Os soviéticos foram decisivos para a vitória dos Aliados, mas seus combates e vitórias são praticamente ignorados pelo dominante cinema dos Estados Unidos
O inglês-polonês Norman Davies é um dos maiores historiadores da Segunda Guerra Mundial, o que fica provado por seu segundo livro publicado no Brasil, “Europa na Guerra — 1939 e 1945” (Record, 599 páginas, tradução de Victor Paolozzi). Leio de forma idiossincrática: pelo fim (só romances devem ser lidos na sequência). O capítulo 6, “Representações — A Segunda Guerra Mundial em imagens, literatura e história”, não é o melhor, certamente, mas é um dos mais interessantes. Neste texto, priorizo o cinema.

Norman Davies, historiador: “O cinema jamais produzirá um relato da Segunda Guerra Mundial completo ou definitivo. Ele é bom para dar relevo a episódios, para dramatizar ações e pequena escala e para interpretar os dilemas e idiossincrasias de personalidades específicas
O cinema, antes da hegemonia da televisão, era tudo, ou quase. Davies conta que “Goebbells vira ‘O Encouraçado Potemkin’ (1925), de Serguei Eisenstein, e ficara impressionado. Era o suficiente, disse ele, para transformar cada espectador em um bolchevique. Todos os países combatentes de 1939-45 produziram documentários sob condições de rígida censura”. Como continha uma mensagem antigermânica, e os soviéticos eram aliados dos alemães, “Alexandre Nevski” não pôde ser exibido entre 1939-41.
Os filmes de guerra, avalia Davies, não foram feitos, no geral, para descrever com precisão os combates. “Com muito poucas exceções, o gênero filme de guerra foi devotado a celebrações da causa aliada e, desse modo, à presumida superioridade das forças aliadas e dos objetivos de guerra aliados. (…) À medida que o tempo passou e Hollywood esquentou as turbinas, a tendência aos exageros patrióticos desaguou quase que imperceptivelmente em falsificações descaradas.”
Entre os filmes que escaparam às falsificações, Davies cita “The Cruel Sea” (1953) e “Die Brücke” (“A Ponte”, de 1959). Baseado em “Mar Cruel”, romance de Nicholas Monsarrat, publicado no Brasil pela Editora Mérito, em 1952, o filme “descreveu a guerra naval de maneira pouco favorável. ‘Die Brücke’, uma produção alemã, pretendia mostrar a inutilidade da guerra. Ele apresentou os soldados alemães sob uma ótica diferente: não como diabos louros latindo ordens, mas como adolescentes despreparados enviados ao front para serem mortos por tanques americanos. ‘A Cruz de Ferro’ (1977), de Sam Peckinpah, foi além. Com James Coburn estrelando como o durão cabo Steiner, a obra humaniza a Wehhmacht”.
Poucos filmes ocidentais trataram das batalhas na Frente Oriental, como se, nota Davies, a União Soviética praticamente não tivesse participado da guerra — quando a verdade é outra: os russos foram decisivos para a vitória dos Aliados. “A grande maioria dos filmes abordava quatro ou cinco temas fixos: a guerra aérea, a Batalha do Atlântico, a campanha no Norte da África, os ataques de soldados e os campos de prisioneiros de guerra. E o Exército Vermelho não aparecia em nenhum deles. Quando o tema central da guerra continental despontava, em filmes como ‘O Mais Longo dos Dias’ ou “Batalha das Ardenas”, limitava-se a exclusivamente aos combates na Europa ocidental. Nenhum filme importante jamais foi feito sobre a mais decisiva batalha da guerra, em Kursk — talvez porque não houvesse nenhum americano envolvido” (há um documentário nas bancas de revistas e sebos).

Cena do filme Quando Voam as Cegonhas, do diretor MIkhail Kalatozov | Foto: Divulgação
“As produções de maior qualidade”, registra Davies, “sem dúvida não apareceram no Ocidente. Apesar de todo o seu dinheiro e da ausência de censura formal, Hollywood simplesmente não conseguiu competir em termos de sensibilidade humana e sofisticação política”. Depois da morte de Stálin, os soviéticos e outros diretores do Leste Europeu, que sabem fazer cinema, começaram a trabalhar. “A melhor produção, vencedora da Palma de Ouro em Cannes, foi ‘Quando Voam as Cegonhas’ (1957), de Mikhail Kalatozov. O filme explora o espectro de emoções vividas por um casal de amantes, Veronica e Boris, que se conhecem nas ruas de Moscou e então são cruelmente separados pela guerra.

