Coletânea com 10 poetas mostra que a verdadeira Revolução Cubana é a dos escritores
06 março 2022 às 00h02
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Alessandra Molina, Damaris Calderón, Reina Mária, José Kozer, Ángel Escobar, Reinaldo Arenas, Antônio José, Rolando Sánchez e Omar Pérez são poetas extraordinários
A verdadeira Revolução Cubana foi e é feita por seus poetas e prosadores, como José Martí, Julián del Casal, Nicolás Guillén, José Lezama Lima (“Só o difícil é estimulante”), Eliseo Diego, Alejo Carpentier, Virgilio Piñera, Guillermo Cabrera Infante, Severo Sarduy, Heberto Padilla, Leonardo Padura, entre tantos outros. Depois deles, a tragédia do Caribe, a Revolução de 1959 — a de Fidel Castro (daqui a 100 anos será um rodapé na história, como Gengis Khan), Che Guevara e Raúl Castro —, implodiu a literatura de Cuba? Não. Ao contrário, mesmo sob pressão, os prosadores e poetas continuam irrigando o mundo com romances e versos de qualidade. Mas a diáspora continua: sair para sobreviver, física e espiritualmente. “Poesia Cubana Contemporânea — Dez Poetas” (Antígona, 237 páginas, tradução de Jorge Melícias), com seleção, prefácio e notas do crítico e escritor Pedro Marqués de Armas, é uma excelente antologia de poetas mais rebeldes do que, digamos, revolucionários. Pode-se dizer que são revolucionários como escritores, mas não endossam o regime comunista-totalitário de Cuba.
No seu instrutivo prefácio, base para este texto, Pedro de Armas, começa falando do início da literatura cubana. Vamos começar a abordagem a partir da segunda parte do ensaio, ou seja, da que examina a poesia mais recente.
Em Cuba, o Estado comunista exerce uma pressão intensa sobre os escritores — cobrando que trabalhem a favor de uma revolução que, a rigor, aproxima-se mais de uma involução. Porém, mesmo sob o tacão do realismo socialista, há poetas que extrapolam as normas, ao custo da marginalização — daí muitos continuarem a sair da ilha. “Escapar” de Cuba, para obter garantia de dizer o que se quer de tudo e de todos, não é o mesmo que esquecer do país. Por mais universal que seja a poesia de um grande autor, como os arrolados no livro, a história do país de Lezama Lima habita suas almas. De algum modo, não há como “fugir” inteiramente. Entretanto, o distanciamento, com liberdade, permite uma visão mais ampla do cotidiano da pátria, não mais idealizada.
Segundo Pedro de Armas, “só na década de 1980 a poesia cubana começa a recuperar a sua força, libertando-se, pouco a pouco, do lastro da ideologia”. O crítico não menciona (exceto en passant), mas a Glasnost e a Perestroika soviéticas, com Mikhail Gorbachev no poder, refletiu em Cuba? É provável, ainda que o governo cubano tenha reagido negativamente à abertura dos herdeiros de Lênin. O objetivo da antologia “é mostrar alguns dos melhores poetas surgidos por volta de 1970 e daí em diante: isto é, ao longo do processo totalitário da Revolução Cubana”. Os dez poetas “constituem o núcleo duro da contemporaneidade poética da ilha e do seu exílio”. O crítico ressalta que outros bons poetas ficaram de fora da coletânea.
1
José Kozer
Nascido em 1940, José Kozer é poeta, ensaísta e tradutor (os pais eram emigrantes judeus). Mora em Miami, nos Estados Unidos. Começou a publicar em 1972. De acordo com Pedro de Armas, é “o poeta cubano vivo de maior prestígio internacional”. E sua “a poesia responde a uma ‘poética da dificuldade’ e cruza várias tradições, como a judia e a norte-americana, o simbolismo e as vanguardas, o modernismo e o barroco” de Lezama Lima. “É com o neobarroco que Kozer tem sido mais identificado. Menos denso do que Lezama, foge do mito e da História, mas não de uma recuperação linguística da sua experiência cubana. (…) O que melhor o define é aquele verso de Marina Tsvetaieva — ‘Todos os poetas são judeus’ — que tão bem corresponde à sua natureza diaspórica e cosmopolita”.
