Domenico De Masi segue Stefan Zweig e diz que “o Brasil é o país do futuro”

22 março 2020 às 00h00

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O sociólogo italiano diz que “será impossível o Brasil não fazer parte da vanguarda global, sobretudo por causa do modelo inter-racial”
“O Brasil é o país do futuro.” O dito do escritor austríaco Stefan Zweig (1881-1942 — viveu 60 anos), que morou no país do presidente Getúlio Vargas — como fugitivo do nazismo de Adolf Hitler — ganhou o mundo. Tanto que, setenta e oito anos depois do suicídio do autor, é citada, inclusive disposta no título — “Brasil ainda é o país do futuro” —, numa reportagem do jornal “Valor Econômico” (sexta-feira, 13) sobre o sociólogo italiano Domenico De Masi, de 82 anos.
Há quem acredite que o Brasil já deu certo — o próprio Domenico De Masi parece concordar — e, portanto, não se trata de falar em “país do futuro”, e sim em “país do presente”, ainda que muitos brasileiros, talvez a maioria, discordem. Porque a autocrítica do brasileiro — com exceção do futebol — é corrosiva consigo mesmo, ou melhor, com os brasileiros. Como Pelé, falamos de nós na terceira pessoa, como se cada brasileiro percebesse os brasileiros como diferentes dele. “Ah, os brasileiros não têm jeito”, “os brasileiros são assim mesmo”, “eta povinho!” — dizemos, às vezes sem corar. O que não temos é o hábito de aceitar que, independentes há apenas 198 anos, a nação patropi se tornou uma das dez maiores potências globais.

