Chico Buarque deve resistir aos próximos 100 anos e Bolsonaro tende a ser o Floriano Peixoto 2
13 outubro 2019 às 00h00
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O escritor e compositor tende à permanência artística. Mas o presidente dificilmente será um Vargas ou um Juscelino Kubitschek
Há pessoas, e não só políticos, que, tal a força derivada de algum poder, acreditam que o presente é eterno. Mas o presente — por exemplo, quatro ou oito anos de mandato executivo — é uma gota d’água na história de um país, na história dos homens. Quem viveu os 15 anos de poder ininterrupto de Getúlio Vargas, entre 1930 e 1945 — parte deles (1937-1945) sob uma ditadura cruenta —, certamente, ao menos por alguns instantes, chegou a pensar que o presidente era uma espécie de Deus, tal a bajulação e, ao mesmo tempo, o medo que se tinha dele. Pois o líder do PTB se suicidou, em 1954, e deixou um imenso legado, é certo. Mas está morto e enterrado. E, por mais que tenha sido um grande presidente, remontando o Estado nacional, não se deve desconsiderar que era um ditador, um político que esteve próximo de se aliar a Benito Mussolini e Adolf Hitler.
No momento, assiste-se um presidente, Jair Messias Bolsonaro, que se apresenta como de direita — anticomunista —, que parece, embora democrata, confundir-se com o Estado. “O Estado sou eu”, poderia sugerir, imitando o rei francês. Entretanto, na democracia, o presidente é, por assim dizer, um representante provisório do Estado. As razões de Estado, portanto, não devem ser confundidas com as razões do presidente. Na democracia, o presidente governa para a sociedade e não deve impor certas pautas — por exemplo, no campo comportamental. Digamos que Bolsonaro não seja reeleito em 2022, suas pautas podem ser inteiramente derrubadas pelo presidente seguinte, e exatamente porque não são de interesse da sociedade, e sim de parte da sociedade, notadamente de grupos conservadores.
O lulopetismo patrocinou o tal discurso do ódio — o “nós contra eles”. Repetindo a esquerda, Bolsonaro apostou em discurso similar. Agora, a se aceitar as regras do bolsonarismo, são todos contra a esquerda. Porém, se a pessoa não é de esquerda, mas não quer compor com os radicais de direita, rejeitando o “nós contra eles”, logo é tachada de “esquerdista”, de companheira de jornada de socialistas e comunistas. O próprio Bolsonaro não avalia a ambiguidade de seu governo, que, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, é liberal, mas, com alguns militares e o próprio presidente, é nacionalista. Há um certo hibridismo.
Mas, de repente, saltemos para o futuro — daqui a cem anos, quando o presente de 2019 será escassamente lembrado pelos indivíduos de 2119. Digamos que no Colégio Militar Fabrício Eça de Queiroz um professor faça duas perguntas aos seus alunos. A primeira: “Quem é o maior compositor popular brasileiro?” As respostas serão variadas, por certo. Mas vários alunos certamente mencionarão o nome de Noel Rosa, Ataulfo Alves, Cartola, Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, e Milton Nascimento (sem falar dos compositores eruditos, como Villa-Lobos e Ernesto Nazareth). O autor de “Construção” talvez fosse citado como o principal e, se eu estivesse vivo, assinaria embaixo.
Independentemente de sua ideologia política, que tende a esmaecer com o tempo — prevalecendo a qualidade da arte, pois a estética vai superando o discurso político-ideológico, dada a passagem do tempo histórico em que foi criada (a resposta artística acaba pode se tornar mais lembrável do que o tempo que lhe deu origem) —, a obra musical, até mais do que sua literatura, de Chico Buarque vai sobreviver, assim como a música de Bach, Beethoven, Brahms e Chopin, a poesia de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto e a prosa de Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lygia Fagundes Teles.
Se daqui a 100 anos Chico Buarque, sua arte, estará vivo, o que dizer de Bolsonaro? Eis a segunda pergunta formulada pelo professor, em 2119: “Quem é Jair Messias Bolsonaro?” Sem oportunidade de consultar o Big Pós-Tudo — sucedâneo do Google, que estará extinto, possivelmente —, é provável que os alunos — a maioria — respondam que não sabem de quem se trata.
A tendência é que, daqui a 100 anos, Bolsonaro se torne um novo Floriano Peixoto. Hoje, qualquer pesquisa feita nas ruas certamente concluirá que a maioria dos brasileiros não sabe o nome do segundo presidente da República do país.
Floriano Vieira Peixoto nasceu em Maceió, em 30 de abril de 1839 — há 180 anos —, e morreu em Barra Mansa, em 29 de junho de 1895, há 124 anos. Trata-se de muito tempo? Nem tanto. Mas o Marechal de Ferro está amplamente esquecido. Com Bolsonaro, daqui a 100 anos, em 2119, acontecerá o mesmo? É provável.
Se Bolsonaro governasse pensando em todos os brasileiros — e foi eleito para isto —, superaria a bandeira ideológica e comemoraria o Prêmio Camões para Chico Buarque. Porque se trata de uma vitória tanto do escritor-compositor quanto do país e da Língua Portuguesa ou do Português Brasileiro.
Emily Dickinson e a verdade
É provável que Bolsonaro ache que poesia é “frescura” e, por certo, há um frescor das coisas vívidas no poema de Emily Dickinson, americana do século 19, transcrito a seguir: “Dizer toda a Verdade — em modo oblíquo —/ No Circunlóquio, o êxito:/ Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo/ o seu sublime susto./ Como a meninos se explica o relâmpago/ De modo a sossegá-los —/ A Verdade há de deslumbrar aos poucos/ Os homens — p’ra não cegá-los.” (Tradução de Aíla de Oliveira Gomes. “Uma Centena de Poemas”, de Emily Dickinson. T. A. Queiroz, Editor. Página 135)