Ignorar a diferença política e ontológica entre o cuspe do deputado do PSOL e os cuspes do deputado do PSC é reproduzir o jogo leviano que nivela crachos e escrachos

Jean wyllis foto da agência o globo ele está cuspindo em Jair Bolsonaro

Thiago Cazarim

O “Minidicionário da Língua Portuguesa Silveira Bueno” (edição de 1996, página 177) traz a seguinte definição-verbete: “Cuspir, v.t. e int. Salivar; lançar da boca qualquer líquido; ofender; lançar ofensas”. Segundo o “Dicionário Larousse Francês/Português” (míni —edição de 2005, página 75), cuspir se diz, em francês, “cracher”. Pela aproximação sonora entre o cracho de Jean Wyllys (PSOL-RJ) e o escracho dirigido a ele em função de sua reação a Jair Bolsonaro (PSC-RJ) na noite de antontem é que precisamos falar de um dos protagonistas da política nacional pós admissibilidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Precisamos falar do cuspe.

O cuspe, afinal, o que é? O cuspe é a salivação guardada na boca que tem apetite; assim, o cuspe se acumula nesse espaço ao mesmo tempo escondido e superficial, fechado e comunicante. O cuspe é também ruminação sem objeto ainda palatável, e não é à toa que cuspir é simultaneamente transitivo e intransitivo. Enfim, cuspe, essa ambiguidade que tem a forma de salivação ruminante que se guarda e se projeta ao exterior: e quem não conheceu na vida o velho hábito de, boca cheia, lançar cusparada no chão? Nesse sentido, o cuspe se volta contra aquilo que não tem objeto preciso, contra aquilo que, muitas vezes sem forma exata, apenas conhecemos pelo que oferece de resistência. O alvo do cuspe é, em última instância, sempre chão.

Jean Wyllys 1

O que representa Jair Bolsonaro senão o chão absoluto, a dureza completamente asfáltica que resiste a qualquer contato prolongado, paciente, razoável, fértil? Por inúmeras vezes, Bolsonaro, o pai, mostra-se como o limite daquilo que reconhecemos como civilidade, legalidade e decoro parlamentar. Bolsonaro é sempre e indesculpavelmente o chão, o clichê ao mesmo tempo genérico e concreto diante do qual, esgotadas todas as possibilidades dialógicas, só vem à mão a resposta-cuspe — e isso mesmo considerando que Bolsonaro, essa dureza incontornável, é ele mesmo um cuspe constante na face da nossa democracia.

Mas dizer que o cuspe de Jean pode ter sido momentaneamente a única resposta palpável não significa necessariamente que ela seja uma reação palatável. A diferença entre o tato e o paladar é importante para pensar o cuspe pontual e físico de Wyllys contra os cuspes políticos sistemáticos de Bolsonaro. Enquanto Jair lança mão, manipula a ofensa como hábil ferramenta política, Jean reage, das entranhas negras, gay e libertárias de seu corpo físico e político, reage e cospe como quem apenas pode disparar um líquido visceral contra o sólido absoluto e impermeável. A resistência líquida de Jean significa menos a antecipação salivante de um banquete muito esperado e mais o excesso posterior de um corpo cuja consistência nem sempre pode vencer, mas que ainda pode se projetar liquidamente sobre a dureza desmedida do mundo.

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Haver ou não sabor na cusparada de Jean é outro caso. Já circulam defesas inúmeras do cuspe de Jean, defesas que não sei se posso endossar. Porém, ignorar a diferença política e ontológica entre o cuspe de Jean e os cuspes de Bolsonaro é reproduzir irresponsavelmente o jogo leviano que nivela crachos e escrachos. Defendo o cuspe de Jean não pelas razões que em tese o perpassam, pois seu cuspe só aparece onde o exercício de alguma razão possível não é senão um vazio maciço. Mas a defesa de Jean também se dá nesse lugar em que a razão, falhando e faltando, abre-se ao cuspe como forma simbólica sintética, poética à sua maneira, de resistência líquida possível contra o duro absurdo e insuportável representado por Bolsonaro.

Se alguns de nós achamos que se pode comparar o cracho líquido de Jean e os escrachos sólidos de Jair, talvez então o problema seja menos de gostos e tatos e mais de olfatos incapazes de localizar a origem da putrefação que se forma em nosso regime político. E não é demais lembrar que o que nutre o chão e lhe confere em parte sua solidez é justamente um apodrecimento.

Já a água, a água lava — inclusive a alma.

Thiago Cazarim é professor de música do Instituto Federal de Goiás e doutorando em Performances Culturais (UFG).