Poeta foi afastado do Itamaraty sob acusação de ser comunista. Livro mostra a conexão e a rivalidade entre o autor de “A Educação Pela Pedra” e Drummond de Andrade

“João Cabral de Melo Neto — Uma Biografia” (Todavia, 557 páginas), de Ivan Marques, é um trabalho de pesquisa estupendo. O poeta pernambucano é apresentado de maneira ampla, como indivíduo e criador, sem uma gota de hagiografia (a paixão distanciada do biógrafo ilumina o homem e sua obra). Neste (primeiro) texto, será apresentada a história de seu afastamento do Itamaraty por 20 meses, no governo de Getúlio Vargas, por ter sido denunciado como “comunista” pelo jornalista e político Carlos Lacerda, do partido UDN.

Em dezembro de 1951, em Londres, João Cabral, numa conversa com o diplomata Mário Calábria, “predizia o tempo inteiro a ruína do capitalismo, dos bancos, do imperialismo norte-americano, e a vitória próxima do comunismo de Stálin”, escreve Ivan Marques. “Qualquer pessoa com um pouco de inteligência percebe isso”, disse o autor de “A Educação Pela Pedra”.

“O poeta contou a Mário Calábria que tinha passado a dar aulas a jovens de Londres, em sua própria residência, a respeito da luta contra a miséria em países como o Brasil”, anota Ivan Marques. João Cabral se dizia admirador de Stálin (recomendava para o irmão Evaldo Cabral de Mello: “Você precisa ler o livro de Stálin sobre a linguagem”; a obra, por sinal, nem fora escrita pelo ditador). Não era, porém, filiado ao Partido Comunista. Tempos antes, havia criticado o engajamento de Carlos Drummond de Andrade. Mais tarde, com Drummond afastado da esquerda, João Cabral trocou de lugar e se engajou politicamente.

Em junho de 1952, seis meses da tentativa de catequização de Mário Calábria, Carlos Lacerda, na “Tribuna da Imprensa”, publicou uma reportagem-bomba sobre João Cabral e outros diplomatas, com o título de “Traidores no Itamaraty”.

Na primeira página do jornal, Lacerda expôs uma carta de João Cabral — então cônsul-adjunto em Londres — para Paulo Cotrim, vice-cônsul em Hamburgo. Os comunistas estariam “infiltrados” no Itamaraty, portanto, no governo de Getúlio Vargas. Eles estariam a serviço da União Soviética (e não da Rússia, ao contrário do que escreve Ivan Marques).

João Cabral solicita ao amigo economista um artigo — “sob pseudônimo, é claro” — “sobre a disputa de mercados no Brasil por ingleses, alemães e japoneses. Seria uma colaboração para um jornal de esquerda do qual o poeta participava em Londres”. O trecho final da carta dizia: “Não me diga que não tem tempo porque não acredito. Também não tenho e estou me desobrigando de outras tarefas. É interessante que se agite os problemas do Brasil aqui — eles não conhecem nada. Nem mesmo o seu sobrinho Luís Carlos. Agora estão pensando, nos altos organismos, em criar um comitê para a América Latina no qual eu seria uma espécie de adviser [conselheiro]. Mas sem a colaboração de vocês eu não poderia advise nada”.

João Cabral de Melo Neto: poeta que “desacomodou” a poesia brasileira | Foto: Reprodução

A “Tribuna da Imprensa” informou que cópias da carta haviam sido enviadas ao Estado-Maior do Exército e ao ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura. O Exército e o ministro não levaram a denúncia a sério.

Amigos de João Cabral sugeriram que era “coisa da CIA”. Não era. Há a suspeita de que Mário Calábria teria vazado a carta para a “Tribuna da Imprensa” — mais para prejudicar o “desafeto” Paulo Cotrim (que garantia não ter recebido a carta). Stella, a mulher do poeta, acredita que o rascunho da carta “havia sido surrupiado de dentro de” sua casa. João Cabral acreditava que havia sido “interceptada em Hamburgo e enviada a Mário Calábria, em Frankfurt.

Mário Calábria teria dito ao diplomata José Maria Bello Filho, rival de Paulo Cotrim: “Não se preocupe, porque tenho um documento contra ele que deixa você bem”.