Kozer se explica: “Na minha poesia há um eco de ecos: uma palavra seduz-me e torna-se-me natural. A palavra é para mim um boomerang: vai e vem através de registros dissemelhantes, prolifera, lateraliza-se constantemente, faz lembrar o movimento de formigueiros, segrega uma teia de aranha”. Pedro de Armas sublinha que “o texto é a pátria de Kozer”. Até porque os dois Castros, Fidel e Raúl, arrancaram o país “dos” cubanos que não aceitam seguir a “ética” comunista em sua inteireza ou mesmo parcialmente. Fora da revolução, nada, disse Fidel.
No poema “Centro de gravidade”, Kozer assinala “A minha Pátria é a irrealidade”. Adiante, acrescenta: “É o zero a minha Pátria”. O que pode torná-la realidade? A poesia. O cotidiano de Cuba, de uma família, é relatado, aparentemente, com a precisão da invenção poética.
Gramática da mamã
José Kozer
Em maio, que ave era
a que a mamã amou: ou falou das mimosas.
Diz que não recorda o nome dos rios que
Circunscreviam a sua aldeia
natal: ainda que
sempre se afogassem
um varão e uma fêmea no Verão um varão e uma fêmea
no Verão. Menciona
uma conversa
crucial com as suas irmãs: são como amigas entrelaçadas
pelo mindinho, ir-se-ão.
Quanto desânimo, ainda
que nos camarotes
haja um centro de mesa com frutos tropicais, sobre
a coberta formosas meretrizes que falam um idioma
gutural, não as assusta
a aviação
nem o cabo transatlântico (letras) que atiçam os gorriões
boquiabertos ou soltam
borboletas de luz. Chegarão
entre rapazes entalcados e com guedelhas aromáticas
que se irão disseminando por Apodaca Teniente Rey
Acosta, acabarão
por adquirir
um roupeiro de acaju com umas iniciais tíbias na roupa
Interior
e que sirva
ao mesmo tempo de caixa-forte. Estabelecer-se-ão, e logo
num esmerado castelhano.
2
Reinaldo Arenas
Reinaldo Arenas é mais conhecido no Brasil pelo belo e doloroso livro “Antes Que Anoiteça” (levado ao cinema com Javier Bardem), um retrato amplo da vida em Cuba que chocou os stalinistas locais e os moralistas de outras plagas. Perseguido, fugiu de Cuba e se suicidou (estava doente, em decorrência de complicações derivadas da Aids) nos Estados Unidos, aos 47 anos. Ele era um prosador e poeta de primeira linha, admirado por, entre outros, Harold Bloom.
Pedro de Armas postula que “sua poesia, uma das mais diretas que se escreveram em Cuba, é ao mesmo tempo lúdica e trágica, colérica e sóbria, desalinhada e efetiva; e leva ainda mais longe uma visão descarnada da história do país. Escrita da intempérie, reflete o horror do passado escravagista e a sua incessante repetição sob o totalitarismo, horror que Arenas experimentou na própria carne”. Considerado como “perigoso” pelo regime, por ser crítico e homossexual (chegou a ser preso). “El Central” foi escrito quando ele passou meses cortando cana, sob o tacão do castrismo. “Toda a sua poesia foi agrupada na trilogia ‘Leprosorio’, uma antiépica que desmonta o mito da pátria como lugar de redenção, reduzido agora ao único recurso que o tornaria compreensível: a violência. Os seus irreverentes ‘Sonetos Desde el Infierno’ estão entre o melhor da sua obra.” Sua obra tem a ver com Aretino, Quevedo, Villon, Baudelaire e Lautréamont. Tudo, inclusive o “cu”, é motivo para a poesia de Reinaldo Arenas. Pode-se cantar o homem, mas por que também não debochar dos amantes, seres às vezes melosos e xaropescos?
No poema “Contribuições”, começa com um ícone da esquerda, Karl Marx, que, se tivesse vivido no século soviético, talvez tivesse sido enviado para o Gulag. “Karl Marx/não teve nunca sem sabê-lo um gravador/estrategicamente colocado no seu sítio mais íntimo.// Ninguém o espiou do passeio da frente/enquanto rabiscava à vontade folhas e mais folhas.” Ao falar do filósofo alemão, do que não aconteceu com ele, Reinaldo Arenas está a dizer sobre a vida em Cuba. O serviço secreto cubano foi instruído pela polícia política da Alemanha Oriental, a Stasi. Portanto, a intimidade do indivíduo se tornou assunto menos do público, e sim do Estado.
