De uma narrativa a outras: uma escrita sobre a pandemia do novo coronavírus

04 agosto 2020 às 12h06

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Para além da morte em números, é preciso pensar sobre lutos não elaborados dos corpos não velados e de despedidas antecipadas de cada uma das quase 100 mil vítimas da Covid
Leidiane Francisco Diniz e Renata Wirthmann
Especial para o Jornal Opção
“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história.” — Karen Blixen (Isak Dinesen)

Este texto é um desabafo e um convite. É um relato de experiência da perspectiva de cada um de nós que estamos dentro da pandemia e não a negamos, pelo contrário, sofremos. O sofrimento e o desamparo nos acompanham desde a origem de nós mesmos. Nascemos totalmente despreparados para vida, inclusive no âmbito da palavra, da linguagem e das regras. Nascemos sem borda, ou seja, sem limites entre o eu e o outro, e vamos descobrindo nossa própria existência a partir dos cuidados, afetos, olhar e voz dos outros sobre nós mesmos. O processo de sobreviver e de humanizar é, sobretudo, o processo de tornar-se sujeito do desejo.
Ao longo da vida o sujeito vai construindo sua história pelas palavras. Tudo começa com o discurso que vem dos nossos pais, depois, num segundo momento, descobrimos outros discursos, da escola, da música, da tv e dos livros. Todos esses discursos têm potencial para nos ajudar a construir sentidos para as nossas experiências, boas e ruins, e nos ajudam a construir uma borda para aquilo que ainda está no campo do incompreensível, do real.
Um desses fenômenos imprevistos e incompreensíveis é a pandemia. O esforço de elaborar e escrever sobre a Covid-19 é, fundamentalmente, uma defesa contra a angústia e o mal-estar frente ao real da pandemia. A escrita funciona de um modo semelhante ao descrito por Clarice Lispector que toma as palavras como sua quarta dimensão, seu sustento. Eis o objetivo dessa escrita: tentar transformar o real da pandemia em uma narrativa que tenha o poder de restituir um pouco do que nos está sendo retirado, como a rotina, o tempo, a economia e, sobretudo, vidas.

Tudo começa com uma pergunta: o que é uma pandemia? Nada vem à cabeça e ficamos sem palavras. A pandemia parece um mundo sem palavras e sem narrativa, por isso, angustiante. O desconhecido é estranho e assustador, melhor torná-lo conhecido pelo enlace com as palavras. Com o objetivo de buscar palavras para sustentar esta escrita, recorremos a textos e imagens para pensar a pandemia, como o quadro do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944), “Melancolia”. O olhar do homem melancólico retratado na tela faz seu corpo parecer preso ao tempo de ver. Anterior ao tempo de compreender e o de concluir, o tempo de ver é o tempo do impacto imediato, do susto, do embaraço e da inércia. O tempo de ver de Jacques Lacan (1901-1981) é repleto de semblantes enigmáticos que deixam o sujeito sem palavras. É preciso ler a imagem: o que esse rosto pesado, cansado, entristecido e paralisado está dizendo? Parece nos contar de um corpo sobrecarregado pelo excesso da perda.
Não há peso maior que o da perda. Desde o início da pandemia, estamos mergulhados em perdas de vidas: o número de mortes agravado pelo afrouxamento do distanciamento social e pela falta de leitos nos hospitais. Para além da morte em números, é importante pensar sobre os lutos não elaborados dos corpos não velados e de despedidas antecipadas de cada uma das quase 100 mil vítimas da Covid no Brasil. A ausência de uma cerimônia de despedida pode levar a uma falta de material simbólico para elaborar a perda de um ente querido, como ocorre aos que perderam alguém cujo corpo nunca foi encontrado. A falta da imagem do corpo morto pode levar o sujeito a ficar preso na perda, na sombra daquele que morreu, levando a um quadro de esvaziamento nomeado pela psicanálise como melancolia. Sigmund Freud (1856-1939), no texto “Luto e Melancolia”, descreve o luto como uma reação diante da perda do objeto amado — como a morte de um familiar, a perda da liberdade ou de um ideal — que leva o sujeito a um estado de abatimento doloroso seguido por uma dificuldade de buscar novos objetos de amor.