Carlos Lacerda: o jornalista que perseguiu João Cabral | Foto: Reprodução

Ao se encontrar com Carlos Lacerda, na Europa, Mário Calábria repassou-lhe a carta explosiva, especula-se. A “Tribuna da Imprensa” começou a espalhar que o Itamaraty era um ninho de comunistas. Entre os denunciados estavam Antônio Houaiss, Jatir de Almeida Rodrigues, João Cabral e Paulo Cotrim.

Sob pressão, o ministro João Neves da Fontoura decidiu abrir “um inquérito administrativo para apurar as responsabilidades do autor da carta”.

O pai de João Cabral, Luiz Cabral, revelou que o nome completo do denunciante era Mário Mussolini Calábria. Com a queda do fascista, ele excluiu o nome Mussolini. Nas suas memórias, o diplomata negou ter furtado a carta, que “teria chegado até ele, de maneira misteriosa. Resolvera então enviá-la para a embaixada em Bonn, por julgar que aquele comportamento era inadmissível para um funcionário diplomático. Em Bonn, o documento teria sido roubado e enviado a Carlos Lacerda por José Maria Bello Filho, com a intenção de prejudicar o adversário Paulo Cotrim”.

Mário Calábria, diplomata | Foto: Reprodução

Ao voltar para o Brasil, em agosto de 1952, João Cabral estava “aterrorizado”, relatou o poeta Lêdo Ivo. Aos repórteres, o autor de “Morte e Vida Severina” sustentou que não era comunista — de fato, nunca se filiou ao partido — e “que jamais faltara com seu dever de lealdade ao país”, aponta Ivan Marques.

Na verdade, apesar do que escreveu e de admitir que era “marxista”, João Cabral nunca conspirara contra o Brasil. Sob pressão, o poeta disse que havia escrito a carta “por brincadeira” e que “fora tolice” escrevê-la.

No depoimento à comissão de inquérito, “ao ouvir a famosa pergunta feita a Prestes — ‘Numa guerra entre o Brasil e a União Soviética, que lado o senhor escolheria?’ —, João, sem hesitar, teria respondido que escolheria o Brasil, acrescentando que, se a guerra fosse entre Pernambuco e o resto do Brasil, ficaria com Pernambuco: ‘É questão de filosofia: prefiro sempre o particular ao geral’”.

Joel Silveira: jornalista que estendeu a mão para João Cabral | Foto: Reprodução

Perseguidor, Lacerda insistiu: “João Cabral de Melo Neto passeia no Rio a sua impunidade”. Aceitando a pressão do jornalista, o presidente Getúlio Vargas “colocou em disponibilidade inativa, sem remuneração, os diplomatas Amaury Banhos Porto de Oliveira, Antônio Houaiss, Jatir de Almeida Rodrigues, João Cabral de Melo Neto e Paulo Cotrim Rodrigues Pereira. (…) Segundo o parecer, a acusação de que eles faziam parte de uma rede de agentes comunistas, trabalhando contra o Brasil, tivera sua veracidade demonstrada. A carta de Cabral foi considerada como prova de um plano de ajuda ao proscrito PCB”.

Já depressivo, João Cabral ficou “atormentado”. Porém, a Justiça, diz Ivan Marques, “concluiu que, apesar do teor conspiratório da carta escrita por Cabral, não existiam razões para considerá-lo culpado. As investigações não produziram nenhuma prova. O cônsul não foi identificado como comunista militante pelas polícias da Inglaterra e da Alemanha. (…) O despacho judicial determinou o arquivamento do processo”.

Manolete ferido: o toureiro era admirado por João Cabral | Foto: Reprodução

João Cabral acreditava que fora punido, ao lado dos colegas, porque Getúlio tinha medo de Lacerda. “O presidente teria enviado um recado ao seu opositor da ‘Tribuna da Imprensa’: ‘Os rapazes já foram punidos’”.

Afastado do Itamaraty, João Cabral, para sobreviver, trabalhou como jornalista e tradutor. “Foi na redação de ‘Flan’ [semanário de Samuel Wainer] que João Cabral teve seu primeiro emprego como jornalista.”

Com a prisão de Samuel Wainer, denunciado por Lacerda, “Flan” teve sua publicação suspensa. Na Rádio Clube do Brasil, de Samuel Wainer, João Cabral participou dos programas “Falam os Críticos” e “Sala de Leitura”.

