Chico Buarque é o maior intérprete (sem rival) de sua própria música
05 janeiro 2020 às 00h00
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Pode até não ser um cantor do nível de Elis, Gal e Milton Nascimento. Mas ninguém canta tão bem “Construção” e “Fado Tropical”
Impera nos tristes trópicos uma espécie de matriarcado musical: nenhum cantor brasileiro canta tão bem quanto as cantoras Bidu Sayão, Carmen Miranda, Elizeth Cardoso, Nara Leão, Elis Regina, Clara Nunes, Gal Costa, Maria Bethânia, Marina Lima, Marisa Monte, Marina de La Riva, Fernanda Takai e Elza Soares (o melhor vinho do cancioneiro patropi). Exceto, talvez, Milton Nascimento – o maior cantor brasileiro, ao lado de Elis Regina, Gal Costa e, quiçá, Emílio Santiago. Doideira? Pois é: o que seria da vida não se fossem as idiossincrasias? É o mundo torto e entortado das diferenças, com suas diversidades multiplicadas, que tornam a vida tão, tão, tão, eta palavrão feio, instigante e, uau, uau, uau, eta palavrinha bonita, tão, tão, tão excitante.
Chico Buarque não é um grande cantor e perde, longe, para as mulheres citadas e Mário Reis, Milton, este deus da música patropi – tão filho da razão quanto da emoção –, João Gilberto, Caetano Veloso, Emílio Santiago, Gilberto Gil. Mas, oh, Chico, assim era chamado em tempos idos, quando o país de chuteiras democráticas combatia as bicudas da pátria de chuteiras ditatoriais – quando o Buarque era acrescentado, era de bom tom acrescentar o Holanda, com um “l” só – é, se não um big cantor, um menestrel dos diabos e dos deuses, tão luciferino quanto divino, um grande intérprete (como Renato Russo – cuja voz não era lá essas coisas, mas interpretava como os deuses do canto).
Há cantores que são grandes intérpretes, há cantores que são apenas cantores – repetindo, ainda que muito bem, interpretações anteriores, mas às vezes sem acrescentar um detalhezinho para distingui-lo das matrizes – e há intérpretes notáveis, aqueles que pegam uma música e, quando cantam, a transformam, acrescentando um ponto na sua história. Nenhuma música sai “impune” dos lábios poderosos de Elza Soares – a Billie Holiday dos trópicos. O Rappa transformou “Súplica Cearense” – que, na voz de Luiz Gonzaga, já era um diálogo de Jesus com os afinados anjos cantantes – quase noutra música.
Pois Chico Buarque, agora sem a nobreza do Holanda, é um intérprete notável, dos mais brilhantes, de suas próprias músicas. Toni Trans-Tornado talvez esteja certo num único ponto: o autor de “Mulheres de Atenas” – um hino à liberdade – é mesmo mais intérprete do que cantor. Não se trata daquele cantor que enche os olhos, opa, os ouvidos. Não é uma Elis Regina, não é uma Gal Costa. Não, não é. Não é uma Marisa Monte, que canta inclusive, se é possível, até com as narinas, hermanas quase gêmeas de uma boca criativa e poderosa (não duvide se amanhã, num dia solar, se tornar uma cantora lírica – porque voz tem, e que voz).
Sim, estava dizendo: Chico Buarque canta suas músicas de maneira única e ninguém – literalmente, ninguém, nem os melhores cantores e cantoras – consegue interpretá-las melhor. De alguma maneira, dada sua identidade com sua criação artística, Chico Buarque, ainda que de maneira indireta – quer dizer, sem nenhuma intenção deliberada –, “mata” (ou reduz a força d)as demais interpretações.
Ouça Chico Buarque cantando “Construção” – espécie de hino do Brasil urbano, sua autêntica poesia concreta. Alguém consegue cantá-la melhor, com as devidas entonações, aquela espécie de suspensão, aquela dor realista que a tensão da voz transmite (ficamos com a impressão de que participamos da música, do que diz, do que está ocorrendo), do que o aedo de 75 anos? Oh, não. Ninguém chega perto, mesmo quando tem uma voz espetacular, mais afinada e depurada. Ouça, compare e tire suas conclusões. Há um “engajamento” – mais um engajamento na vida (daí a atemporalidade de sua arte, do que deriva sua longevidade no tempo), uma “entrada” na alma da sociedade e do indivíduo, do que um engajamento político (e este há, claro; seria loucura dizer o contrário) – na voz de Chico Buarque que é só dele. Na voz de outros, por incrível que pareça, não parece a mesma música. Parece uma música comum – como tantas outras que se ouve e se esquece. A voz de Chico Buarque é a chama que incendeia suas músicas e as torna tão interessantes e objeto de longas e eternas discussões.