Não é por Hamlet que morre a suicida
Reinaldo Arenas
Não é por Hamlet que morre a suicida,
mas é pelo rio que passa murmurando,
sempre entre barbacãs carcomidas,
a horrível trama do porquê e o quando.
Não é por amor que inicia a partida
para as águas que a vão precipitando,
mas porque já enfeitada e na comida
uma mosca ante o seu nariz passou voando.
Ofélia entre a águas vai adormecida,
pensam alguns que a vão olhando.
Infelizes, desconhecem a investida
que um peixe às suas nádegas vai dando.
Triste final, depois que já não há vida
do prazer de viver vai desfrutando.
3
Reina Mária Rodríguez
Reina María Rodríguez e Ángel Escobar Varela se destacam no início dos anos 1980. No começo apostam numa poesia coloquial. Pedro de Armas enfatiza que são “devedores de uma certa moral comunitária. Será precisamente o desencanto perante a Utopia, ou o não poder escapar plenamente desse desencanto, o que os converte de imediato em extraordinários poetas”.
O discurso de Reina María, a partir de “En la Arena de Padua”, é elegante e reflexivo, no dizer de Pedro de Armas. “O corpo, o desejo e a dor do quotidiano se aliam sobre um fundo de incerteza histórica.” O crítico avalia que “um dos seus maiores méritos foi o de conjugar o privado — nunca o intimista — com o externo, quer sob o reconhecimento das ruínas como último refúgio, quer ao inventar mundos possíveis, estranhos àqueles que o circundam. Reina María comporta-se como uma testemunha que dá fé e, ao mesmo tempo, fabula”.
Reina María, de 69 anos, permanece em Cuba, onde dirige o projeto cultural Casa de Letras e edita a revista “Azoteas”. “Violet Island”, do qual se publica um trecho, é um belo (e longo) poema: “Eu conheci certo homem, um homem singular./ cuidava todos os dias e todas as noites da luz do seu farol,/ um farol mediano que não sinalizava muito,/ um farol pequeno para embarcações de pequeno porte/ e obscuras povoações de pescadores. Ali, na sua ilha/ele intercambiava com o seu farol as sensações”.
Noutro poema, “Ovo de cerzir”, Reina María pontua: “Fez um aborto com uma agulha,/ mas o ovo continuava preso (obscuro)/Como uma gema dura, sem se desprender./ O seu dedo não conseguiu arrancá-lo”.
As brutas
Reina María Rodríguez
Quatro mulheres enforcaram-se no planalto.
Degolaram com paciência os seus animais
as suas vinte cabras
os seus dois cães de raça,
e os corpos
penderam no vazio.
Mas o vazio tinha nesse dia uma luz roxa
e havia pássaros presenciando o sangramento
daquele sangue jovem.
Eram irmãs
E os cães eram amantes
e as abras pastavam sobre a mesma colina
cruzavam e descruzavam as suas patas dianteiras
com um lento movimento de felicidade.
Ao levantar-se, ninguém estava com ânimo para assistir à
paisagem.
Ninguém ouviu o canto das cabras
ao concluir o seu caminho.
Ninguém ouviu ladrar os cães
(o seu silêncio é a morte)
e não há que virar os olhos
para os cumes nevados
com as quatro mulheres pendurada
(podem ser de argila a esta distância)
figuras de palha seca ao sol,
(espantalhos)
alguma ilusão de cinza no alto.
Atrás, segue passando o rio.
Cada vez mais claro, mais manso.
O vento balança-as a cada momento.
Ninguém se atreve contudo a descê-las.
Ninguém quer conceber o uivo sem eco
de planalto.
Mulheres sem homens (bestas) com os joelhos fracos
— não foram elas as do grito, as da queixa —
foi mais dos animais a lamentação.
Soa um corno de caça medieval.
O homem numa névoa de paixão, recordações
e amargura
(baixa)
mas chegou tarde para as resgatar.
Luciana casava-se na próxima semana.
Não pôde adiar a decisão coletiva,
o rito de morrer das suas irmãs.
justa cerzia para um orfanato
e Quisque dava de comer aos animais.
Umas vidas simples…
Quisque, Justa, Lucía e Luciana
rebentaram o cordel que juntas as atou.
As brutas, diziam-lhes.