Regularmente o luto é um afeto normal. Entretanto ele não ocorre de forma automática e requer um longo e difícil trabalho de elaboração psíquica acerca da perda. Essa elaboração é uma espécie de escrita, ou seja, é preciso narrar a perda para suportá-la. Quando não transformada em palavras a perda parece imobilizar o sujeito que acaba se afastando do mundo exterior, de seus interesses e, até, de suas responsabilidades. Na pandemia a escrita da morte tem se mostrado quase impossível. O risco de contaminação nos impede de acompanhar o familiar dentro do hospital durante a internação e, até mesmo, de velar ou sepultar nossos mortos, produzindo um importante obstáculo no processo de elaboração do luto. A morte por Covid vem acompanhada pela ausência — do acompanhamento ao pé do leito, da despedida, do velório, do corpo visível no caixão — e pelo silêncio.
Sem a possibilidade de fazer do luto uma escrita, ele pode vir a se transformar num devastador estado melancólico. A melancolia apresenta características similares ao luto mas numa potência ainda mais corrosiva pois, enquanto no luto o sujeito se mantém preservado e o que sofre depreciação é o mundo ao seu redor, que lhe parece pobre e vazio, na melancolia é o eu que se torna pobre e vazio, o sujeito, portanto, fica esvaziado.

Desde o início da pandemia, os especialistas inferem que os impactos virão em ondas, ao menos quatro, dizem. Quatros ondas parecem demais para um corpo e a flutuação em ondas, de corpos entre ondas, faz do ato de escrever sobre a pandemia um exercício ainda mais difícil. Escrever dá trabalho pois é uma elaboração que exige algum nível de exposição em que, ao escrever, o autor inscreve no papel suas lacunas, seus afetos, inquietações, estranhezas e medos. Escrever sobre a pandemia? Talvez ao final se perceba que o texto fala mais das autoras, dos seus olhares, que da pandemia.
Pensamos a pandemia como a própria representação do real, do vazio, do sem palavras, sem nada, sem sentido — da morte. Por outro lado, o sem sentido da morte é inquietante e nos convoca a escrever sobre aquilo que não se pode escrever. Uma escrita lenta, dura e cheia de marcas psíquicas e restos de nós mesmas. Assim, pensamos este texto como um relato de experiência sobre a pandemia que perpassa, primeiro, por uma elaboração da nossa própria história para, posteriormente, tentar ressignificar nossa experiência na pandemia.
É triste pensar que muitas pessoas possuem apenas a palavra pandemia (a coisa em si) e o papel vazio e que talvez nunca passem desse ponto. Mas como se proteger daquilo que se recusa saber? Talvez por isso assistimos nas ruas tantas pessoas não aceitando, não sabendo, não elaborando, entretanto, morrendo, disso que se recusam a tentar escrever. Escrever dói. Morrer dói. Deixamos, então, uma outra escrita:
Para morrer sem barulho
Escrever um poema sobre a morte
e sentir o corpo sumindo
de levinho,
a pele fina desfiando.
Morrer assim, sem barulho.
Só o caminho das larvas,
invadindo
e deixando a podridão
de seus rastros
famintos.
(Samantha Abreu — em “A Pequena Mão da Criança Morta”. Editora Penalux)
(O texto é um resultado do projeto de pesquisa Psicanálise e Cultura da Universidade Federal de Catalão-UFCat, que tem como objetivo uma leitura psicanalítica dos acontecimentos da contemporaneidade)
Leidiane Francisco Diniz é psicóloga formada pela Universidade Federal de Catalão (UFCat) e mestranda de psicologia (UFU) e Renata Wirthmann é psicanalista, professora-doutora do curso de psicologia da UFCat e colaboradora do Jornal Opção.