Há quem cante muito bem “Fado Tropical”. Entretanto fora da boca de Chico Buarque, ainda que continue magnífica, perde sua força, sua ironia, seu ceticismo (na voz de outros parece até otimismo). A música é, de algum modo, um hino alternativo do Brasil, que inclusive nos conecta ao “pequeno” Portugal – na música “grande”, porque a aventura marítima foi, de fato, uma atividade grandiosa dos “filhos” de Luís Vaz de Camões –, e precisa ser cantada num certo ritmo, como se fosse uma crônica sendo narrada por um cantor, uma espécie de Homero moderno. Na boca de Chico Buarque é uma música esplêndida – rica em significados. Na dos outros, inclusive dos melhores, é uma música quase trivial – bela, mas com menos sutileza (que está tanto na letra do “fado” quanto na malemolência maliciosa do cantar).
É provável que Clara Nunes seja rival de Chico Buarque ao cantar “Morena de Angola”. E só? Não há outras “interpretações” muito boas, que engrandecem Chico Buarque? Há sim. Maria Bethânia “devolve”, por assim dizer, certo lirismo à música do artista carioca. Mas ninguém “canta” Chico quanto o próprio Chico. Parece que só ele sabe como tornar importante cada “trechinho” de suas criações artísticas – dando um toque que é só seu. Por isso, ainda que não seja um cantor majestoso – uma Elis ou uma Gal –, é um intérprete brilhante de sua própria arte. Se fosse apenas compositor, sua música seria mais, digamos, pobre, teria menos impacto. Quer dizer, a força de sua música advém, em larga medida, da visceralidade criativa de sua arte, mas deriva também de como (a) canta.
Há um “estilo” Chico Buarque de cantar. E este “modo” é grande, gigante – e não imitável. Quando não estiver mais entre nós, e não fizer mais parte do contencioso político do momento, aí o país poderá avaliar, de maneira adequada, sua arte-música (e até a litertura). A grandeza poderá ser reconhecida por todos, e não apenas por críticos e acadêmicos mais arejados.
Hoje, pego no contrapé da polarização política – na ditadura civil-militar, dizem, até militares da linha dura apreciavam a música de Chico Buarque, claro que às escondidas –, virou um artista “menor” e “degradado”. Militantes de direita, dos esclarecidos aos nada iluminados, atacam o cidadão e o artista. Porque o cidadão apoia o PT e defende Lula da Silva, espécie de deus do petismo, o artista “perdeu” substância. O apoio a Lula da Silva, mesmo depois da roubalheira toda – da corrupção sistêmica, o que prova que o ex-líder sindicalista foi “absorvido” pelas elites patropis, pela conciliação pelo alto, diria Raymundo Faoro –, resulta da cegueira de alguns artistas e intelectuais. Sem o poderoso chefão do PT – que aliás tende a “enterrar” o partido e este não tem como salvá-lo (portanto, os dois tendem a morrer abraçados) –, há quem acredite que não há salvação à esquerda.
Talvez seja possível sugerir que a esquerda só “renascerá” de verdade quando Lula da Silva se tornar passado. Aliás, ele já é história, mas não é visto como tal por alguns petistas e companheiros de jornada do petismo. Observe-se que os aliados do presidente Jair Bolsonaro estão apreciando a presença de Lula da Silva na política. Porque, obviamente, sabem que, enquanto o ex-presidente estiver na ribalta, nenhum nome surgirá nem terá tempo para se consolidar – a eleição para presidente será realizada daqui a dois anos e nove meses, quase um beicinho de pulga – e, portanto, dificilmente fará sombra a Bolsonaro em 2022. O grande adversário do presidente não é o centro político de João Doria e Luciano Huck – ainda é a esquerda. Mas esta precisa de tempo para consolidar um nome – digamos Rui Costa, o governador da Bahia. Se Lula da Silva continuar no proscênio, mesmo sabendo que não poderá ser candidato em 2022 – os processos só estão aumentando –, a tendência é que o centro acabe levando a melhor e polarizando com Bolsonaro.
Chico Buarque é, quem sabe, “vítima” da engrenagem política que polarizou o Brasil entre direita e esquerda – sem espaço para tolerância e nuances. A direita postula que a esquerda é parceira do Mafarrico e a esquerda informa que a direita é sócia do Grão-Tinhoso. Portanto, se o artista apoia a esquerda, mostrando coerência rara e coragem, é hermano de Lúcifer. Mas um artista pode e deve ser avaliado pelo viés de sua ideologia? Até pode, mas a avaliação tende a ser redutora. A crítica puramente ideológica é útil como instrumento de combate – de destruição –, mas não para compreender a ética do artista, que, sim, é sua própria arte, e supera, às vezes em larga medida, suas posições políticas. E, mesmo que não supere, se for esteticamente de qualidade, merece “louvores” – oh, palavra antiquada – de todos os indivíduos de boa vontade. Mesmo quem não o aprecie poderá dizer: “Não me agrada, mas eis um grande artista”. Não há “Tornado” que derrube a genialidade de um artista como Chico Buarque – o, insisto, grande intérprete de suas músicas.