As sábias, murmuravam.
Contradição da representação.
Formalidades.
Quatro figuras, vinte cabras
e dois cães de raça caem como sementes no orvalho.
Uma mão, o dorso de um cão, a falange,
um pescoço cortado em cruz
o meu focinho, o teu.
cordel que as une é o limite?
O limite esse grito que ninguém escutou?
Como tirar os olhos de uma paisagem
sem cães nem cabras?
4
Ángel Escobar Varela
O poeta Ángel Escobar Varela, cujo pai matou a mãe com uma navalha de barba, se suicidou aos 40 anos, em 1997. Deixou uma obra poética interessantíssima e também teatro (a peça “Ya Nadie Saluda al Rey”). Negro e com transtorno mental (esquizofrenia), era discriminado. Porque não era “enquadrável”.
Na visão de Pedro de Armas, Ángel Escobar expõe o “desastre da Utopia, encarnado no próprio corpo. Negro, órfão e internado desde criança em escolas estatais. A sua poesia, áspera e amarga, ainda que não isenta de ironia, traduz o drama pessoal de quem comprova que não existe a justiça prometida e que a História se tornou, em última análise, teatro e falsificação. Os seus tópicos recorrentes são a fragmentação do Eu e as vozes do Outro (a sua escrita é a do duplo e da alucinação), a própria morte e o lugar marginal do sujeito negro na sociedade cubana, a quem vê como um novo crucificado”. Entre suas influências estão Rimbaud, César Vallejo e Jorge Luis Borges.
Seu poema “Coloquial” é tão belo quanto doloroso. Ángel Escobar, neste poema, “dá conta do começo da sua loucura durante uma viagem à União Soviética, em 1986. Este poema mostra claramente a percepção que Escobar tem do poder em sentido amplo e do desamparo do indivíduo numa sociedade totalitária”. A sociedade redentora dos comunistas, o paraíso terrestre, nunca chega — está sempre por chegar. Com o presente sempre sacrificado pela busca do futuro radioso. Como o bom futuro não acontece, o presente é sempre uma desgraça.
“Coloquial” mostra como os negros são tratados, em Cuba e na União Soviética — com desrespeito e brutalidade. O suicídio de Ángel Escobar é, de algum modo, uma espécie de assassinato indireto. Um assassinato “cometido” pelo Estado e por seus representantes. O texto mostra um poeta que fala de si, que mostra a falta de liberdade em Cuba, para, de alguma maneira, falar também de todos. É também bem-construído — com uma lógica sóbria (nada delirante) — e não mero discurso político ou produto de raiva incontida. Ira há, por certo, mas trabalhada pela mão poética. De resto, não há poesia fora da história, meramente invenção ascética.
“O escolhido” é um dos poemas mais bem elaborados de Ángel Escobar. “Sei que apenas os ruídos em que ardo se sucedem. (…)// Vou morrer./O meu corpo é apenas um corpo acocorado. (…)// o gosto de caminhar e ver/e tocar e bem dizer fazem-me invulnerável. (…)// Matam-me. Fazem-no como se eu fosse outro. (…)//Agora o meu corpo é apenas um corpo em que chocam/luz e sombra e acabou-se e não voltes. (…)// Sou o que fui. Sou o que não serei. (…)// Não. O estranho sou eu. (…)//Tudo o que temi/envolve-me. Tudo o que ansiei acolhe-me”. Este poema, que inclusive menciona facas, “a prefiguração das facas”. Há um certo lirismo descarnado. Quer dizer, é uma dor profunda, não lírica, mas o bardo cubano consegue dotar os versos de certo lirismo. Aqui e ali, lembra João Cabral de Melo Neto, o poeta da secura, das pedras (que são facas não polidas) e das facas (que são pedras polidas).
No poema “Se por acaso a alguém interessa executar esta peça”, Ángel Escobar escreve: “Não me chorará ninguém./ Nem à direita nem à esquerda nem ao centro.// Porque não disse o adequado no tempo certo,/ nem o certo no tempo adequado”. Lembra, e não vagamente, o poeta russo Óssip Mandelstam, que, tendo dito que Stálin tinha bigodes de barata e era autoritário, foi preso e morreu no Gulag, em 1938, aos 47 anos. Outro “assassinato” indireto. Estados que matam poetas, direta ou indiretamente, são “suicidas”. Porque terminam mal na História.
