O Dr. Cloroquina, que se tornou um pária da ciência, recua e agora admite que a cloroquina não tem eficácia contra a Covid-19

Sabe o senador Luis Carlos Heinze, que sugere que dom Quixote e Sancho Pança são uma única “pessoa”? Pois é: para o político gaúcho é Deus no Céu, o presidente Jair Bolsonaro no Palácio do Planalto e o médico francês Didier Raoult na Terra. Mesmo com a recente “desmoralização” do cientista, o homem dos Pampas não para de citá-lo, como se Bíblia ou vade mecum fosse. Recentemente, saiu na França a biografia “Raoult — Une Folie Française” (“Raoult — Uma Loucura Francesa”), de Ariane Chemin e Marie-France Etchegoin. No Brasil, foi comentada pelo jornalista Bolívar Torres, de “O Globo”.

As biógrafas sugerem que Didier Raoult é ou era dado a uma mentirazinha. Estudante de Medicina, decidiu tirar dois anos de férias para, como o escritor Joseph Conrad, “passear” pelos mares. Ele teria viajado em “embarcações clandestinas”, com aventuras a granel. Pois não foi nada disso. Na verdade, viajou num navio de luxo. Com a fake news revelada, refez a história anterior e sugeriu que se tornou empregado do navio, um tripulante.

Há uma história nebulosa. Um pedopsiquiatra disse ao pai de Didier Raoul: “Escute, seu filho tem 180 de QI”. Portanto, um QI maior do que o de Mozart e Einstein. “Mentes diferenciadas” chegam a 140. Tudo indica que o QI 180 é uma farsa, mas o francês cresceu se achando um gênio, talvez, dado o quociente de inteligência que lhe foi conferido por “palavras”, o maior da França. Quando o debate sobre a cloroquina estava aceso, em todo o mundo, o médico disse: “Eu sou uma estrela, eu tenho tudo que (um grande médico) precisa”. Esqueceu de dizer que, ao mesmo tempo, tem uma imensa cara de pau.

Didier Raoult aprecia histórias que beiram a ficção e são rocambolescas. Ele garante que a mãe namorou o escritor Henry de Montherlant e acabou transformada em personagem da saga literária “Les Jeunes Filles”. Verdade? Ninguém sabe, talvez nem mesmo o médico de cabelos longos e jeitão de pirata (afinal, era um mestre do mares, possivelmente sem sair de sua cabine confortável).

Didier Raoult, francês: um cientista e médico mais preocupado em aparecer do que em provar suas teses | Foto: Reprodução
O irmão gêmeo de Simão Bacamarte

O que Didier Raoult parece buscar, mais do que o reconhecimento de seus pares — hoje, é visto como um pária pelos cientistas mais gabaritados do mundo —, é fama. Ficou entusiasmado quando, presidente dos Estados Unidos, Donald Trump se apresentou como uma espécie de garoto-propaganda da cloroquina, o medicamento que, na versão do francês, “trata” as pessoas contaminadas pelo novo coronavírus. Trata está entre aspas porque o médico, ao contrário do senador Heinze e do presidente Bolsonaro, já admite a ineficácia da cloroquina no tratamento de pessoas com Covid-19. Mas, antes, disse: “Trump fez da cloroquina um objeto-mundo, um hiper-objeto”, afirma o ser midiático da terra de Flaubert e Proust.

Antes de se descobrir que, apesar de cientista, Didier Raoult, no caso da cloroquina, era quase um curandeiro (com o perdão necessário aos curandeiros), Raoult havia se tornado tão famoso que o presidente da França, Emmanuel Macron, decidiu visitá-lo, mas de maneira sigilosa. “Às vezes temos a impressão de que os cérebros se esfregam um contra o outro”, disse, enigmático, o médico. “Mas”, segundo Bolívar Torres, “o guru do tratamento precoce tem uma queixa. Ele queria que o presidente tivesse usado um helicóptero para encontrá-lo. ‘Teria mais impacto’, justificou”. Como se vê, mais do que médico e cientista, o homem é um verdadeiro ator. Um par estelar de Dwayne “The Rock” Johnson e Vin Diesel.

O Alienista, de Machado de Assis

Cientistas de vários países, em publicações sérias — com QI alto, mas não inventados —, mostraram as falhas, clamorosas, dos estudos de Didier Raoult, que talvez tenha criado a ciência como “invenção”. “A biografia da dupla de jornalistas é a constatação de como teorias duvidosas podem facilmente ganhar força em tempos de incertezas, especialmente se encabeçadas por figuras carismáticas e antissistêmicas”, ressalta Bolívar Torres.

“Raoult é o populismo em versão superdiplomada, é o sábio superior que reivindica seu pertencimento às ‘elites’”, afirmam Ariane Chemin e Maria-France Etchegoin. “Em seus discursos autopromocionais sem pudor algum, os sem atributos veem apesar de tudo um tapa nos ‘poderosos’. Com um pé dentro e outra fora, Raoult se dá o luxo de quebrar a banca. E isso agrada”, afirmam as biógrafas.

A palavra “loucura”, no título do livro, sugere que se trata não apenas de loucura de Didier Raoult, e sim da França.

Se Machado de Assis fosse vivo, e pudesse ou quisesse reescrever o conto-novela “O Alienista”, certamente colocaria Didier Raoult como irmão gêmeo do médico Simão Bacamarte. Juntos, poderiam dizer: loucura pouca é bobagem. Mas e o senador Heinze? Ora, seria o porteiro da Casa de Orates. Porteiro, claro, não é paciente…