João Cabral editou, nos tempos de vacas magras, um livro de poemas de Joel “a Víbora” Silveira, “O Marinheiro e a Noiva”. “Foi o único volume impresso por Cabral no Brasil — o último de sua carreira de editor”, conta Ivan Marques.

Atendendo encomenda de Maria Clara Machado, diretora de O Tablado, João Cabral traduziu a peça “A Sapateira Prodigiosa”, de Federico García Lorca.

Em 1953, convidado por Joel Silveira, assumiu o cargo de secretário de redação do jornal “A Vanguarda”. Trabalharam na publicação Vinicius de Moraes, Tati de Moraes e Ibrahim Sued. “O português de Ibrahim era terrível, conforme relatou Joel Silveira, mas graças ao João Cabral, que fazia o copidesque dos textos, a coluna saía um primor”, frisa Ivan Marques. “Ao poeta cabia revisar e reescrever praticamente tudo o que ia para a oficina. Também eram de sua lavra os furiosos editoriais contra o governo de Getúlio. (…) Ao longo do expediente, ingeria pelo menos dez comprimidos de aspirina.”

Fora do Itamaraty, sobrevivendo como jornalista, João Cabral lança o livro “O Rio”, o qual experimentou, pela primeira vez, a dicção do verso popular”.

Começam as divergências com o poeta Carlos Drummond de Andrade. De acordo com Ivan Marques, “no conflito com o mestre, o fator decisivo foi a necessidade do poeta mais novo de adquirir independência criativa e demarcar seu território poético — fundando, por assim dizer, uma nova linhagem”.

Em 1954, o Supremo Tribunal Federal, considerando que “a pena aplicada não era prevista em lei, concedeu mandado de segurança para João Cabral voltar ao Itamaraty.  Ele foi lotado na Divisão Cultural”.

João Cabral queria voltar para o exterior. “O que estava por trás da demora kafkiana era o temor de que a nomeação de João Cabral para um posto no exterior incitasse Carlos Lacerda a mover uma nova campanha enfurecida na ‘Tribuna da Imprensa’”. O diplomata Sette Câmara conversou com o presidente Juscelino Kubitschek. “Era preciso aquietar Lacerda, disse o presidente. Resolvido esse problema, isto é, obtida a promessa de que ele não iria atacar, a remoção [de João Cabral para o exterior], da parte dele, estaria autorizada”.

O poeta Lêdo Ivo pediu a Lacerda que não promovesse uma nova campanha contra João Cabral. O jornalista aquiesceu. Mas ressalvou: “Está bem, mas ele é comunista, tenho certeza absoluta”. O diplomata Afonso Arinos Filho — seu pai, da UDN, era ligado a Lacerda — levou o poeta para uma conversa na casa do jornalista. “Lacerda disse a João Cabral que, sendo ele próprio ex-comunista, não ignorava a diferença entre um militante partidário e um indivíduo apenas impressionado pela miséria, com inclinações de esquerda.” Os dois não se encontrariam mais. Porém, mais tarde, João Cabral publicou livros pela Editora Nova Fronteira, da família de Lacerda.

Escapando do “perigoso” e poderoso Lacerda, João Cabral passou a servir em Sevilha, na Andaluzia. A cidade se tornou sua grande paixão (mais até do que Barcelona, que também apreciava). O poeta era admirador das touradas — era amigo de toureiros (admirava Manolete, que era “Paul Valéry toureando”) — e do flamenco. Era amigo e protetor do pintor Joan Miró e do poeta Joan Brossa (editou sua poesia).

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O poeta que duelou e empatou com Drummond de Andrade

Ivan Marques mostra que, tendo começado como discípulo de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral acabou se “distanciando” (poética e afetivamente) do mestre. Mas passou a vida toda com a impressão de que, mesmo sendo “grande”, não era tão grande quanto o bardo de Itabira. Na verdade, é. Poetas podem ser equivalentes em qualidade, mesmo que sejam diferentes (a Língua Portuguesa é vasta o suficiente, tão gigante quanto o Brasil, para comportar poetas que exploram suas entranhas de maneiras diversas). É o caso. Os dois criadores são divisores de água na poesia patropi. O biógrafo registra divergências e conexões, de maneira ampla, mas sem postular que um tenha superado o outro. Consegue fixar, com precisão, quando e como os poetas mineiro e pernambucano se distanciaram.