Coloquial
Ángel Escobar Varela
Eu tracei um fugaz sinal de fumo sobre as Ilhas —
e estive nove anos parado num corredor
esperando que um funcionário lhe desse o visto.
Eu estive em Moscou — uns vinte e seis graus abaixo de zero —
entre a morte de Chernenko e a de Andropov —:
o aduaneiro gritou-me, como a um bandido,
em russo, naturalmente; e os que iam comigo
deram-lhe razão —
eu era, também para eles, suspeito,
e fizeram-mo saber, num espanhol muito claro,
naturalmente —; naquele momento quis ter suas asas,
mas isso não o entende a polícia do mundo,
e meteram-me num táxi
entre dois poetas das Tropas Especiais —;
eu repliquei “os nossos ministros somos nós” —:
o Adido Cultural olhou-me como se olha para um morto.
Eu morri a 20 de março de 1987.
Isto é, três anos depois desse olhar —
que me mortificou como uma Permissão de Saída.
Eu estive em Paris —
no Bicentenário da Revolução Francesa.
Caíram-me em cima quatro fuzilados de dentro
(falo de Cuba, já sabe),
vultos envoltos em jornais, e os outros,
os mortos de Tiananmen que já não veriam
as pirâmides que agora tinha o Louvre.
Eu estava só e louco e hirto —
e uma amiga falava-me da França Profunda.
Depois não sei, passaram-se tantas coisas.
Hoje trato de falar sem subterfúgios —
os esbirros olham-me com os olhos de uma vaca
suja. A minha mãe, que morreu cedo,
vem e diz-me baixo: “Não sabem que fazer contigo.”
Mas eles sim sabem-no;
seguramente me mostrarão os instrumentos —
isso, como a bomba de Cohen, faz parte da função:
nunca está obsoleto.
5
Rolando Sánchez Mejías
Pedro das Armas diz que “Rolando Sánchez Mejías e Antonio José Ponte, como em geral os poetas e escritores da geração de 1980, têm perante si o dilema de descobrir o melhor da tradição poética cubana e de a renovar, abrindo-a às novas correntes internacionais e devolvendo-lhe um caráter cosmopolita, resolutamente moderno e não insularizante”. Os “Filhos da palavra” são inspirados por Vallejo, Vicente Huidobro, Borges, Octavio Paz, Mallarmé, Henri Michaux, Thomas Bernhard, Nietzsche, Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Félix Guatari. Poesia e história se mesclam, com uma fazendo a outra dançar, como se parceiras coladas fossem. Há, nesta geração, poetas neobarrocos, conceituais, experimentais, neomarginais. Rolando Sánchez e Carlos A. Aguilera criam revistas, como a “Diásporas” (1997-2002), e espaços alternativos. A perseguição do Estado, que exige uma cultura a serviço do poder — modelada pelos comunistas —, leva tais bardos a imigrarem ou ao exílio.
Para Pedro de Armas, “o que mais caracteriza Sánchez Mejías talvez seja a sua ideia de poesia como experiência da escrita e, ao mesmo tempo, como exploração dos limites da linguagem, o que o obriga a transgredir as normas do gênero, apelando à prosa e ao uso de outros discursos (antropológicos, políticos etc.) como lugares de confluência”.
Exilado, Sánchez Mejías, de 62 anos, mora em Barcelona. No poema “Problemas da linguagem”, (a)firma: “O tempo é um porco veloz/ que cruza o bosque da vida!”.
Foi-se acumulando
Rolando Sánchez Mejías
Foi-se acumulando.
Na realidade não há dor,
não pode haver dor
depois da dor.
Depois da dor
não há nada,
dizem os monges budistas.
E depois do nada?
não há nada,
diz o senso comum.
Foi-se acumulando.
Não me está a acontecer a mim.
A mim está a acontecer-me outra coisa
que não entendo
nem entendes.
Não me está a acontecer a mim,
nem a ti,
nem a ninguém.
Depois do nada
não há nada.
Ou há tudo,
depende.
A mim está a acontecer-me outra coisa.
Vem,
vou dizer-to.
Foi-se acumulando.
6
Ismael González Castañer
Aos 60 anos, Ismael González Castañer vive em Havana, onde dirige oficinas literárias. “Mercados Verdaderos”, de 1998, é considerado sua obra mais emblemática.
