Numa visita a Buenos Aires, entre abril e maio, estive na 48ª Feria do Libro de Buenos Aires e em várias livrarias — Eterna Cadência, Guadalquivir, Libros de Pasaje, entre outras — e sebos, encontrei vários livros que, editados na Argentina e na Espanha, ainda não foram publicados no Brasil. Então, estou elaborando uma lista com algumas sugestões. Até agora, com as indicações desta semana, chegam 35 as obras listadas e comentadas — com traduções de minha autoria. Oxalá alguma editora patropi decida publicar alguns dos livros listados.

Quero contar uma cousa pessoal. O livro de cartas de Tsvietáieva, Rilke e Pasternak foi o primeiro que adquiri na 48ª Feria del Libro de Buenos Aires. No mesmo dia, li várias páginas, entusiasmado com sua beleza poética, humana. Quando eu e Candice fizemos as malas, pensei: “E se sumirem?” Então, coloquei o livro na minha mochila. Felizmente, não perdemos nenhuma mala.

O comentário sobre o livro “Malestar, Sujetos y Educación”, organizado por Yesica Molina e Perla Zelmanovich, é de autoria de Candice Marques de Lima, professora-doutora da Universidade Federal de Goiás e minha companheira de jornadas pela América Latina.

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El Hombre Más Triste — Daniel Titinger

César Vallejo (1892-1938 — viveu 47 anos) é o maior poeta peruano. “Trilce” (de 1922, mas teria sido escrito em 1920) é considerado um dos mais importantes livros de poesia da história. Trata-se de uma obra modernista, inventiva, rara. Há também “Los Heraldos Negros” (“Os Arautos Negros”, de 1919), “Espanha, Afasta de Mim Este Cálice” e “Poemas Humanos” (póstumos, saíram pela primeira vez em 1939). Escreveu também prosa, mas, acima de tudo, era poeta.

O escritor e crítico César Aira diz que o conto “Más allá de la vida y de la muerte” é extraordinário. “‘Habla Salvaje’, novelita de meia centena de páginas, é magistral, tortuosa e estranha, freudiana, sobre o tema do duplo demoníaco, em um ambiente rústico do mundo primitivo”. Vallejo escreveu crônicas e peças teatrais.

Sua poesia mais, digamos, avançada — como o extraordinário “Trilce” — foi publicada no Peru, em edições modestas, quando ele era jovem. “O momento mais alto do poeta é ‘Trilce’, que parece escrito em uma língua estrangeira”, assinala César Aira no livro “Diccionario de Autores Latinoamericanos” (Paidós, 703 páginas).

Espantado com a qualidade de “Trilce”, o poeta, escritor e jornalista César González-Ruano quis saber quais era as matrizes literárias — as influências — de Vallejo. O livro, obra madura, é de 1922, o mesmo ano de “A Terra Devastada”, de T. S. Eliot.

Vallejo esclarece que, quando escreveu “Trilce”, não conhecia os modernos poetas franceses. Entretanto, formado em Letras, havia lido Verlaine e Baudelaire, possivelmente em 1913. E, bem provável, Mallarmé, sempre um ponto de partida dos modernos.

César González-Ruano estranha o fato de sua poesia “verbalista”, com conhecimentos múltiplos do fazer poético, não ser filha dos modernistas europeus. Por isso, inquire: “Como pôde fazer este livro?”

O bardo peruano revela que conhecia “bem os clássicos espanhóis” e observa que, de “Los Heraldos Negros” para “Trilce”, deu um salto qualitativo. O que mostra que tinha plena conhecimento de seu fazer poético, de seus progressos criativos. “Creio, honradamente, que o poeta tem um sentido histórico do idioma e tenta buscar, com justeza, sua expressão”, disse a César González-Ruano.

Rubén Darío era o poeta de devoção de Vallejo, pelo menos até certo momento. “O recitava de memória.” Como poeta, começou imitando Lope da Vega, Tirso de Molina, Garcilaso e Góngora.

O poeta relata a César González-Ruano: “A precisão me interessa até à obsessão. Se você me perguntar qual é a minha maior aspiração neste momento, não poderia dizer mais do que isto: a eliminação de toda palavra de existência acessória, a expressão pura, que hoje melhor do que nunca haveria de buscá-la em substantivos e nos verbos… Já que não se pode renunciar às palavras”.

“El Homem Más Triste — Retrato del Poeta César Vallejo” (Ediciones Universidad Diego Portales, 259 páginas), do jornalista e escritor peruano Daniel Titinger, não é uma biografia alentada, mas é esclarecedora, inclusive a respeito do motivo da morte do bardo. Há mistérios a respeito da vida do peruano-parisiense. O escritor holandês Cees Nooteboom disse: “A vida de César Vallejo começa no incerto”. Por isso suas biografias são, de alguma maneira, “romances-factuais”.

Há biografias que contam histórias que, ainda que não cruciais para entender a vida e a obra do perfilado, são ao menos divertidas. Titinger relata que Vallejo e os amigos Emile Savitry e Gonzalo More, numa sessão espírita, “invocaram fantasmas [espíritos] para que assassinassem o general Franco”, o futuro ditador da Espanha.

O poeta mudou-se para Paris, em 1923, e nunca mais voltou ao Peru (esteve na Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola, e escreveu belos poemas. Também esteve na União Soviética de Stálin, e, entusiasmado, filiou-se ao Partido Comunista Espanhol). Caminhou faminto pelas ruas da cidade-luz. Chegou a trabalhar como cronista para jornais, ganhando quase nada.

Por que não voltou ao Peru? Primeiro, sua mãe, a pessoa que mais amou — era o caçula numa família de 12 filhos —, não estava mais viva. Segundo, conta-se a história de que havia colaborado numa baderna que resultou num incêndio na propriedade de um potentado peruano, com influência na Justiça local. Se voltasse, poderia ser preso. Terceiro, certa vez, sua mulher, a francesa Georgette Marie Philippart Travers, sonhou que, durante uma revolta peruana, o corpo de Vallejo jazia, ensanguentado, numa rua. Supersticioso, o poeta teria desistido de retornar à terra natal.

Quando Vallejo nasceu, sua mãe quase morreu. Quando ela melhorou, o pai do poeta disse: “Senhora Santitos, nosso filho é meu retrato vivo — a testa e tem grandes entradas. Será muito inteligente e viajará para o estrangeiro. Este é meu prognóstico, peço a Deus que me conceda esta graça”.

