Óssip Mandelstam (1891-1938) escreveu um poema que, de tão poderoso, incomodou Ióssif Stálin. O ditador de bigodes de barata mandou “conservar mas isolar” o poeta russo. Mas no exílio interno, vivendo em circunstâncias muito difíceis, o bardo morreu, aos 47 anos. (No Brasil e em Portugal é usual “Óssip” e não “Ósip”.)

Para contemporizar, Mandelstam escreveu uma ode a Stálin, mas o ditador não o perdoou.

“Cuardenos de Vorónezh” circula na Argentina numa edição da Editora Blatt & Ríos, com 129 páginas e tradução, direta do russo, de Fulvio Franchi (professor da Universidade de Buenos Aires), autor da introdução. A edição, com notas esclarecedoras, inclui a “Ode” a Stálin.

O poema sobre “o montanhês do Kremlin”, de 1933, figura, na página 11, como, por assim dizer, um brinde do tradutor aos leitores. Um trecho: “Vivimos sin sentir el país bajo nosotros,/ nuestras voces a diez pasos no se oyen,/ pero si alcanza la gente para media charla/ recuerdan al montañés del Kremlin”.

Uma tradução brasileira, de Astier Basílio (que capta bem a mescla de cômico e trágico do poema — como se fosse um riso dorido): “Nós vivemos sem estar mais sentindo o país,/ A dez passos não se ouve o que nossa voz diz./ Meia prosa e já basta que lembrem/ O matuto da serra no Kremlin./ Os seus dedos são vermes sebentos, obesos./ Bigodões de barata sorrindo/ E os coturnos brilhando de lindo./Mas lhe cerca a ralé dos chefes cabeçudos/ E ele brinca com os seus zumbis de faz-tudo./ Um que chora, um que mia e soluça./ Ele bichopapoa e cutuca,/ Como casco de ferro, ato em ato ele atesta:/Em um olho, em um cílio, em um púbis, na testa./ Toda pena de morte — uma amora,/ Peito largo de quem vem da Geórgia”.

Stálin, o assassino, e Óssip Mandelstam, o poeta | Fotos: Reproduções

Amigo e admirador de Mandelstam, Boris Pasternak, mais poeta do que prosador, qualificou a divulgação do poema sobre Stálin “como um ‘suicídio’”. Talvez um convite ao assassinato… do poeta.

A ordem de Stálin: “Asilar [ou isolar], mas preservar”. Preso, em 1934, Mandelstam acabou liberado, mas o governo comunista decidiu que só poderia viver “em regiões distantes das cidades importantes”, como Moscou e São Petersburgo.

Em Cherydin, Mandelstam tentou se suicidar pulando da janela de um sanatório. De lá, o poeta e sua mulher, Nadiejda, foram para a cidade de Vorónezh. “Consciente de que seu fim se aproximava, Mandelstam se apressou a escrever poemas em três cadernos, que foram conservados por sua mulher e outras pessoas”, conta Fulvio Franchi. “‘Cuadernos de Vorónezh’ são o livro do exílio e a iminência do fim.”

“A forma dos poemas dos ‘Cuadernos de Vorónezh’ é muito variada. (…) A poesia de Mandelstam é rimada. E quanto à métrica, Mandelstam recorre a distintas combinações, inclusive ao verso livre em alguns poemas”, assinala Fulvio Franchi.

“Na tradução se deu prioridade à obtenção de um ritmo, que é a essência do discurso lírico. Se respeitou a organização das estrofes (quantidade de estrofes, quantidade de versos por estrofe)”, sublinha o especialista.

Fulvio Franchi frisa que, “no caso dos neologismos, que é um aspecto inovador da poesia dos últimos anos de Mandelstam, bastante parecido aos princípios das escolas poéticas de vanguarda da segunda década do século 20, se tentou criar equivalentes em espanhol”.

Óssip Mandelstam e Nadiéjda Mandesltam | Foto: Reprodução

Nadiejda traduzia (depois, foi proibida de trabalhar) e Mandelstam produzia programas de rádio e dirigia o teatro de Vorónezh.

“Em Vorónezh era impossível conseguir papel decente, por isso anotaram os poemas em cadernos escolares.” Fulvio Franchi diz que “a intenção de Mandelstam” era “criar uma ‘obra’ e não uma simples antologia de poemas”.

Com novos processos, em 1937, Nadiejda e Mandelstam tiveram de voltar a Moscou. “Já sabíamos que a única salvação era a morte”, escreveu Nadiezhda (ou Nadiejda) nas suas memórias “Contra Toda Esperança”.

Em 1938, na segunda detenção, o regime stalinista proibiu Nadiejda de acompanhá-lo. Havia sido condenado a cinco anos de prisão.

No dia 17 de dezembro de 1938, Mandelstam morreu. Com Stálin morto, corroído pelos vermes, diria Machado de Assis, Mandelstam “foi parcialmente reabilitado”, em 1956. Porém, só foi absolvido completamente sob o governo de Mikhail Gorbachev, na glasnost, em 28 de outubro de 1987.

Os “Poemas de Vorónezh” são póstumos. (Fulvio Franchi traduziu também “Evguiêni Oniéguin”, de Aleksandr Púchkin, direto do russo, para a Editora Colihue Clásica)

Óssip Mandelstam: preso por causa de um poema | Foto: Reprodução

O poeta russo Óssip Mandelstam tem sido bem traduzido no Brasil (e em Portugal, por Nina Guerra e Filipe Guerra) por, entre outros, Astier Basílio, Paulo Bezerra, Haroldo de Campos e Augusto de Campos (do “Caderno de Vorôniej”: “Como pedra do céu na terra, um dia,/ Um verso condenado caiu, sem pai, sem lar;/ Inexorável — a invenção da poesia/ Não pode ser mudada, e ninguém a irá julgar”).

Varlam Chalámov escreveu um belo e doloroso conto, “Xerez”, sobre a morte de Mandelstam. Pode ser conferido no livro “Contos de Kolimá” (Editora 34, 303 páginas, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich).

Fulvio Franchi: tradutor e professor da Universidade de Buenos Aires | Foto: Facebook

A brasileira Noemi Jaffe escreveu um extraordinário romance, “O Que Ela Sussurra” (Companhia das Letras, 155 páginas) sobre Nadiejda Mandelstam. Com sua memória fabulosa, ela decorou poemas do marido e salvou-os do esquecimento.

Quem venceu: Stálin ou Mandelstam? Não sei. Diria de outra maneira: Mandelstam é consagrado, em todo o mundo, como um grande poeta. Por sua vez, Stálin ficou na história como um grande… assassino. Cada um, portanto, com seu, digamos assim, destino. Óssip morreu só, doente e faminto. Apesar de poderoso, Stálin morreu abandonado, desassistido, urinado.

E-mail: [email protected]

Leis mais sobre livros publicados na Argentina