“A poesia de Ismael González coloca um sujeito marginal e, amiúde, negro em primeiro plano”, no “território da familiaridade”. Trata-se, pontifica Pedro de Armas, de “uma poesia baseada no diálogo entre cultura erudita e cultura popular, em que se mesclam a citação literária e a referência local, o banal e a morte, a graça e a inconformidade, e onde se apela constantemente à frase como construção rítmica ou musical”.
O das amigas
Ismael Gonzáles Castañer
Tenho umas amigas, que entre verdade e mentira
disputam o meu amor ou a amizade, que é o vento.
Chegam
e pudesse eu discriminá-las muito bem,
porque me discrimino eu, que abro caboucos,
porque sou um homem negro…
e já sabem que nós os homens negros
andamos sempre algo tensos/muito cansados.
A vida a mim tem-me pedido mais
e deixou-me muito mais de vento,
que é estéril, recatado, indiscreto
e sobretudo um vencedor/um perdedor.
Um homem negro não encontra a árvore
se não correr na noite.
Claro que às minhas amigas
geralmente eu lisongeio-as
quando chegam/quando chegam e depois quanto partem,
pois são como os meus alter-egos: belas, brilhantes,
teimoso…
Com uma rara continuidade da morte
e a perguntas
Amo-as. Deus, não sabes tu quanto.
Ontem mesmo não estavam aqui
e eu não encontrava a árvore/
/talo.
Dizia, entre as crostas do Museu “Oh, Vento:
o que é o mal/o que é?”
tudo é normal ou é de janeiro;
o vento gira entre as copas
e a rosa, girando, desfê-lo.
7
Antonio José Ponte
Aos 57 anos, Antonio José Ponte é autor do livro “Asiento en las Ruinas”, de 1997. Além de poeta, é apontado como “excelente narrador e ensaísta”. Seu ensaio “El libro perdido de los origenistas” mostra como a política cultural da ditadura cubana manipula o pensamento de José Martí, Lezama Lima e Virgilio Piñera. É autor do romance “La Fiesta Vigilada”. O regime comunista o expulsou da União Nacional de Escritores e Artistas de Cuba, por considerá-lo como adversário. Mora em Madri, onde dirige a revista “Encuentro de la Cultura Cubana”.
A poesia de Antonio José, propõe Pedro de Armas, “mostra um enorme equilíbrio interno como resultado de uma extensa e bem assimilada cultura que vai desde os líricos gregos até os místicos espanhóis e desde o simbolismo até Pessoa, Kaváfis e Octavio Paz”. O autor regressa “à modernidade por vias não experimentais”. Há “uma rica veia elegíaca, onde o sentimento de perda é sempre exposto com sobriedade”. Ele escreve “não sobre as ruínas, mas a partir delas”, aproximando-se da concepção da história de Walter Benjamim.
No antigo bairro das putas
Antônio José Ponte
Devem estar secando os seus cabelos ao sol
as putas de antigamente que continuam vivas.
Ao redor do pescoço uma toalha húmida,
algumas pétalas no balde de água,
as suas cabeças de rainha vencida olhando um gorrião.
O gorrião procura sementes de arroz espalhadas no chão.
Que capricho de pássaro não terá a memória
que salva um grão, uma noite e um homem
de entre tantos homens e noites como foram.
Com tantas unhas amarelas de ave as mulheres
abrem madeixas para que o sol chegue até o crânio.
As putas de antigamente que tristeza como preparam a esta
hora
o seu arroz, o seu ovo estrelado, a sua banana madura na
manteiga.
No antigo bairro das putas sobrevém o cansaço.
O que procuram despertar tantos livros, tantos retratos de
família,
algo nomeável com espessura, profundidade, e que a vida
humana tem
encontra-se aqui.
Cansaço de ver fotos de cabeças agrupadas:
celebrações, ritos, sentenças, multidões, vagões cheios.
No bairro dos gestos repetidos o ar leva tantas camadas
como um pastel folhado.
As sobreposições, o empilhamento
de uma geração sobre as anteriores,
o húmus dos homens, sentem-se como um peso.
Pode falar-se como em nenhum outro lugar do fundo do
passado.
8
Omar Pérez
“Algo de lo Sagrado”, de Omar Pérez, é, de acordo com Pedro de Armas, “um dos poemários mais sólidos da Geração de 80”.