João Cabral de Melo Neto: criador de uma poesia rigorosa | Foto: Walter Firmo/AE

No início, a poesia não sentimental de Drummond atraiu fortemente João Cabral, que percebeu que o poeta, irônico e distanciado, era diferente da tradição poética do país — lírica e, por vezes, melodramática. Começou mimetizando o mineiro, o “formalista”, digamos assim. Porém, não apreciou quando Drummond se tornou engajado como poeta, dada sua militância no Partido Comunista. Tempos depois, quando o amigo se distanciou da esquerda, João Cabral, o “formalista” de antes, se tornou esquerdista e, em alguns momentos, como no belo “Morte e Vida Severina”, até populista.

A biografia mostra a singularidade da poesia de João Cabral e a consciência absoluta do poeta que, ao escrever, simbolizava uma ruptura, que estava mesmo fazendo algo novo no panorama cultural do país. Tanto que, de cara, atraiu os poetas concretistas Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos, que tentaram transformá-lo em “mestre” — o que o pernambucano nunca quis ser. Ele era mestre, mas apenas de si mesmo. Começou tendo Drummond e, também, Murilo Mendes como mestres, mas depois seguiu sozinho (inspirado em outros poetas, como o francês Paul Valéry).

Carlos Drummond de Andrade: a primeira grande “inspiração” de João Cabral | Foto: Reprodução

A excelente biografia de Ivan Marques, que vasculha a vida e a obra, com leveza e sem jargões acadêmicos, mostra também a influência da arquitetura de Le Corbesier na poesia do brasileiro.

Em novembro, li a biografia e quase toda a poesia de João Cabral, publicada, em um único volume, pela Alfaguara, com 895 páginas e organização, estabelecimento de texto, prefácio e notas do rigoroso e atentíssimo Antonio Carlos Secchin (autor do incontornável “João Cabral de Ponta a Ponta”, Cepe, 568 páginas). Claro, a biografia pode ser lida isoladamente, mas o leitor que puder lê-la paralelamente à leitura da poesia ganhará muito mais.

Elegante, Ivan Marques menciona en passant possíveis casos amorosos de João Cabral com bailarinas de flamenco. Uma das dançarinas, pelo menos, chegou a “empresariar”. Mas de quem o poeta precisava mesmo, com alta dependência, era de sua mulher, Stella. Depois, da segunda mulher, a poeta Marly de Oliveira (pode ser impressão, mas me parece que o biógrafo, talvez pelas fontes ouvidas, trata com certa, mas não excessiva, má vontade Marly de Oliveira, que foi casada com o diplomata Lauro Moreira, de 81 anos, que é goiano de Anápolis).

João Cabral pensou em se matar algumas vezes. A poeta portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen conta que ouviu de Murilo Mendes uma “história extraordinária” de João Cabral. Ivan Marques recolhe a história: “Numa das noites passadas em Sevilha, João Cabral, afundando-se na própria tristeza, anunciou que decidira se matar. Preocupado com a ameaça, o amigo mal conseguiu dormir. De manhã, quando o viu aparecer na sala, quis saber se estava bem e o que havia acontecido. A resposta foi surpreendente. João relatou que desistira do suicídio ao se dar conta de que seria enterrado em Sevilha. O problema, explicou com ar sério, era o cemitério barroco da cidade. Como tinha horror a tudo que vinha do barroco, não poderia suportar tal ideia e descansar em paz”.

Stella (o esteio da família), João Cabral e os filhos Luís, Inez e Rodrigo | Foto: Acervo Stella Maria Barbosa de Oliveira

Quando Stella, sua âncora na vida, estava acamada, com câncer, João Cabral perdeu o rumo. Ao saber que sua mulher iria morrer, João Cabral chamou Lêdo Ivo até a varanda de seu apartamento “e confidenciou que, de volta do enterro, se mataria, jogando-se daquele exato ponto onde se encontravam”. Rachel de Queiroz, depois de ouvir o poeta alagoano, disse: “Lêdo, tranquilize-se, se ele disse isso é porque, pouco tempo depois, terá arranjado outra mulher. Eu conheço o coração humano”. A escritora tinha razão: Marly de Oliveira aparentemente já estava no radar do poeta.