César Vallejo, em Paris | Foto: Reprodução

De alguma maneira, Deus (ou o destino, ou a incerteza da vida) concedeu a graça. Vallejo era uma criança inteligente e com menos de 30 anos, com a publicação de “Trilce”, era um poeta de imenso valor. Depois, radicou-se em Paris — e está enterrado no Cemitério de Montparnasse, o mesmo onde mora Julio Cortázar.

Como valorar Vallejo? Basta indicar que é um poeta do nível de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto.

Febre tifoide pode ter matado Vallejo

A causa da morte de Vallejo, mesmo com o esclarecimento de Titinger, permanece um mistério. Disseram que a malária o matou. Depois, mencionaram sífilis. Em seguida, uma infecção intestinal.

Titinger consultou um dos médicos mais importantes do Peru, Eduardo Gotuzzo. Examinando os exames de Vallejo, descartou tanto malária quanto sífilis.

“A suspeita de infecção intestinal sugere que Vallejo morreu de febre tifoide”, sugere Eduardo Gotuzzo.

Traduções da poesia de César Vallejo

O que importa do poeta — artesão da alma que usa a palavra como cinzel — é mais a poesia do que sua vida. Quer dizer: sua poesia é sua vida e é, de alguma maneira, a história condensada e liricizada dos demais seres humanos. Pode-se ler o, por vezes, hermético Vallejo em espanhol? Sim, com certa concentração, é possível. Há uma excelente edição crítica, organizada por Américo Ferrari, publicada com o título de “Obra Poética (Scipione Cultural, 760 páginas). Adquiri meu exemplar pelo Estante Virtual.

Em português temos “Poesia Completa” (RioArte, 260 páginas), com tradução de Thiago de Mello, apresentação de Geraldo Mello Mourão e ensaio de Roberto Fernandez Retamar. Não se trata de uma tradução inventiva? Pode não ser, mas há bons momentos. “Poemas Humanos” saiu pela Editora 34 (325 páginas), com tradução de Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco (autor da apresentação e das notas). A versão e a edição (bilíngue) são de alta qualidade. O romance “Tungstênio” saiu pela Iluminuras (167 páginas), com tradução, prefácio e notas de Jorge Henrique Bastos.

Transcrevo duas traduções do primeiro poema de “Trilce”.

A versão de Haroldo de Campos (“Folhetim — Poemas Traduzidos”, edição da “Folha de S. Paulo”): “Quem faz tanta balbúrdia,/ e nem deixa/ testamentar as ilhas que vão/ perdurando.// Um pouco mais de consideração/ enquanto será tarde, cedo,/ e se aquilhatará melhor/ o guano, a simples fedorina/ tesórea/ que sem querer oferece,/ no insular coração,/ alcatraz salobro, a cada hialoidea/ rajada.// Um pouco mais de consideração/ e o estrumilho líquido,/ seis da tarde/ DOS MAIS SOBERBOS BEMÓIS// E a península para/ pelas costas, remordaçada,/ impertérrita/ na linha mortal do equilíbrio.” (Quase acentuei “para” — “E a península pára”.)

A versão de Thiago de Mello: “Quem faz tanto alarido, e nem deixa/ legar as ilhas que ainda restam.// Um pouco mais de consideração/ enquanto será tarde, cedo,/e se aquilatará melhor/ o guano, o simples fedor precioso/ que sem querer oferece,/ no coração insular,/ o salobre pelicano, a cada vidrosa/ rajada./ Um pouco mais de consideração/ e o adubo líquido, seis da tarde/ DOS MAIS SOBERBOS BEMÓIS.// E a península estanca/ de dorso, amordaçada, impassível,/ sobre a linha mortal do equilíbrio”.

Há diferenças de fundo entre as duas traduções? É possível sugerir que a de Thiago de Mello é mais literal, o que não quer dizer ruim, e a de Haroldo de Campos é, por assim dizer, inventiva. O poeta concreto “introduz” as palavras não convencionais “remordaçada” e “impertérrita” e o bardo amazonense prefere “amordaçada” e “impassível”.

Ivo Barroso traduziu três poemas de Vallejo. Estão no livro “O Torso e o Gato” (Record, 223 páginas). Há uma bela de tradução do poema “Os arautos negros” no livro Antologia Poética Íbero-Americana” (277 páginas), com traduções de Fernando Mendes Vianna, José Jeronymo Rivera e Anderson Braga Horta. Trecho inicial: “Há golpes na vida tão fortes… Eu nem sei!/ Golpes como do ódio de Deus; como se ante eles/ a ressaca de quanto foi sofrido/ se empoçara na alma… Eu nem sei!”.

Aurélio Buarque de Holanda Ferreira traduziu o poema “Massa” (“Grandes Vozes Líricas Hispano-Americanas”, Nova Fronteira, 385 páginas): Ao findar a batalha,/ e morto o combatente, dirigiu-se-lhe um homem/ e lhe disse: — “Não morra; te amo tanto!”/ Mas o cadáver continuou morrendo.// Acercaram-se dois e repetiram-lhe:/ — “Não nos deixes! Coragem! Volta à vida!” Mas o cadáver continuou morrendo.// Vieram a ele vinte, cem, mil, quinhentos mil,/ clamando: — “Tanto amor, e não poder nada contra a morte!”/ Mas o cadáver continuou morrendo.// Já milhões de pessoas o rodeavam,/ com a mesma rogativa: — “Fica, irmão!”/ Mas o cadáver continuou morrendo.// Rodearam-no, no por fim, todos os homens/ da Terra; e, vendo-os, o cadáver, triste, emocionado,/ a pouco e pouco se incorpora,/ abraça o primeiro homem; põe-se a andar…

Vallejo apreciava neologismos, como “Trilce”, sua criação. Thiago de Mello apresenta duas explicações para a palavra. Primeiro, cita o poeta e crítico espanhol Juan Larrea, amigo do bardo peruano: o termo seria uma composição de “triste” e “dulce”. Segundo, na gráfica, o poeta, hesitante sobre o título, pergunta por qual preço seria vendido o exemplar. Quando disseram “vai ser vendido a três soles”, o bardo teria dito: “Então, vai se chamar Trilce”.