“Omar Pérez inicia-se com uma poesia civil, que tem como alvo o mito do herói e a pedagogia revolucionária, entre outras diretrizes do discurso do regime. O seu tom é irônico e mesmo mordaz, mas sempre exemplarmente sutil, e talvez por isso mesmo tão real para a denúncia”, explica Pedro de Armas. Entre suas influências, na fase inicial, estão T. S. Eliot e W. H. Auden.
Em seguida, sua poesia se torna próxima “ao zen e à mística”. Ele “busca um verso mais próximo da oração e da reza. (…) O poeta empenha-se em sustentar o caráter transcultural, sem fronteiras, mas primevo — próximo do canto — da poesia”.
Omar Pérez, considerado “notável tradutor”, é autor dos livros “Algo de lo sagrado” (poesia) e “La Perseverancia de un Hombre Oscuro” (ensaios sobre poética e tradução). Ele vive entre Amsterdã e Havana.
No poema “Visões no espanhol instrumental”, diz: “Nem todos os que habitam a cidade são cidadãos”. Em “Sangue de alunos”, escreve: “Todos necessitamos de um pai/ainda que seja macilento. (…)/o jovem pede ao seu criador uma palavra/que o ajude a não atravessar cego pelo fumo/a distância que o separa do carniceiro”.
O poema abaixo é um retrato, praticamente antropológico dos cubanos, de sua arte para sobreviver em circunstâncias tão difíceis, tanto do ponto de vista político — dada a falta de liberdade de expressão — quanto econômico. O que fazer? Sucumbir ou criar? O que faz o poeta? Não faz discurso, refina a linguagem e “sente” e “expõe” o que ocorre via poesia.
Contribuições para uma ideia rudimentar de nação
Omar Pérez
Nas voláteis noites de um Inverno
que a natureza confirma com magnanimidade
o cubano treina-se para a diversão ou para a amnésia,
muito injustamente supõe-se às vezes que são a mesma coisa
leva doces a Deus, fermenta os dialetos
combate a cirrose com fruta em calda, faz comércio;
diz-se então que o O Cubano inventa.
Nas pesadas coreografias de um Verão
que a natureza autoriza já, com desconfiança
vai o cubano até ao oceano com oferendas e arpões,
muito injustamente supõe-se às vezes que são a mesma coisa
enumera com os dedos as perdas, exerce a infração
leva as mãos aos bolsos, jura e compromete-se;
diagnostica-se então que O Cubano inventa.
Assistamos ao território improvável
onde o cubano e O Cubano conversam viril, pastosamente
ali perceberemos em que travessias, em que estranhas
paragens
em que trocas
contraímos tanto engenho.
9
Damaris Calderón
Na visão de Pedro de Armas, “a nudez e a dureza” caracterizam a poesia de Damaris Calderón. Seu “estilo é agudo e cortante, de uma surpreendente vitalidade, que se apoia no seu talento para captar a existência como dilaceração”. Ela é autora do poema “A Marina Tsvetaieva”, que o crítico qualifica, com razão, de “excelente”.
Formada em Filologia, Damaris Calderón vive no Chile, desde 1995. Ela nasceu em 1966, em Havana. “É uma das vozes mais conseguidas da Geração de 80. (…) A sua poesia parece derrubar todos os limites, ao transmitir, sem o menor alarde, uma experiência de intenso e infindável desenraizamento.”
No belo poema “Dois girassóis sobre o asfalto”, Damaris Calderón assinala: “O mar, como um patrulheiro/pisando-me os calcanhares”. Em “Céspede inglesa”, diz: “Porque o homem/ — como o pasto —/ também deve ser cortado”.
Damaris Calderón “assume o legado crítico de Virgílio Piñera”. O que não é o mesmo que repeti-lo.
A Marina Tsvetaieva
Damaris Calderón
O frio
de um torrão de açúcar
na língua de uma chávena de chá
de um pão que salta
em fatias sangrentas.
O ofício de lava-pratos,
as genuflexões
e as mãos que todavia
se submergem
com certa prudência.
Os vermelhos
os brancos
os cabeças-raspadas
e os cossacos
poderão derrubar a minha porta a pontapé
ou apareça uma corda
com que atar um baú e enforcar-me
sem que eu estremeça um centímetro.