Cena de A Balada do Soldado | Foto: Divulgação
A produção foi logo sucedida por outra obra-prima, ‘A Balada do Soldado’ (1959), de Greigori Tchukhrai, que foi chamada de ‘realismo social com um rosto humano’. (…) Nessa mesma época, o diretor polonês Andrzej Wajda desafiou os limites da censura com dois extraordinários filmes sobre a guerra e suas consequências. ‘Kanal’ (1957) deve ser um dos filmes mais perturbadores já produzidos. Além de retratar o heroísmo do Levante de Varsóvia, que as autoridades comunistas condenavam totalmente, a película continha cenas sugerindo traição soviética. ‘Cinzas e Diamantes’ (1958), baseado num romance de Jerzy Andrzejewski, é construído sobre o fato não-expresso de que a sociedade do período da guerra foi predominantemente anticomunista e antifascista. A ousadia de Wajda aqui pode ser comparada à posição de Tchukhrai em ‘Chistoe Nebo’ (1961), que relata a história de um piloto soviético que sobrevive a um acidente em combate e à prisão alemã apenas para ser preso pela NKVD [antecessora da KGB] sob falsas acusações de espionagem”. Exceto especialistas, como os críticos Herondes Cezar, Lisandro Nogueira e Marcelo Franco, quem conhece esses filmes?

Cena do filme Cinzas e Diamante | Foto: Divulgação
Os famosos “A Lista de Schindler” (1993) e “O Resgate do Soldado Ryan”, ambos de Steven Spielberg, “são muito fracos em contexto histórico”. “Círculo de Fogo” (2001), “que apresenta um duelo de franco-atiradores em Stalingrado, tem toques de prioridades ocidentais”. “A Queda! As Últimas Horas de Hitler” foi discutido, nos Estados Unidos, de modo tolo, avalia Davies. O filme foi acusado de humanizar Hitler. Davies cita Ian Kershaw, com o qual concorda: “Acho difícil imaginar que alguém [além da habitual minoria neonazista] possivelmente tenha condições de achar Hitler uma figura simpática durante seus últimos e bizarros dias… Hitler, afinal de contas, era um ser humano, ainda que um espécime especialmente ofensivo e detestável”.

Cena do filme Kanal | Foto: Divulgação
Apesar de levar em consideração o cinema, Davies julga que não é o meio adequado para se compreender fatos históricos complexos: “O cinema jamais produzirá um relato da Segunda Guerra Mundial completo ou definitivo. Ele é bom para dar relevo a episódios, para dramatizar ações em pequena escala e para interpretar os dilemas e idiossincrasias de personalidades específicas. Mas parece perder sua força de maneira proporcional ao tamanho do tema. Uma batalha, uma campanha ou um general podem ser convincentemente abordados. Mas ‘O Mais Longo dos Dias’ é a maior amplitude que o meio cinematográfico pode dar conta. E houve 2.076 desses dias entre 1º de setembro de 1939 e 9 de maio de 1945. Pelo menos até agora, nenhum diretor encontrou uma maneira satisfatória de abordar a Frente Oriental e a Frente Ocidental em uma só tela. Contudo, a relação entre as duas fornece a chave de como a guerra foi vencida e perdida”.

Michael Caine, ator: não, a guerra não começou em 1941 | Foto: Reprodução
Uma história divertida e séria contada por Davies: “Dizem que o ator Michael Caine mandou seus filhos de volta para a Grã-Bretanha depois que eles aprenderam numa escola americana que a ‘Segunda Guerra Mundial’ começou em 1941”. Digo “séria” porque os americanos tendem a contar a história da Segunda Guerra a partir do início de sua participação no combate.
Davies é o autor do “Levante de 44” (Record), magistral livro sobre a batalha, perdida, dos poloneses contra os alemães. Os soviéticos não quiseram ajudar os poloneses, que foram massacrados. Stálin não enviou alimentos, armas e homens. Pressionado por Winston Churchill e Franklin D. Roosevelt, chegou a jogar armas e alimentos, mas sem paraquedas. Resultado: as armas chegavam quebradas e a comida, esfarinhada. Stálin avaliou que era melhor os alemães mataram aqueles que, futuramente, poderiam contestar o regime que planejava instalar na Polônia.
Embora não seja crítico literário, e sim historiador, Davies também analisa de modo competente a literatura que tratou da Segunda Guerra Mundial. Mostra suas qualidades e insuficiências.
[Texto publicado em abril de 2009. O livro de Norman Davies é de 2006 e saiu no Brasil em 2009. Portanto, 13 anos depois, outros filmes foram feitos]
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Cinema é entretenimento, não história. Tenho certeza que os russos tambem preferem assistir filmes contanto as proezas dos seus militares.