Numa entrevista, César González-Ruano, do diário “El Heraldo”, pergunta: “O que quer dizer ‘Trilce’?” Vallejo respondeu: “Ah, pois ‘Trilce’ não quer dizer nada. Não encontrava, em meu afã, nenhuma palavra com dignidade de título, e então inventei: ‘Trilce’. Não é uma bela palavra? Pois já não pensei mais: ‘Trilce’”.

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Cuadernos de Vorónezh — Óssip Mandelstam

Óssip Mandelstam (1891-1938) escreveu um poema que, de tão poderoso, incomodou Ióssif Stálin. O ditador de bigodes de barata mandou “conservar mas isolar” o poeta russo. Mas no exílio interno, vivendo em circunstâncias muito difíceis, o bardo morreu, aos 47 anos. (No Brasil e em Portugal é usual “Óssip” e não “Ósip”.)

Para contemporizar, Mandelstam escreveu uma ode a Stálin, mas o ditador não o perdoou.

“Cuardenos de Vorónezh” circula na Argentina numa edição da Editora Blatt & Ríos, com 129 páginas e tradução, direta do russo, de Fulvio Franchi (professor da Universidade de Buenos Aires), autor da introdução. A edição, com notas esclarecedoras, inclui a “Ode” a Stálin.

O poema sobre “o montanhês do Kremlin”, de 1933, figura, na página 11, como, por assim dizer, um brinde do tradutor aos leitores. Um trecho: “Vivimos sin sentir el país bajo nosotros,/ nuestras voces a diez pasos no se oyen,/ pero si alcanza la gente para media charla/ recuerdan al montañés del Kremlin”.

Uma tradução brasileira, de Astier Basílio (que capta bem a mescla de cômico e trágico do poema — como se fosse um riso dorido): “Nós vivemos sem estar mais sentindo o país,/ A dez passos não se ouve o que nossa voz diz./ Meia prosa e já basta que lembrem/ O matuto da serra no Kremlin./ Os seus dedos são vermes sebentos, obesos./ Bigodões de barata sorrindo/ E os coturnos brilhando de lindo./Mas lhe cerca a ralé dos chefes cabeçudos/ E ele brinca com os seus zumbis de faz-tudo./ Um que chora, um que mia e soluça./ Ele bichopapoa e cutuca,/ Como casco de ferro, ato em ato ele atesta:/Em um olho, em um cílio, em um púbis, na testa./ Toda pena de morte — uma amora,/ Peito largo de quem vem da Geórgia”.

Stálin, o assassino, e Óssip Mandelstam, o poeta | Fotos: Reproduções

Amigo e admirador de Mandelstam, Boris Pasternak, mais poeta do que prosador, qualificou a divulgação do poema sobre Stálin “como um ‘suicídio’”. Talvez um convite ao assassinato… do poeta.

A ordem de Stálin: “Asilar [ou isolar], mas preservar”. Preso, em 1934, Mandelstam acabou liberado, mas o governo comunista decidiu que só poderia viver “em regiões distantes das cidades importantes”, como Moscou e São Petersburgo.

Em Cherydin, Mandelstam tentou se suicidar pulando da janela de um sanatório. De lá, o poeta e sua mulher, Nadiejda, foram para a cidade de Vorónezh. “Consciente de que seu fim se aproximava, Mandelstam se apressou a escrever poemas em três cadernos, que foram conservados por sua mulher e outras pessoas”, conta Fulvio Franchi. “‘Cuadernos de Vorónezh’ são o livro do exílio e a iminência do fim.”

“A forma dos poemas dos ‘Cuadernos de Vorónezh’ é muito variada. (…) A poesia de Mandelstam é rimada. E quanto à métrica, Mandelstam recorre a distintas combinações, inclusive ao verso livre em alguns poemas”, assinala Fulvio Franchi.

“Na tradução se deu prioridade à obtenção de um ritmo, que é a essência do discurso lírico. Se respeitou a organização das estrofes (quantidade de estrofes, quantidade de versos por estrofe)”, sublinha o especialista.

Fulvio Franchi frisa que, “no caso dos neologismos, que é um aspecto inovador da poesia dos últimos anos de Mandelstam, bastante parecido aos princípios das escolas poéticas de vanguarda da segunda década do século 20, se tentou criar equivalentes em espanhol”.

Óssip Mandelstam e Nadiéjda Mandesltam | Foto: Reprodução

Nadiejda traduzia (depois, foi proibida de trabalhar) e Mandelstam produzia programas de rádio e dirigia o teatro de Vorónezh.

“Em Vorónezh era impossível conseguir papel decente, por isso anotaram os poemas em cadernos escolares.” Fulvio Franchi diz que “a intenção de Mandelstam” era “criar uma ‘obra’ e não uma simples antologia de poemas”.

Com novos processos, em 1937, Nadiejda e Mandelstam tiveram de voltar a Moscou. “Já sabíamos que a única salvação era a morte”, escreveu Nadiezhda (ou Nadiejda) nas suas memórias “Contra Toda Esperança”.

Em 1938, na segunda detenção, o regime stalinista proibiu Nadiejda de acompanhá-lo. Havia sido condenado a cinco anos de prisão.

No dia 17 de dezembro de 1938, Mandelstam morreu. Com Stálin morto, corroído pelos vermes, diria Machado de Assis, Mandelstam “foi parcialmente reabilitado”, em 1956. Porém, só foi absolvido completamente sob o governo de Mikhail Gorbachev, na glasnost, em 28 de outubro de 1987.

Os “Poemas de Vorónezh” são póstumos. (Fulvio Franchi traduziu também “Evguiêni Oniéguin”, de Aleksandr Púchkin, direto do russo, para a Editora Colihue Clásica)

Óssip Mandelstam: preso por causa de um poema | Foto: Reprodução

O poeta russo Óssip Mandelstam tem sido bem traduzido no Brasil (e em Portugal, por Nina Guerra e Filipe Guerra) por, entre outros, Astier Basílio, Paulo Bezerra, Haroldo de Campos e Augusto de Campos (do “Caderno de Vorôniej”: “Como pedra do céu na terra, um dia,/ Um verso condenado caiu, sem pai, sem lar;/ Inexorável — a invenção da poesia/ Não pode ser mudada, e ninguém a irá julgar”).

Varlam Chalámov escreveu um belo e doloroso conto, “Xerez”, sobre a morte de Mandelstam. Pode ser conferido no livro “Contos de Kolimá” (Editora 34, 303 páginas, tradução de Denise Sales e Elena Vasilevich).