10
Alessandra Molina
“O esplendor e o luxo verbal constituem a marca” da poesia de Alessandra Molina. A autora, pontua Pedro de Armas, “dá mais atenção à própria linguagem do que à existência; a linguagem é para ela intelecção e despojo, luxo de pormenores, arborescência e sobretudo uma prova — o maior dos obstáculos: a que a impede de ser de novo natureza”.
O poeta Antonio José Ponte sugere que “Alessandra Molina é a poeta cubana que com mais segurança se move dentro do mistério”. Ela está mais próxima do legado de LezamaLima, que disse: “O difícil é estimulante”. Pedro de Armas acrescenta, poeticamente: “Só há substância ali, onde se arranha o véu do indizível, e a poesia volta a ser aura, meio-dia, exato, verticalidade”.
Na acepção de Pedro de Armas, Alessandra Molina “é talvez a última grande poeta cubana do século 20 e sem dúvida a mais centrada na linguagem, na escrita como exercício do conhecimento. Minuciosa e contida, surpreende tanto quando junta natureza e artifício, paisagem e mente, como quando indaga, ‘à maneira de um estudo’, algum fragmento da vida. (…) Há que destacar o seu excelente domínio do poema em prosa”.
Radicada nos Estados Unidos, Alessandra Molina é autora de “ensaios imprescindíveis”, como “Un Mundo que va a Existir”, no qual discute “as relações entre o poder e a literatura”. O ensaio está inserto no livro “La Utopía Vacía — Intelectuales y Estado en Cuba”, de 2005. A autora nasceu em Havana, em 1968.
No poema “Outras formas do silêncio”, Alessandra fala diretamente do comunismo em Cuba, o que se criou para ser um paraíso, mas se tornou um purgatório, para alguns, ou um inferno, para muitos: “O nosso ódio feroz à riqueza/condenou-nos a remoer hora após hora”. No belo “Amigos de infância”, poema em prosa, assinala: “… têm-se no amigo de infância como em nada ou ninguém as suspeitas sobre a nossa vida. Daí o seu rosto a uma existência que, pensando bem, desconhecemos. Daí a sua consciência à nossa inconsciência, e que seguramente vive ali onde a nossa memória já não alcança. Ele viu-nos, isso sabemo-lo, naqueles primeiros anos onde ser, e ser como corpo, era um assunto do olhar” (publiquei apenas trechos deste magnífico poema).
Desmemória
Alessandra Molina
À tua chegada sentamo-nos juntos,
vi acercar-se o cão
e perguntei-me com voz e palavras de outro
porque convocariam a minha mão sobre o seu dorso
“ondas de pele até a coleira anelada”,
porque se perde a minha mão
onde começa o sangue do animal.
Estendeu-se entre nós
aquele que não tem verdadeira alegria, nem fim, nem
compreensão,
esse instante animado da desmemória.
Contava-me episódios,
nomes de uma região infértil
marcados pelo chiar das presas na terra;
nomes claros, sonoros
e outros estranhos e obscuros
como a mancha azul sobre a língua
nos fala do veneno
ou da origem de uma raça nobre.
Caminhos, encostas. O que afunda e aflora,
de que forma ascende a fruta à lembrança
pelos rígidos degraus do paladar,
de que modo a procuraremos ainda.
Escutei e compreendi duplamente aquele episódio,
comprovei-o com o ânimo de um artesão
que escolhe a ferramenta sem virar o rosto,
Como se a sua mão fosse o interior do objeto.
Retirei a minha da boca do animal
que mordicava suavemente,
já adormecido,
e essa humidade tépida, contudo,
não me deixava aperceber do começo da chuva.
Tudo indicava que devias partir,
que partirias.
Vi o cão procurar um sítio de repouso
onde se estende aquele que não tem amor.
Não há edição brasileira do livro de Pedro de Armas. A edição bilíngue comentada acima é de Portugal, e conta com traduções escorreitas e um ensaio de qualidade de Pedro de Armas. Citei apenas a segunda parte do artigo do crítico e transcrevi alguns poemas (há vários outros, de rara beleza). Na primeira, ele comenta a poesia de Cuba desde seus inícios, com, entre outros, José Martí, até chegar ao refinamento máximo de Lezama Lima, o maior poeta do país. O meu exemplar foi adquirido na Livraria Travessa, de Brasília. Apesar do preço alto, vale a pena ler o livro, que contém muito mais do que foi descrito aqui.