Domenico De Masi: “Daqui a pouco todo o mundo será multiétnico, não existirá país com uma só raça. O Brasil é onde diferentes raças convivem de modo mais pacífico, não há outro exemplo no mundo” | Foto: Reprodução
O historiador Jorge Caldeira tem submetido os dados do país a novo escrutínio — o que possibilita uma compreensão mais matizada de sua economia e de seu povo. Somos melhores do que pensamos que somos — e não apenas na arte do futebol. É uma pena que as pesquisas de Jorge Caldeira, um jornalista que se especializou no estudo de história, obtendo inclusive um doutorado, ainda não tenham sido incorporadas ao discurso das ruas e, mesmo, ao discurso das universidades. Investir na ideia de que a elite é uma “desgraça” galvaniza mais apoios, aliados. A força do mercado interno na Colônia, por exemplo, foi subestimada por vários pesquisadores. O crescimento extraordinário da economia na República Velha praticamente não tem sido registrado. A percepção dominante é que se tratava de uma República corrupta; portanto, “Velha” e “superada”. A ditadura de 1964 a 1985 foi civil-militar, mas, para piorá-la, devemos dizê-la tão-somente militar. O golpe de 1964 é made in Brasil, mas tende-se a enfatizar a influência americana. Sabemos rir, até de maneira farta, mas somos trágicos ao tratar do país, como se ele não fosse construído por nós.
Parece que há um prazer — sádico, masoquista, sadomasoquista? — em apontar as mazelas, mas raramente as soluções encontradas pelo país. Em tempo de coronavírus, então, as coisas pioram, porque acreditamos que nossa “organização” e “disciplina” são piores do que a de outras nações. Há quem até cite Cuba — rodapé geográfico em termos globais — como exemplo. Há os que preferem enaltecer o porte álgico, quase militar, dos alemães. O Brasil já deu certo, na medida em que, na verdade, não há nenhuma nação perfeita. A Alemanha teve Hitler, o cabo austríaco que chegou ao poder sem golpe de Estado e, no governo, se tornou, rapidamente, ditador — prendendo e matando opositores (exterminou cerca de 6 milhões de judeus e milhares de ciganos, homossexuais, comunistas, democratas). A União Soviética e a China tiveram Stálin, cujo comunismo matou cerca de 30 milhões de pessoas (portanto, trata-se de uma peste do século 20, tão nefanda quanto Hitler), e Mao Tsé-tung (seu comunismo liquidou 70 milhões de indivíduos, o que o torna, com Hitler e Stálin, uma das grandes pragas do século 20).
Talvez por não ser brasileiro, e ter um olhar mais, digamos, “compreensivo” e distanciado, Domenico De Masi percebe o povo tropiniquim de maneira inspiradora. Ao jornalista Lucas Ferraz, o sociólogo galáctico sublinha “que será impossível o Brasil não fazer parte da vanguarda global, sobretudo por causa do modelo inter-racial” (o texto entre aspas é uma condensação, feita pelo “Valor”, das palavras do italiano). “Daqui a pouco todo o mundo será multiétnico, não existirá país com uma só raça. O Brasil é onde diferentes raças convivem de modo mais pacífico, não há outro exemplo no mundo”, assinala o autor do livro “O Ócio Criativo”.
O Brasil, na opinião de Domenico De Masi, professa, derivado da escravidão, um humanismo corporal. A única propriedade do escravo era o corpo. “Não é à toa que a maior escola de cirurgia plástica do mundo vem do Brasil”, frisa. Pessoas se exercitando na praia, em qualquer horário do dia, espantaram o pesquisador.
A Itália não tem uma descendência indígena; portanto, o país tem “uma coisa de menos”, pontua Domenico De Masi. No registro de Lucas Ferraz, o sociólogo “lamenta não ter existido na Itália, após a unificação do país no século 19 [em 1861, dada, em grande parte, à luta de Giuseppe Garibaldi, que mais tarde lutou no Brasil e se apaixonou pela brasileira Anita Garibaldi, além de ter sido convidado pelo presidente Abraham Lincoln para comandar suas forças armadas na Guerra Civil Americana; decepcionado com os políticos italianos, não aceitou o convite], inventores da cultura e de um pensamento nacional como fizeram no Brasil autores como Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Holanda, ‘intelectuais que amalgamaram vários componentes da cultura numa coisa única, brasileira”. Talvez tenha faltado incluir Euclides da Cunha (“Os Sertões”), Caio Prado Júnior (“Formação do Brasil Contemporâneo”), Celso Furtado (“Formação Econômica do Brasil”) e Raymundo Faoro (“Os Donos do Poder”). O crítico alemão Willi Bolle sugere que o romance “Grande Sertão: Veredas” tem fôlego como ampla interpretação do Brasil.
A característica mais interessante do Brasil é o “traço indígena”, o que gera “o ócio criativo”. “Os índios são os primeiros que experimentaram isso de forma total. O que fazia um índio durante o dia? Eram poucos belicosos, não tinha grandes guerras. Eles se dedicavam à contemplação da natureza, não deveriam acumular grande riqueza, que já estava no meio ambiente. Tinham uma contemplação da natureza para usar as raízes certas, por exemplo, e para trabalhar nos afazeres cotidianos, e também de maneira mística, vendo-a como força sobrenatural. Só por isso os brasileiros deveriam ser mais gratos aos índios.” As casas dos brasileiros são cheias de plantas, o que, destaca Domenico Di Mais, “vem dos índios”. Para melhorar o mundo atual, para torná-lo mais habitável — agora ou mais adiante —, é provável que será preciso desacelerá-lo. É possível? Não se sabe. Mas, quanto mais produtivo (que resulta em mais consumo), mais desastres ambientais. O ócio, portanto, é criativo e pode, ainda que não nos salve, tornar a Terra mais palatável.
Domenico De Masi — a reportagem não diz, mas é um dos gurus de Roberto Irineu Marinho, um dos sócios do Grupo Globo (dono do “Valor”) — avalia que “o maior trunfo do Brasil é a diversidade, com vários mundos dentro de um só e múltiplas riquezas”. “O país tem uma bomba atômica que é a [floresta] amazônica, da qual o planeta inteiro depende. Por isso o mundo tem interesse em que o Brasil seja bem administrado”, anota o sociólogo. Verdade? Em parte, sim.
Há os excessos de praxe — no caso, talvez derivado da leitura de textos de articulistas de jornais. Domenico De Mais afirma que o presidente Jair Bolsonaro é “ditador”. O político eleito em 2018, com discurso de direita, como contraponto ao discurso do PT, de esquerda, é mesmo ditador? Talvez até queira ser, mas ainda não é. O sociólogo poderia dizê-lo “autoritário”, sobretudo pelo discurso — sempre no ataque às instituições, como o Legislativo e o Judiciário, e à imprensa (que chama de mídia) —, mas as ações do governo não levaram a uma ditadura. O Brasil permanece democrático. Por ter um passado autoritário recente, a ditadura foi “sepultada” há apenas 35 anos, o Brasil deveria ter, opina, mais “anticorpos” contra políticos autoritários e populistas. O pesquisador assinala que, assim como Jair Bolsonaro, o direitista italiano Matteo Salvini, senador que lidera o partido de extrema-direita Liga Norte, também não tem apreço pela cultura.