A brasileira Noemi Jaffe escreveu um extraordinário romance, “O Que Ela Sussurra” (Companhia das Letras, 155 páginas) sobre Nadiejda Mandelstam. Com sua memória fabulosa, ela decorou poemas do marido e salvou-os do esquecimento.

Quem venceu: Stálin ou Mandelstam? Não sei. Diria de outra maneira: Mandelstam é consagrado, em todo o mundo, como um grande poeta. Por sua vez, Stálin ficou na história como um grande… assassino. Cada um, portanto, com seu, digamos assim, destino. Óssip morreu só, doente e faminto. Apesar de poderoso, Stálin morreu abandonado, desassistido, urinado.

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Malestar, Sujetos y Educación — Yesica Molina e Perla Zelmanovich

O título completo do livro é: “Malestar, Sujetos y Educación — Transpandemia, Efectos y Abordajes”(Lugar Editorial, 294 páginas). Foi organizado por Yesica Molina e Perla Zelmanovich

A Argentina é um dos três países – os outros são Brasil e França – onde a psicanálise tem mais influência. E talvez seja o país em que a cultura seja ainda mais influenciada por essa teoria. Em qualquer livraria em Buenos Aires é possível encontrar várias publicações de autores da psicanálise, desde Freud e Lacan até os contemporâneos.

Durante a Feira de livros de Buenos Aires de 2024, foi lançado o livro “Malestar, sujetos y educación: Transpandemia, efectos y abordajes”, que trata, a partir da teoria psicanalítica, a respeito do trabalho que as autoras e autores que escreveram este livro produziram com docentes.

O livro “Malestar, Sujetos y Educación” trata dos fenômenos educativos a partir da pesquisa desenvolvida pela psicanalista, professora e pesquisadora Perla Zelmanovich, com o objetivo de explorar os aportes que a psicanálise pode oferecer ao campo educativo.

Dessa maneira, o programa de psicanálise e práticas socioeducativas, coordenado por Perla Zelmanovich, busca produzir ferramentas teórico-práticas para abordar o mal-estar estrutural que emerge das práticas profissionais.

No caso da pesquisa que deu origem ao livro, solicita-se aos professores que escolham uma cena educacional e a narrem. Pois, ao mesmo tempo que o docente faz a narrativa, emerge algo que se liga a algum ponto cego que ressoa como uma forma de mal-estar. Esse trabalho é um dispositivo de formação que busca trabalhar com a posição subjetiva profissional.

Os capítulos do livro, escritos por dez pesquisadores, trazem as cenas narradas por docentes durante a pandemia. Na primeira parte, os artigos versam a respeito das insistências iniciais do mal-estar no vínculo educativo virtualizado.

Na segunda, os nove capítulos tratam dos nós críticos do mal-estar pandêmico, como, por exemplo, as questões com o corpo no vínculo educativo virtualizado ou sobre a transferência em tempos de laços forçadamente virtualizados. Na terceira parte, a proposta é nomear as novas cenas do mal-estar na pós-pandemia.

Ao final do livro, há um QR code com as narrativas completas que são citadas nos artigos e que serviram para a articulação da investigação e da elaboração dos nós críticos do mal-estar nas práticas profissionais durante a pandemia.

Nessas narrativas pode-se ler, por exemplo, uma diretora pedagógica que conta sobre os registros que fez nos encontros virtuais da sala de professores da instituição em que trabalha. Surgem as seguintes questões: não se pode ensinar por meio de uma plataforma; as crianças não aprendem dessa forma; os pais não conseguem controlá-los; não estamos preparados.

O livro apresenta aspectos importantes que marcam as questões educacionais durante e após a pandemia e que se universalizam em outros lugares para além da Argentina. E propõe possibilidades de trabalho e de pesquisa com um dispositivo de formação profissional que pode servir para a atuação com docentes e outros profissionais.

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Un Hombre Entre Paréntesis — Mauro Libertella

Goiás tem mais eleitores do que toda a população do Uruguai (3.444.263) e sua área territorial é bem maior (340.257 quilômetros quadrados do Estado e 176.215 km² do país de fala espanhola). Numa visita ao país, costumava ouvir, com frequência: “Somos pequenos, o Brasil é tão grande”.

Entretanto, em termos de qualidade da literatura, o Uruguai é uma espécie de Irlanda da América Latina. Uma lista mínima de escritores notáveis, em ordem alfabética: Cristina Peri Rossi (“La Nave de los Locos”, de 1984, é apontado como “o romance hispano-americano mais importante depois do Boom”), Felisberto Hernández, Fernanda Trías (da nova geração. Ela diz sobre Levrero: “O mestre de tantos aspirantes a escritor, leitor generoso e fenômeno literário”), Horacio Quiroga, Ida Vitale, Idea Vilariño, Inés Bortagaray (nova geração), Juan Carlos Onetti, Mario Benedetti, Mario Levrero e Marosa di Giorgio.

Autora do belo “El Libro de Mis Primos”, Cristina Peri Rossi é ignorada pelas editoras patropis. Era, das autoras latino-americanas, uma das preferidas de Julio Cortázar. Peri Rossi é romancista, poeta, crítica literária (ensaísta do primeiro time) e tradutora. Mora na Espanha.

Mario Levrero (1940-2004) tem um pouco mais de sorte. Ao menos três de seus livros saíram no Brasil: “Histórias Cansadas” (FTD, 32 páginas), “O Romance Luminoso” (Companhia das Letras, 648 páginas, tradução de Antonio Xerxenesky), “Deixa Comigo” (Rocco, 160 páginas, tradução de Joca Reiners Terron). Falta publicar em português outra de suas obras mais importantes “El Discurso Vazio”.

Mario Levrero: escritor uruguaio | Foto: Editora Companhia das Letras

“O Romance Luminoso” e “El Discurso Vazio” são apontados como suas duas obras-primas. A escritora espanhola Sara Mesa diz que Levrero é um “grande escritor imperfeito”. A prosadora aprecia a “extravagância e a profundidade” de “El Discurso Vazio” e “a torrencialidade desordenada — e um pouco mística — de ‘O Romance Luminoso’”. Agradam-lhe também “o onírico e o humor negro da trilogia involuntária” (“La Ciudad”, “París” e “El Lugar”). “Caza de Conejos” é visto como “delicioso divertimento”. Elogia também “Dejen Todo en Mis Manos”.