Ivan Marques registra outras facetas de João Cabral, como a de jogador de futebol, pintor, crítico de artes plásticas e literatura, tradutor, jornalista e editor. Não deixa de mostrar seus preconceitos: “… esse mulato safado chamado Machado de Assis”. O stalinismo de João Cabral é exibido sem tergiversações. Não se deixa de mencionar que, no final da vida, o poeta praticamente se tornara alcoólatra. Estava cego. Morreu ateu (no final do livro há uma discussão sobre o assunto).

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João Cabral estudou inglês em Goiânia para concurso do Itamaraty

Na página 117, Ivan Marques conta que, em 1944, o poeta esteve em Goiânia. O relato de Ivan Marques: “A serviço do Dasp, o poeta passou dois meses, maio e junho, na cidade de Goiânia. Tinha viajado para acompanhar provas do ensino secundário, mas a temporada se estendera mais que o previsto. Como faltava pouco para os exames do Itamaraty, aproveitou as horas de solidão para estudar inglês, a matéria que mais lhe fizera medo no primeiro concurso”. (O livro relata também que Antônio Houaiss deu aulas de português e literatura para o poeta.)

Genesco Ferreira Bretas

Na terça-feira, 7, no lançamento do livro “O Escritor Como Personagem”, o poeta e jornalista Luiz de Aquino esclareceu que o professor Genesco Ferreira Bretas (1911-2003), autor do livro “Memórias de um Botocudo”, era o professor de inglês de João Cabral na capital goiana.

João Cabral foi aprovado para a carreira diplomática em quarto lugar, atrás de Ramiro Saraiva Guerreiro, Pedro Braga e Antônio Houaiss.

Em 1976, o presidente Juscelino Kubitschek e o escritor goiano Bernardo Élis disputaram uma vaga na Academia Brasileira de Letras (ABL). Numa carta para Lêdo Ivo, João Cabral escreveu: “Que me diz da candidatura JK? O homem deve estar com arteriosclerose” (JK tinha 73 anos). “Por apenas dois votos, Juscelino perdeu a vaga para o escritor Bernardo Élis. João lhe devia [a JK] a condução para a Espanha, em 1956, e chegara a recebê-lo em Berna, na década seguinte, quando o ex-presidente vivia exilado na Europa. Na Academia, porém, recusou lhe dar apoio. Preferiu ceder à campanha de Austregésilo de Athayde, enviando, de Dacar, seu voto em favor do outro candidato”, diz Ivan Marques.

Bernardo Élis, autor de “O Tronco”: eleito para a Academia Brasileira de Letras (ABL) com o apoio do poeta João Cabral de Melo Neto | Foto: Reprodução

Idiossincrático, como todos nós, João Cabral “não disfarçava a simpatia” pelo presidente Jânio Quadros, que renunciou em agosto de 1961, possivelmente depois de ter visto forças ocultas numa garrafa de uísque; maledicentes diziam que era “uisquezofrênico” ou, como queria Afonso Arinos de Mello Franco, “a UDN de porre”. Guardou na memória uma frase do presidente que renunciou ao mandato: “Poeta subvencionado é mau poeta”.

Em 1951, quando o poeta Manuel Bandeira (primo de João Cabral) debochou da “originalidade” da Geração de 45, houve um levante de poetas, profundamente irritados. “Esse geometrismo, como já o chamaram, tem um mestre na nova geração — João Cabral de Melo Neto. Os outros vêm dele”, postulou Bandeira.

Afonso Félix de Sousa criticou Manuel Bandeira| Foto: Reprodução

Lêdo Ivo, Darcy Damasceno e Péricles Eugênio da Silva Ramos e Afonso Félix de Sousa contra-atacaram. Silva Ramos, ainda que reconhecendo a importância de João Cabral, não aceitava que a Geração de 45 fosse derivativa dele. A rigor, não era. Porque, poeticamente, João Cabral nem mesmo pertence a tal geração e não é poeta a ser imitado (tanto que, se tem admiradores, não tem seguidores, discípulos). O recifense se inventou ou reinventou e jogou a fôrma fora. Ele se contentava em ser mestre de si mesmo.

“Na revista ‘Orfeu’, fundada no Rio em 1947, Afonso Félix de Sousa contestou, com mais virulência, o depoimento do autor de ‘Estrela da Manhã’, apontado como ‘opinião de um velho que já não sabe o que diz”.

Ao retirar as lágrimas da poesia brasileira, João Cabral chocou muita gente, sobretudo poetas — até os não-lacrimosos.