulart” (Record, 644 páginas), de Wagner William.

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