Saiu em 2019, da lavra do escritor e ensaista mexicano Mauro Libertella (radicado em Buenos Aires), a biografia “Un Hombre Entre Paréntesis — Retrato de Mario Levrero” (Universidad Diego Portales, 178 páginas). É mais um perfil do que uma biografia clássica, das exaustivas. Ainda assim, ótima.

Levrero viveu 64 anos e escreveu 20 livros, publicou textos em jornais e deu aulas em oficinas literárias. Morou na França (dois meses) e na Argentina (três anos). Mas só se sentia bem em Montevidéu, a capital do Uruguai.

Nascido em Montevidéu, em 23 de janeiro de 1940, ganhou um nome longo: Jorge Mario Varlotta Levrero, que, como escritor, abreviou para Mario Levrero.

Filho único de Mario Julio Varlotta, professor de inglês, e Nilda Reené, dona de um sebo — librería de viejo — em Montevidéu e, depois, em Piriápolis, Mario Levrevo foi diagnosticado, aos 3 anos, com sopro no coração. Tornou-se um menino sedentário e, ao mesmo tempo, em leitor de livros e revistas.

Era considerado um “aluno brilhante”, com uma formação cultural acima da dos colegas de turma. Mas, adolescente, no segundo ano, “interrompeu sua educação formal e se dedicou a ler por sua conta e a flanar pela cidade”.

Durante as refeições, Levrero, entre uma garfada e outra, lia trechos de algum livro. Lia tudo. Apreciava romances policiais — os bons, os mais ou menos e os ruins. Lia cinco por semana.

Os autores preferidos do jovem eram: Anthony Gilbert, Chester Himes, Dickson Carr, Georges Simenon, Raymond Chandler e Rex Stout (Dashiell Hammett, o meu preferido, não é citado).

Autores de ficção científica estavam sempre na mira de Levrero, principalmente Cordwainer Smith, Alfred Bester, Olaf Stapledon e Clifford D. Simak. “Porém, no geral, a ficção científica não me interessa. (…) Entre os subgêneros, o romance policial me parece mais honesto, menos artificial”, disse o escritor, em 1987, à repórter Cristina Siscar.

A crítica notou que havia ecos da prosa de Felisberto Hernández na literatura de Levrero. Parece que ele ainda não havia lido o conterrâneo. Aí leu e gostou. Aprendeu a apreciar Juan Carlos Onetti aos poucos.

A literatura canônica não empolgava Levrero. “Eu leio coisas muito ruins, como Stanley Gardner. Admito que está mal escrito, mas me encanta.”

Levrero poderia ter se tornado famoso há mais tempo. Hoje, quase 20 anos depois de sua morte, está consagrado. O escritor uruguaio Gabriel Sosa diz que seu colega de ofício “tinha um ódio absoluto pelo mundo editorial”.

Por não apreciar ser “vendido” como um produto — e, gostando-se ou não, o livro é um produto —, Levrero não mantinha bom relacionamento com as editoras.

Em 1996, disse ao escritor e acadêmico Hugo J. Verani: “Há coisas que minha mente não é capaz de conceber, como, por exemplo, ‘fazer carreira’. A publicação de meus livros é um fato secundário, quase acidental, e sua escassa circulação me favoreceu”. Porque, postula, ficou livre para escrever o que quisesse.

 “Sempre tive um número exato de leitores (inclusive quando tive um só leitor, o Tola Invernizzi) e não estou muito seguro das vantagens de incrementar agora este número por ação de críticos e editores”, acrescentou Levrero.

Libertella relata que “muitos de seus livros foram publicados anos depois de escritos”. Seus livros foram lançados por editoras de pouca importância, como Ponto Sur e Cruce. A Ediciones de la Flor, da Argentina, pôs algumas de suas obras, como “Fauna” e “Desplazamientos”, nas livrarias.

Ao visitar Levrero em Colonia, em 1990, a escritora uruguaia Helena Corbellini recebeu uma xerox de “Manual de Parapsicología”. Ela ficou surpresa, por Levrero não ter uma edição em livro, e saiu à caça de editora para sua obra. Era a “Causa Levrero”.

Claudio Rama (filho do crítico Ángel Rama), dono da editora Arca, atendendo pedido de Helena Corbellini decidiu publicar “El Portero y el Otro”, “Nick Carter” e “Dejen Todo en Mis Manos”. Levrero recebeu um cheque de mil dólares, mas não ficou satisfeito com a má qualidade das edições.

Em seguida, saiu, pela editora Trilce, “El Discurso Vacío”. A Editorial Cauce, de Gabriel Sosa, publicou “Ya Que Estamos”. Mas a quantidade de erros alarmou Levrero, que rompeu com Sosa, acusando-o de “ladrón”.

Diferentemente de tantos escritores, Levrero “nunca teve agente [literário] nem viajou para congressos nem participou de feiras e festivais”, diz o biógrafo. O amigo Marcial Souto foi um dos divulgadores de sua literatura, desde que leu “La Ciudad”, que, finalista do concurso literário do semanário ‘Marcha’, em 1969, acabou perdendo para “El Libro de Mis Primos”, de Cristina Peri Rossi.

Marcial Souto quedou-se mesmerizado ao ler “La Ciudad”: “Isto é extraordinário, é o descobrimento da América, eu não posso crer que aqui se tenha escrito isto”.

Dada a qualidade da prosa de Levrero, Marcial Souto publicou-a na editora Tierra Nueva, em 1970. Editou “La Máquina de Pensar en Gladys” (contos). Entusiasmado, convenceu o selo Minotauro a publicar “Aguas Salobres” (contos). A editora Ponto Sur lançou “Espacios Libres”.

As obras de Levrero, dada sua falta de empenho, saíam a conta-gotas. O indefectível Marcial Souto, morando em Barcelona, em 1991, conseguiu que a editora Plaza y Janés publicasse dois livros do uruguaio. Mesmo com prefácio de Antonio Muñoz Molina, “La Ciudad” não obteve sucesso.

O pintor Tola Invernizzi

O artista plástico Tola Invernizzi foi importante na vida literária de Levrero. “Invernizzi foi um personagem extraordinário da cultura uruguaia de meados do século [20]. Artista plástico, grande leitor, figura central da boemia dos anos quarenta e cinquenta.” Na década de 1960, se tornou construtor de casas, mas não deixou a arte e criadores artísticos de lado.

