Agora bissexual assumido, Richarlyson sofreu com deboche de juiz em ação contra homofobia

26 junho 2022 às 00h00

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Em 2007, sentença de um juiz de São Paulo tratou com total menosprezo uma queixa-crime do jogador após polêmica na TV

Richarlyson foi um dos principais nomes do São Paulo que se tornou o único tricampeão brasileiro de fato – um time que consegue três títulos consecutivos. Durante muito tempo, o meio de campo tricolor sua presença era certa: bom marcador, eficiente no desarme e efetivo no apoio.
Filho de Lela – uma lenda do futebol paranaense, campeão brasileiro pelo Coritiba em 1985 – e irmão mais novo de Alecsandro – artilheiro de clubes como Vasco, Flamengo, Internacional e Atlético Mineiro, sempre com dezenas de gols –, tinha tudo para ter portas sempre abertas por onde passasse.
Mas tinha um “problema”: Richarlyson era tido como “afeminado” demais para o futebol. Durante toda sua carreira, mesmo sem fazer qualquer declaração sobre sua sexualidade, conviveu com boatos, ironias, provocações e outros itens que podem ser resumidos em uma palavra: homofobia.
Se alguém queria saber o que o agora ex-jogador fazia e faz entre quatro paredes, o dia chegou: na semana passada, em entrevista ao podcast Nos Armários dos Vestiários, do portal GE, Richarlyson se assumiu bissexual. Tornou-se o primeiro jogador abertamente LGBT a ter jogado pela seleção brasileira.
Em entrevista ele declarou que: “Eu acho que é desnecessário às vezes você se rotular. Tem uma questão mais importante, tem gente morrendo, o Brasil é o país que mais mata homossexuais. Eu não queria ser pautado por causa da minha sexualidade, de eu ser bissexual. Eu queria que as pessoas me vissem como espelho por tudo aquilo que conquistei dentro do meu trabalho”.
Nunca foi fácil, porém, para o jogador. Em 2007, ele abriu um processo por homofobia contra o então diretor-administrativo do Palmeiras, José Cyrillo Júnior. É que o dirigente, havia respondido que “Richarlyson quase jogou” em seu clube quando lhe perguntaram, em um programa esportivo, se seria do Palmeiras um jogador que estava em negociação com o programa Fantástico, da Rede Globo, para revelar sua homossexualidade.
A queixa-crime caiu nas mãos do juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, 9ª Vara Criminal de São Paulo, que, em suma, disse que futebol não era coisa para gay. E assim negou prosseguimento à ação.
A sentença, de quase 15 anos atrás, hoje é vista com espanto, mas na época causou menos repercussão nos meios de comunicação do que na própria Justiça – Junqueira Filho foi afastado do processo e punido, por ter sentenciado em um processo do qual era o juiz natural.
Veja abaixo a íntegra da decisão do juiz:
Processo nº 936-07
Conclusão
Em 5 de julho de 2007. faço estes autos conclusos ao Dr. Manoel Maximiano Junqueira Filho, MM. Juiz de Direito Titular da Nona Vara Criminal da Comarca da Capital.
Eu, Ana Maria R. Goto, Escrevente, digitei e subscrevi.
A presente Queixa-Crime não reúne condições de prosseguir.
Vou evitar um exame perfunctório, mesmo porque, é vedado constitucionalmente, na esteira do artigo 93, inciso IX, da Carta Magna.
- Não vejo nenhum ataque do querelado ao querelante.
- Em nenhum momento o querelado apontou o querelante como homossexual.
- Se o tivesse rotulado de homossexual, o querelante poderia optar pelos seguintes caminhos:
- A – Não sendo homossexual, a imputação não o atingiria e bastaria que, também ele, o querelante, comparecesse no mesmo programa televisivo e declarasse ser heterossexual e ponto final;