Deprimido, sem saber o que fazer da vida, aos 26 anos, Levrero começou a escrever uma história num “ritmo febril”. Tola Invernizzi leu parte dos originais e disse: “Está bom, continue”. Nascia o escritor Mario Levrero, que não era mais Jorge Varlotta.

Com o romance “La Ciudad” concluído, Levrero levou-o para Tola Invernizzi, que sentenciou: “Bom, Jorge; agora, é escritor”. O artista plástico sugeriu que namorasse María Lina Mondello. Casaram-se e tiveram uma filha, Carla.

A morte de Mario Levrero

Em 2004, Levrero “já era um homem com fobias, que não saía nem para fazer suas compras”. Naquele ano, ao se encontrar com Carla, disse que iria morrer brevemente. Ela não levou a sério.

No dia 30 de agosto de 2004, “Levrero teve um acidente cardiovascular”. Como não havia escapatória, desligaram os aparelhos e ele morreu. O escritor já havia alertado a família que, se acontecesse alguma coisa incontornável com ele, deveriam desligar os equipamentos hospitalares.

Os livros da biblioteca de Levrero, mais de 1500, foram vendidos pelos filhos. Não para universidades, e sim para compradores isolados.

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Cartas del Verano de 1926 — Pasternak, Rilke e Tsvietáieva

O livro “Cartas del Verano de 1926” (Minúscula, 439 páginas) contém as missivas de Boris Pasternak, Marina Tsvietáieva e Rainer Maria Rilke. Trata-se de uma edição que, impressa em Barcelona, circula nas livrarias argentinas (adquiri meu exemplar na 48ª Feira do Livro de Buenos Aires, em abril deste ano). As traduções do russo são de Selma Ancira e as do alemão de Adan Kovacsics. Os poemas foram vertidos para o espanhol por Selma Ancira e Francisco Segovia. A edição e a introdução são de Konstantín Azadovski, Evguêni Pasternak e Elena Pasternak. Há um importante índice de nomes.

Em 1926, o ano em que morreu Rilke, aos 51 anos, o bardo de língua alemã e os poetas russos Boris Pasternak e Marina Tsvietáieva trocaram cartas excepcionais.

A paixão de Rilke pela Rússia

Apaixonado pela Rússia — os russos, segundo o poeta, eram “um povo especial”, o “eleito de Deus” —, Rilke visitou o país pela primeira vez, acompanhado da escritora Lou Andreas-Salomé e do orientalista Friedrich Carl Andreia, em abril de 1899.

Boris Pasternak, Marina Tsvietáieva e Rainer Maria Rilke: três grandes vozes poéticas do século 20 | Fotos: Reproduções

Ao escritor polonês W. Hulewicz, Rilke relatou: “Pela primeira vez em minha vida se apoderou de mim uma sensação inefável, algo assim como um sentimento de pátria”.

O primeiro contato de Rilke no país não foi com Boris Pasternak, que era um menino de 9 anos, e sim com seu pai, Leonid Ósipovich Pasternak, um pintor renomado. O artista plástico deixou registrado que o poeta “era muito jovem, loiro e de aspecto frágil”.

Rilke queria conhecer o escritor Liev Tolstói e pediu a intermediação de Leonid Pasternak. O artista plástico estava fazendo ilustrações para o romance “Ressurreição” e se encontrava com frequência com o prosador. A visita ocorreu no bairro Jamóvniki, em Moscou.

A escritora russa Sofia Shil, amiga de Rilke, escreveu: “Em sua imaginação de poeta, a Rússia aparecia como um país de sonhos proféticos e princípios patriarcais, oposto ao industrializado Ocidente”.

A Rússia era vista por Rilke como um “país de conto” — quase fabular. Ele escreveu para o poeta Hugo Salus: “É difícil expressar quanta novidade há neste país, quanto futuro”.

Os autores da introdução postulam que “foi precisamente na Rússia onde Rilke se sentiu um verdadeiro artista, onde acreditou, de maneira definitiva, na sua vocação”.

Ao voltar para a Alemanha, Rilke começou a aprender russo e a estudar a cultura da terra do prosador Ivan Turguêniev e da poeta Anna Akhmátova. Lia os clássicos do país de Púchkin e traduziu “A Gaivota”, de Anton Tchékhov, para o alemão. Traduziu também poemas esparsos de K. Fófanov e S. Drozhzhin.

No dia 5 de fevereiro de 1900, Rilke escreveu para Leonid Pasternak: “A Rússia resultou para mim algo mais essencial que um acontecimento fortuito”.

Na mesma carta Rilke fala do “prazer” de ler o poeta Mikhail Liérmontov e o prosador Tolstói em russo.

Marina Tsvietáieva e Boris Pasternak: poetas russos | Fotos: Reproduções

Rilke e Lou Andreas-Salomé voltaram à Rússia, em 9 de maio de 1900, e o objetivo de ambos era visitar Tolstói, em Yásnaia Poliana. Na estação de trem encontraram-se com Leonid Pasternak e Boris Pasternak, então com 10 anos.

Boris Pasternak nunca se esqueceu do único encontro pessoal com Rilke. O poeta passou a ser considerado pelo russo como uma figura inspiradora.

Empolgado com tudo da Rússia, Rilke traduziu Dostoiévski e Tchékhov e escreveu artigos sobre a arte russa. “As impressões russas de Rilke estão refletidas nas obras ‘O Livro de Horas’, ‘Historias del Buen Diós’ e poesias isoladas”, informam os organizadores das cartas.

Em 1902, casado com a escultora Clara Westhoff e pai de uma filha, Rilke tentou trabalhar na Rússia. Entrou em contato com A. S. Suvorin, dono do periódico “Tempo Novo”, mas não recebeu resposta. Ele queria escrever no jornal.

Em viagens, Rilke apreciava se aproximar de escritores, pintores e atores russos. Conversou com Maksim Górki, Ivan Búnin e A. Benois. Ele apreciava “El cantar de las huestes de Ígor” e fez uma tradução para o alemão. De Búnin, leu várias obras, como “O Amor de Mitia”, e leu, “com prazer”, “Los Señores Golovliov”, de Saltikov-Shedrín.

Em 1925, Rilke “era percebido como a encarnação viva da poesia”, o que Marina Tsvietáieva e Boris Pasternak mencionam nas primeiras cartas enviadas ao poeta.

A vocação da poeta Tsvietáieva

A vida na década de 1920, logo depois da Grande Guerra (como a Primeira Guerra Mundial era então chamada), não era das mais fáceis. Mas, “por Rilke, nosso tempo será perdoado”, vaticinou Marina Tsvietáieva.

A russa, poeta reconhecida, “considerava sua vocação pela poesia como uma missão e um destino”. Boris Pasternak lia, com fervor, “Para Festejarme”, “O Livro das Imagens” e “O Livro de Horas”, de Rilke. Começou a traduzir sua poesia e, mais tarde, disse que, como poeta, navegava nas águas de Rilke.

De acordo com os autores da introdução, “Pasternak não exagerava ao afirmar que devia a Rilke toda sua formação espiritual (coisa que ele confessou ao próprio Rilke). Sua tendência a um perfeccionismo artístico produtivo, entendido como princípio regenerador da vida, foi o que motivou que, desde a juventude, renunciasse aos extremos do romantismo”.

Um dos autores prediletos de Boris Pasternak, seguindo Rilke, era Jens Peter Jacobson. O poemário “Minha Irmã Vida” era, de alguma maneira, rilkiano. O bardo russo havia operado, neste livro, para que a elaboração formal parecesse natural, não artificial.

De início, Boris Pasternak dizia que não compreendia a poesia de Marina Tsvietáieva. Porém, mesmerizado pela leitura de “Verstas”, de 1921, escreveu uma carta entusiasmada à poeta. Na sua autobiografia, disse: “Minha boca lançou um grito maravilhado ante o abismo de pureza e força que se revelava a mim”.

Marina Tsvietáieva e Óssip Mandelstam (ele teve uma paixão pela poeta) | Fotos: Reproduções

Boris Pasternak havia sido conquistado, sublinhou, “pela potência lírica da forma tsvietaieviana”, por sua “firmeza concisa e condensada, que, em vez de quedar-se sem alento em versos livres, abarcava, sem romper a tensão rítmica, toda uma sucessão de estrofes mediante o desenvolvimento de suas frases”.

Marina Tsvietáieva e Boris Pasternak se tornaram, como poetas, íntimos. “Como te amou e quanto tempo, toda a vida! Só a papai e a ti os amou não desamando-os”, escreveu, em 1955, Ariadna Efrón, filha da poeta, para Boris Pasternak.

Os coordenadores do livro de missivas postulam que “o epistolário entre os dois poetas, Tsvietáieva e Pasternak, é, sem dúvida, um dos acontecimentos mais significativos da história da literatura russa do nosso tempo”.

Em 1923, Boris Pasternak enviou a Marina Tsvietáieva seu livro “Temas e Variações”. Na dedicatória, escreve: “À incomparável poeta Marina Tsvietáieva”.

Quando Boris Pasternak mostra desalento com a poesia, Marina Tsvietáieva o consola, mas sem passar a mão na sua cachola: “Com a poesia, meu amigo, é como com o amor: enquanto ele não te abandona… Tu é servo da lira”.

“A partir desse momento, a participação e o apoio de Tsvietáieva se converteram para Pasternak numa necessidade vital. No verão de 1925, com o incentivo de Tsvietáieva, Pasternak começa a escrever seu poema ‘O ano de 1905’.”

Lou Andreas-Salomé e Rilke: viajantes pela Rússia | Foto: Reprodução

Em 1925 circulou a “informação” de que Rilke havia morrido. Ele estava doente. Marina Tsvietáieva e Boris Pasternak saíram à cata de informações. Era, por assim dizer, fake news. O bardo russo havia começado a ler “Sonetos a Orfeu”, de Rilke. E percebe que seus caminhos poéticos são semelhantes, o que não quer dizer iguais.

Quando leu “O Ano de 1905”, Marina Tsvietáieva enviou uma carta: “Boris, é absolutamente extraordinário… ‘A palavra como objetivo’… ‘A vida independente da palavra…  quando toda a sua poesia, cada linha — é uma luta pela essência. (…) Não é difícil a forma, é difícil a essência”. A leitura de “O poema do fim”, da amiga, o empolga, mais uma vez.

Nas cartas, Boris Pasternak e Marina Tsvietáieva mencionam “Sonetos a Orfeu” e “Elegias de Duíno”. A poeta ficou “maravilhada”. “A partir desse momento e até o final de sua vida, Rilke foi para ela a encarnação da mais alta espiritualidade, o símbolo da poesia mesma.” Ela escreveu para Rilke: “Você, poesia encarnada”. O poeta “é um Poeta com maiúscula, um artista, um criador do eterno”.

Numa carta para Charles Vildrac, Marina Tsvietáieva insiste: “Você e eu estamos unidos por laços de grande afinidade: porque você ama a Rússia e Pasternak e sobretudo a Rilke, que não é um poeta, é a poesia mesma”.

Boris Pasternak e seu pai, Leonid Pasternak | Foto: Reprodução

Rilke percebe em Marina Tsvietáieva um par — claro, um par poético. Não uma rival, mas uma sensibilidade parecida e, dada sua forte identidade, tão diferente.

O poeta escreve um quarteto e envia para Marina Tsvietáieva: “Nos tocamos. Com qué? Con Aletazos./ Hasta com lejanías nos tocamos./ Vive um solo poeta, y quien lo lleva/ a quien lo llevaba a veces encuentra” (um dicionário informa que “aletazos” são golpes com asas, o que em português soa estranho. No Chile, é bofetada. Lejanías são distâncias. O restante é de fácil tradução, por isso deixo o trabalho e o prazer para o leitor).

Numa carta para Rilke, Marina Tsvietáieva distingue o Rilke-homem do Rilke-espírito — “que é maior do que o poeta”.

“Você é um fenômeno da natureza, […] o quinto elemento encarnado: a poesia mesma, ou (não é tudo ainda) aquele de onde nasce a poesia e que é maior do que ela (que você)”, assinala Marina Tsvietáieva.

Ao, digamos, “espiritualizar” a natureza”, a poeta agradou a Rilke. “O conceito de uma natureza com alma era importantíssimo para Rilke.” “A natureza ‘viva’ [a alma era a manifestação natural da natureza “viva”] é para Tsvietáieva fonte de criação e poesia.”