- B – se fosse homossexual, poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados…
Quem é, ou foi BOLEIRO, sabe muito bem que estas infelizes colocações exigem réplica imediata, instantânea, mas diretamente entre o ofensor e o ofendido, num TÈTE-À TÈTE”.
Trazer o episódio à Justiça, outra coisa não é senão dar dimensão exagerada a um fato insignificante, se comparado à grandeza do futebol brasileiro.
Em Juízo haveria audiência de retratação, exceção da verdade, interrogatório, prova oral, para se saber se o querelado disse mesmo… e para se aquilatar se o querelante é, ou não…
- O querelante trouxe, em arrimo documental, suposta manifestação do “GRUPO GAY”, da Bahia (folha 10) em conforto à posição do jogador. E também suposto pronunciamento publicado na Folha de São Paulo, de autoria do colunista Juca Kfouri (folha 7), batendo-se pela abertura, nas canchas, de atletas com opção sexual não de todo aceita.
- Já que foi colocado, como lastro, este Juízo responde: futebol é jogo viril, varonil, não homossexual. Há hinos que consagram esta condição: “OLHOS ONDE SURGE O AMANHÃ, RADIOSO DE LUZ, VARONIL, SEGUE SUA SENDA DE VITÓRIAS…”.
- Esta situação, incomum, do mundo moderno, precisa ser rebatida…
- Quem se recorda da “COPA DO MUNDO DE 1970”, quem viu o escrete de ouro jogando (FÉLIX, CARLOS ALBERTO, BRITO, EVERALDO E PIAZA; CLODOALDO E GÉRSON; JAIRZINHO, PELÉ, TOSTÃO E RIVELINO), jamais conceberia um ídolo seu homossexual.
- Quem presenciou grandes orquestras futebolísticas formadas: SEJAS, CLODOALDO, PELÉ E EDU, no Peixe: MANGA, FIGUEROA, FALCÃO E CAÇAPAVA, no Colorado; CARLOS, OSCAR, VANDERLEI, MARCO AURELIO E DICÁ, na Macaca, dentre inúmeros craques, não poderia sonhar em vivenciar um homossexual jogando futebol.
- Não que um homossexual não possa jogar bola. Pois que jogue, querendo. Mas, forme o seu time e inicie uma Federação. Agende jogos com quem prefira pelejar contra si.
- O que não se pode entender é que a Associação de Gays da Bahia e alguns colunistas (se é que realmente se pronunciaram neste sentido) teimem em projetar para os gramados, atletas homossexuais.
- Ora, bolas, se a moda pega, logo teremos o “SISTEMA DE COTAS”, forçando o acesso de tantos por agremiação…
- E não se diga que essa abertura será de idêntica proporção ao que se deu quando os negros passaram a compor as equipes. Nada menos exato. Também o negro, se homossexual, deve evitar fazer parte de equipes futebolísticas de héteros.
- Mas o negro desvelou-se (e em várias atividades) importantíssimo para a história do Brasil: o mais completo atacante, jamais visto, chama-se EDSON ARANTES DO NASCIMENTOe é negro.
- O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal…
- Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio , por vezes com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se em análises do comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente problema de personalidade, ou existencial; desconforto também dos colegas de equipe, do treinador, da comissão técnica e da direção do clube.
- Precisa, a propósito, estrofe popular, que consagra:
“CADA UM NA SUA ÁREA,
CADA MACACO EM SEU GALHO,
CADA GALO EM SEU TERREIRO,
CADA REI EM SEU BARALHO”.
- É assim que eu penso… e porque penso assim, na condição de Magistrado, digo!
- Rejeito a presente Queixa-Crime. Arquivem-se os autos. Na hipótese de eventual recurso em sentido estrito, dê-se ciência ao Ministério Público e intime-se o querelado, para contra-razões.
São Paulo, 5 de julho de 2007
MANOEL MAXIMIANO JUNQUEIRA FILHO
JUIZ DE DIREITO TITULAR
Depois de encerrar a carreira, no ano passado, hoje Richarlyson continua no mundo do futebol, como comentarista do canal Sportv.