Numa carta para Vera Búnina, a poeta anota: “O poeta é — natureza, e não concepção do mundo”.

Rilke, Tsvietáieva e o amor

Numa carta para Rilke, Marina Tsvietáieva, tanto filosofando quando poetizando, diz: “Não amo nem respeito o amor”. E fala do “eterno ódio de Psiquê por Eva, de que não há nada em mim. De Psiquê, pelo contrário — tenho tudo”.

Rainer Maria Rilke: um dos maiores poetas da língua alemã | Foto: Reprodução

O amor verdadeiro, para Marina Tsvietáieva, é aquele no qual se funde alma e corpo. Ela amava Rilke, afinal? Há, de sua parte, um “amor especial”, digamos espiritual. “A imagem ideal (quer dizer, distante, inalcançável) do ser amado era para Tsvietáieva mais querida que a pessoa física, tangível.”

Maximilián Voloshin disse à poeta: “Quando ama alguém, sempre quer que se vá, para poder sonhar com ele”.

Para Rilke, Marina Tsvietáieva escreveu: “Não vivo em minha boca, e quem me beija, não me alcança. (…) O amor vive de palavras”. Na mesma carta, diz ao amigo-poeta que, dele, “só espera a palavra, nada mais”.

Para Marina Tsvietáieva, “o sonho é o arquétipo de um mundo diferente em que ‘as almas’ vivem e se encontram”. Então, ela sugeria a “comunicação” em sonhos. “Minha forma predileta de comunicação é: o sonho, ver em sonhos”, contou numa carta a Boris Pasternak.

Na mesma carta, a poeta diz: “Uma carta é uma forma de comunicação fora deste mundo, menos perfeita do que o sonho, mas sujeita às mesmas leis; nenhuma nem outra se dão: se sonha e se escreve não quando queremos, e sim quando eles querem: a carta — ser escrita e o sonho — ser sonhado”.

A Rilke, numa carta póstuma (isto mesmo: póstuma), a poeta escreve: “No dia em que alguém nos sonhe juntos — nos encontraremos. (…) Amado, faz que te sonhe com frequência — não, não é exato: vive em meu sonho”.

Maria Tsvietáieva: jovem | Foto: Reprodução

As cartas de Marina Tsvietáieva, postulam os organizadores do livro, com absoluta razão, “são um fenômeno muito peculiar: não se pode aplicar a elas a denominação tradicional de prosa epistolar. A comunicação com as pessoas que lhe eram próximas espiritualmente provocava nela um estado de criatividade beirando o êxtase”. Por isso, colocava nas missivas “todo o seu temperamento apaixonado, seu ardor [os tradutores usam “fogosidade”] e sua força. Em suas cartas a Pasternak, Rilke ou Steiger, Tsvietáieva era, antes de qualquer outra coisa, uma artista: criava. Poetizada ao limite, às vezes de forma destrutiva, suas relações com pessoas às quais, em geral, nunca havia visto ou havia visto apenas algumas vezes”.

Depois de um primeiro encantamento, a poeta tinha o hábito de desistir das novas amizades, até de maneira “furiosa” — menos com Rilke e Boris Pasternak.

Os organizadores do livro afiançam que “Tsvietáieva dava forma literária a cada uma de suas cartas, as convertia em uma o obra de arte em que desafogava sua alma. Assim são suas cartas para Rilke: um gênero particular, fora do tradicional. Poderíamos denominar de ‘lírica epistolar”.

Marina Tsvietáieva tinha especial apreço, como poeta e prosadora, pela imaginação. “A imaginação governa o mundo”, dizia. Sua memória era tributária da imaginação.

 M. Slónim disse que Marina Tsvietáieva “afirmava que não só a poesia, mas também a vida humana, em sua totalidade, se move graças à imaginação. […] E que não há amor sem imaginação. O mais importante é a capacidade de apresentar, ante uma pessoa e ante os demais, o inventando como real e o invisível como visível”.

Como Rilke via Marina Tsvietáieva

Rilke escreveu seis cartas para Marina Tsvietáieva, sempre muito interessado no que ela dizia. Havia uma irmandade espiritual entre os dois poetas. “É um diálogo entre duas pessoas que se compreendem quase sem palavras, que estão a par do mesmo segredo. O leitor atento tem de ler suas cartas com imensa atenção, como se estivesse lendo seus versos”, sugerem os organizadores da coletânea.

Rilke e Marina Tsvietáieva comportavam-se, nas cartas, como conjurados, cúmplices. O que escreviam, as ideias que trocavam, resultava de um diálogo entre iguais, no sentido de saber poético. “Iguais a mim em força só encontrei Rilke e Pasternak”, frisou a poeta.

Entretanto, em agosto de 1926, Rilke abandonou, por assim dizer, Marina Tsvietáieva. Uma carta da poeta, de 2 de agosto, o desagradou. “A impetuosidade e a rotundidade da poeta, seu desejo de não ter em conta nem circunstâncias nem convenções, sua aspiração de ser para Rilke a ‘única Rússia’, o fato de relegar Pasternak [a um segundo plano]: tudo isso pareceu a Rilke injustificadamente exagerado e, inclusive, cruel”. Não respondeu mais às cartas da poeta.

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Quando Rilke morreu, no mesmo ano, Marina Tsvietáieva ficou arrasada e, de acordo com os organizadores do livro, nunca se recuperou. “Rilke — é minha última alemanidade. Meu idioma predileto, meu país predileto”, disse a poeta.

As relações com Boris Pasternak também esfriaram, mas, em dezembro de 1929, a poeta escreveu para ele: “Tu é a minha última esperança em mim inteira, não posso ser sem ti”.

As cartas de Marina Tsvietáieva para Rilke foram descobertas em 1977. Em 1941, pouco antes de se suicidar, a poeta entregou as cartas para A. P. Riabínina, diretora do Departamento de Literatura dos Povos da União Soviética. Mais tarde, Riabínina entregou as cartas para familiares de Boris Pasternak.

As cartas da poeta para o autor de “Doutor Jivago” — cerca de uma centena — se extraviaram durante a Segunda Guerra Mundial. “Mas havia uma cópia de 18 delas. De três cartas se conservaram os originais. Ademais, Marina Tsvietáieva costuma escrever rascunhos em seus cadernos de trabalho, o que permitiu precisar o texto de algumas cartas que enviou a Pasternak durante o verão de 1926.”

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